Femme Fatale

Capítulo 2: A section 1


Nikita abriu os olhos. Estava em um quarto branco. Havia lâmpadas fluorescentes no teto. Olhou para seus braços e mãos. Ainda tinha a marca das correias nos seus braços. Passou a mão por seu tórax. Estava vestida com uma camiseta de algodão e uma calça de jogging. Seu peito doía. Estranhou que no céu ainda se pudesse sentir dor, e que se usasse lâmpadas fluorescentes. Imaginou que no paraíso a iluminação fosse natural, vinda diretamente de estrelas no céu. Se é que ela estava no paraíso. Ela com certeza tinha ido parar no inferno; também, com tudo que ela aprontara, só merecia ir pro vale de lágrimas. Só que ali era silencioso e confortável. Onde estavam os lamentos e ranger de dentes? Será que ela tinha merecido a graça de ficar na ante-câmara do céu? Um tipo de porta de saída do reino das trevas?


Sentiu o corpo formigar inteiro. Levantou-se de sopetão. Teve ânsia de vômito. Procurou por um banheiro para não sujar seu quartinho branco. Vomitou a alma no vaso do banheiro. Deu descarga. Foi então que teve certeza de que não estava morta. Ela sobrevivera à injeção letal. \"Que merda!\" Agora teria que passar por tudo aquilo de novo. E com certeza teria que passar por outra execução. Talvez não mais com injeção letal, talvez em câmara de gás, ou cadeira elétrica, ou enforcamento. Começou a chorar. Arriou-se no canto da parede e abraçou as pernas. Chorou amargamente. Gostaria de já estar morta e deixar de sofrer. E sua mãe, coitada? Já não fora suficiente ter visto a filha morrer uma vez? Teria que sofrer pela filha novamente? Isso era muito injusto e cruel.


A porta se abriu e um homem alto, musculoso, de rosto bonito, entrou. Ele aproximou-se de Nikita, que ficou sentada no chão olhando para cima.


_ Bom dia Nikita! Bem vinda à Section 1. Eu sou Michael, seu instrutor. Qualquer dúvida ou dificuldade que encontrar aqui, terá que se reportar a mim. _ O homem então estendeu a mão para Nikita, para que ela se levantasse. Ela não esboçou reação.


_ Eu preciso ver meu advogado. _ Nikita falou, encarando os olhos frios daquele homem. Ele limitou-se a tirar um papel de jornal do bolso. Entregou-o a Nikita. No jornal havia a notícia da execução dela, com uma foto de sua lápide. Dava para ver seu nome e a data de falecimento. Nikita ficou chocada.


_ O que significa isso? _ Foi a única coisa que ela conseguiu dizer.


_ Você morreu para o mundo. Não existe mais. Agora faz parte de uma organização para-militar, não-governamental. Será treinada, ensinada, alimentada e corrigida, se for necessário. Sua vida não lhe pertence mais. Você pertence doravante à Section 1. _ Michael informou-a em um tom frio e impessoal.


_ Não! Não, eu não aceito isso. Eu quero ver minha mãe. Eu quero ver meu advogado... _ Nikita levantou-se e tentou correr para a porta por onde Michael entrara. Ele rapidamente a golpeou na barriga, fazendo-a dobrar-se sobre o estômago, uivando de dor.


_ Primeira lição: O estômago é uma parte sensível do oponente, principalmente quando ele está sem guarda. Segunda lição: Você já está morta. Você já viu seu túmulo. Você não passa de um fantasma. Se você não se adaptar à Section 1, nada os impedirá de mandá-la literalmente para sua morada final. VOCÊ É DESCARTÁVEL. Quanto mais rápido entender e aceitar isso, melhor será. _ Michael dirigiu-se a saída. Virou-se para Nikita mais uma vez. _ Não se esqueça. Você já tem um endereço no cemitério.


Nikita deixou-se cair no chão, em posição fetal, chorando. Quando ela poderia ver sua mãe de novo?

