PALAVRAS DE MÁRCIO FERRARI

Enquanto eu segurava o cabelo de Gabriela para trás, ela vomitava todo o conteúdo que ingerira durante aquela noite. Legal.

— Eu sabia que não deveria ter bebido tanto vinho — e lá se foi o vinho, indo pela privada — acho que eu fiz merda essa noite — após dizer isso, vomitou mais.

Certo. A gente meio que “ficou” naquela noite. Ah, ela estava bêbada e tal, então não sei se rolou sentimento. Da minha parte eu sei que não. A gente era amigo há tanto tempo e nunca tínhamos “ficado”. E eu sabia que isso era até normal entre amigos.

Mas, para mim, não.

E eu meio que me senti que tinha abusado dela, sério. Gabi estava tão longe desse mundo por causa da bebida que não conseguia dar um passo que fosse sozinha.

Após a festa, pegamos um táxi. O taxista cobrou até o último centavo do meu bolso para nos levar até a minha casa. Xinguei ele de ladrão no meu pensamento pelo caminho todo, enquanto Gabi, capotada, dormia com a cabeça encostada no meu ombro, sem contar que ela roncava e babava muito.

Chegamos. Pedi para que o taxista me ajudasse a levar Gabi até o meu quarto (era o mínimo que ele poderia fazer, depois de ter assaltado a minha carteira). Subimos as escadas, com a bebum apoiada nos nossos ombros e chegamos finalmente ao meu quarto. Quando abri a porta, Valeska dormia profundamente na minha cama, enquanto Gohan, sentado comportadamente também em cima da cama, assistia Bob Esponja na TV por assinatura.

— Pode colocar ela aqui. — pedi ao taxista, que deixou Gabi na minha cama também.

Deixei o taxista no portão, agradeci, só por educação mesmo, e voltei ao quarto. Estendi um lençol no chão, já que minha cama estava ocupada e me deitei, deixando Gohan ao meu lado, que continuou assistindo TV até pegar no sono.

***

Dia seguinte. Valeska acordou primeiro, tomou café com os meus pais e foi embora. Não disse nada a ela sobre o que havia acontecido na noite passada, pois queria conversar com Gabi primeiro.

Levei meu lanche e o de Gohan para o quarto e, enquanto observava Gabriela dormindo, babando na minha colcha do Super Mario, eu e “meu filho” matávamos nossa fome. Ah, agora com seis meses, Gohan já não dependia muito que eu fosse buscar leite no banco da maternidade, pois ele já tomava vitamina, sopinha, comia frutas, até mingau. Minha mãe fazia um mingau tão gostoso que até eu roubava do Gohan para tomar um pouquinho. Porém, eu sabia que o leite materno continuava sendo importante para o desenvolvimento dele.

E, por falar em “materno”, era dia de levar o Gohan para ver a Lara. Aquilo era importante, pois eu não queria que ele crescesse sem nunca ter visto a mãe. Já as titias Gabriela e Valeska, adoravam filmar e tirar fotos de todos os momentos do bebê para que quando a mãe dele acordasse, pudesse pelo menos sentir como foi o desenvolvimento do nosso pequerrucho.

Gabi acordou. Ficou encarando a gente, depois sorriu para o Gohan, que comia um pedaço de maçã e retribuiu o sorriso para ela, mostrando o único dentinho que ele tinha na sua boca.

Gabriela se espreguiçou, estalou os ossos e viu que eu estava rindo dela.

— Que foi? Nunca viu ninguém acordando de ressaca?

— Você não se lembra do que aconteceu ontem? — perguntei, com um pouco de medo de deixa-la constrangida. E depois eu me lembrei que estava falando com a Gabriela e ela nunca ficava constrangida.

Gabi, por sua vez, se levantou da cama, domou a juba que seus cabelos formavam, fazendo um coque mal feito e se aproximou de mim e de Gohan. Tomou a maçã babada da mão esquerda do bebê e comeu.

— Ei! Era o lanche dele. — ralhei.

— Eu tô com fome, QI!

Dei outro pedaço de maçã pro Gohan e voltei o assunto com Gabi. Daquela vez, fui mais direto.

— Por que me beijou na noite passada?

Ela me encarou, se fazendo de inocente e me olhando como se eu estivesse mentindo.

— Ah, para. Eu nunca ia te beijar.

— Mas beijou. Um beijão.

— Por que eu iria tirar o seu BV?

— Para com isso, Gabriela! A coisa é séria. Você... você... Sente alguma coisa por mim? — perguntei, olhando diretamente nos olhos dela.

— Eu já disse que só gosto de mim mesma e ponto final. — ela disse, daquele jeito bruto dela — E além do mais se eu tiver tirado o seu BV... Ops, te beijado, eu não me culpo, pois estava bêbada e não me lembro de nada. Absolutamente nada.

— Beleza.

PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO

Gente, é sério. Eu juro que eu não me lembro de nada!

Márcio QI me veio com um papo de que eu havia beijado ele na festa da noite passada, mas eu estava pra lá de bêbada e todo mundo sabe que cu de bêbado não tem dono (me desculpem os termos).

Talvez eu tenha beijado ele mesmo. Mas foi coisa do momento, foi por nós estarmos ali, só nós dois, e ter rolado. Mas eu nunca me aproveitaria dele sabendo que ele gosta de uma (acho que) amiga minha.

Acho que ficou tudo entendido entre nós depois da pseudoconversa que temos quando eu acordei. Lembrando que os pais do QI me olharam com uns olhões arregalados quando me viram saindo do quarto dele, só porque eu havia dormido lá naquela noite. Nada a ver.

Eu e o QI? Por mais que eu goste dele e o admire. Nunca!

Talvez não haja nenhum chinelo velho para o meu pé descalço. Eu não me vejo namorando ninguém. Talvez eu