A Section 1 a tratava bem. Ela recebia refeições, roupas, e tinha direito a exercícios físicos. Tinha que assistir aulas de línguas estrangeiras, e sobre computação. Seus colegas de sorte não conversavam com ela, mas quanto a isso ela nem estranhou, uma vez que no tempo em que ficou na cadeia, não fizera amizades, sendo mais prudente considerar as outras prisioneiras como inimigas. Os exercícios físicos converteram-se em treinamento de combate. Ela era cada vez mais exigida no aprendizado linguístico e na área de computação. Veio o treino com armas e tiro ao alvo. Nikita revelou-se excelente aluna. Desenvolvia rapidamente habilidades de sobrevivência e ataque. Ela sentia-se uma espécie de soldada. Ao longe, no alto, em uma sala envidraçada da qual se observava todo o salçao central, estava o chefe da Section 1: Operations. Um homem mais velho e com olhos frios e sádicos. Nikita esperava nunca entrar em contato com aquele ser humano. Ele lhe provocava arrepios. Se a Section 1 era o inferno, Operations era o capeta.


Um dia, muitos meses após sua chegada àquela estação para-militar, Michael veio cumprimentá-la.


_ Parabéns Nikita, você tem se mostrado uma excelente aquisição para a Section. Passará agora por seu último teste. _ Ele a informou.


_ Tudo bem. O que é que vocês querem que eu faça? _ Nikita perguntou friamente, com o tom mais seco e cortante que conseguiu. Ela aprendera que na Section, todos eram dessa forma, como se suas personalidades originais houvessem sido enterradas, sobrando apenas impessoalidade e profissionalismo.


_ Você sairá comigo hoje à noite. Vamos jantar à luz de velas. _ Michael falou com um tom levemente irônico, como se aquilo fosse uma piada.


_ Pra que? _ foi a única coisa em que Nikita conseguiu pensar, pois não tinha nenhuma ilusão a respeito de Michael. Ele era tão eficiente e implacável quanto uma lâmina. Não, ele não queria namorá-la. Era apenas mais um maldito teste daquela estação dos infernos.


_ Uma agente... _ Michael aproximou-se perigosamente e colocou as duas mãos nos braços de Nikita _ ... deve estar preparada para usar... _ Michael aproximou seu rosto do rosto de Nikita. Ela segurou a respiração. _ ... seus atributos femininos, para o bom desempenho da missão. _ Michael aproximou os lábios dos dela, e Nikita inconscientemente entreabriu os lábios para receber o beijo, que não veio. Michael virou-lhe as costas e afastou-se lentamente. Nikita arriou-se na cadeira, sentia as pernas bambas. Colocou a mão sobre os lábios, como se houvesse sido beijada, seu coração dava saltos no peito. O que estava acontecendo com ela?


Nikita procurou Madeline, a instrutora de boas maneiras e etiqueta, uma mulher mais velha e sofisticada. Nikita detestava aquelas aulas. Parecia-lhe uma perca de tempo, aprender a comer e sentar educadamente, quando ela era um soldado em uma guerra. Entretanto, ela agora precisava desesperadamente dessas aulas, para não fazer feio quando estivesse com Michael, jantando à luz de velas.


A porta se abriu e Madeline lhe deu um sorriso encantador.


_ Entre Nikita. Estava esperando por você. _ Madeline guiou-a pela cintura até uma sala de jantar. Demonstrou para Nikita como se sentar, como segurar os talheres, e como mastigar educadamente. Nikita considerava tudo tão supérfluo, que tinha vontade de gritar e sair correndo, mas por Michael, ela iria aprender tudinho.


_ Agora a lição mais importante minha cara. _ Madeline lhe falou, conduzindo-a pela cintura novamente até o dormitório, onde havia uma penteadeira com banqueta. A mais velha a fêz sentar-se, e olhar-se no espelho a sua frente. _ Toda mulher tem a chave para o paraíso. Ela têm meios e artifícios para conseguir tudo que quiser. Inclusive conquistar o homem que desejar. _ Madeline falava enquanto passava suavemente, uma grande escova nos longos cabelos de Nikita. Esta olhava para o espelho hipnotizada. _ Por vezes, Nikita, um gesto refinado, um doce sorriso, podem derrubar barreiras intransponíveis. _ Madeline segurou delicadamente no queixo de Nikita, fazendo-a virar para si, e aplicou-lhe um pouco de blush no rosto. Nikita fechou os olhos e lembrou-se da mãe. Ficou imaginando que talvez Madeline fosse diferente das outras pessoas da Section 1. Talvez Madeline tivesse um coração de mãe, afinal de contas.

Michael estava vestindo um terno de uma marca famosa, bem cortado e bem assentado em seu corpo. Ele havia pedido um vinho branco, de bom paladar, caro o suficiente para igualá-lo aos outros clientes daquele restaurante francês. Ele aguardava por Nikita que já estava 10 minutos atrasada. Se ela não cometesse outros deslizes, ele perdoaria esse pequeno atraso. Então ela chegou. Ele mal a reconheceu. Estava usando um vestido curto de organza negra, cheio de folhos no decote e cintura marcada. Seus longos cabelos estavam soltos e brilhantes. Sua maquiagem estava suave mais sofisticada. E como ela andava elegantemente sobre aqueles saltos agulha! Se Michael já não estivesse calejado com a rotina da Section 1, ele ficaria de queixo caído. Nikita era estonteante.


_ Demorei muito? _ Nikita sorriu suavemente, ao se aproximar da mesa de Michael, que já se refizera do susto.


_ Ah, não muito, mas eu lhe garanto que a espera valeu a pena. _ Ele falou seriamente com aqueles profundos olhos azuis metálicos.


Nikita sentou-se elegantemente, pegou o menu e olhou distraidamente para as opções. Michael a observava tranquilo e apreciativo.


_ Você melhorou muito. Está de parabéns. Não parece mais o animal arisco e selvagem que era, quando chegou a nossa... empresa. _ Michael falou coma expressão amistosa. Nikita não gostou da comparação, mas gostou de ter sido elogiada.


Michael pediu um prato francês a base de vitela. Serviram-na do mesmo vinho que Michael estivera bebendo. Nikita sentia-se nas nuvens. Tudo estava perfeito. Michael gostava dela. Ela se tornara uma pessoa melhor, e agora sabia comportar-se educadamente em ambiente tão chique.


_ Nikita,o homem sentado na mesa às suas costas é um terrorista. Ele possui um pen-drive em seu bolso do colete. Este pen-drive contem dados importantes do governo, que não podem cair em mãos inimigas. O seu último teste consiste em matá-lo, e reaver o pen-drive. _ Michael falou casualmente, como se estivesse comentando uma novela da televisão.


Nikita ficou chocada. Até aquele momento ela estivera sendo cortejada e lisonjeada. Agora a estavam tratando como animal. Um animal sanguinário e eficiente. Ela não conseguiu evitar de baixar os olhos e soltar um soluço. Sentiu os olhos umedecerem, e um nó se formar em sua garganta. Michael a observava. Avaliava as mudanças que se operavam no íntimo dela. Ficou esperando que ela fizesse alguma pergunta.


_ Como... como irei matá-lo? Eu não trouxe nenhuma arma. _ Ela falou o mais contida e friamente que conseguiu.


_ No toalete feminino há uma arma escondida na bancada da pia. Há também um grande vaso de flores lá. Nele você encontrará balas e um silenciador. Sua missão é ir até o toalete feminino e pegar a arma. Volte e mate o terrorista. Vistorie o cadáver e pegue o pen-drive. A seguir saia do restaurante e pegue uma van que estará a sua espera. ela a levará de volta à section. Isso se você conseguir concluir a missão. _ Michael falou tranquilamente enquanto saboreava sua taça de vinho.


_ E se eu não conseguir terminar a missão? O que vai acontecer comigo? _ Nikita de certo modo já sabia a resposta, mas ela sentia uma estranha compulsão de ouvir todos os detalhes escabrosos da boca de Michael.


_ Você será descartada. _ Michael sacou sua carteira e retirou duas notas de alto valor. Colocou-as sobre a mesa, e guardou sua carteira. _ Espere até eu ir embora, antes de começar.


_ Você não vai ficar comigo? Não vai me ajudar? _ Ela sabia a resposta, mas não conseguiu evitar a pergunta.


_ O teste é seu, não meu. Boa noite Nikita. Foi bom conhecê-la. _ Michael fêz uma leve reverência e retirou-se, como se não houvesse nada mais importante no mundo do que ir embora para sua casa.


Nikita ficou sozinha sentada à mesa; as lágrimas desceram por seu rosto. Sabia que a maquiagem sofisticada já estava estragada. Sentia-se condenada à morte uma segunda vez. Seu inferno nunca teria fim.

Fim do Capítulo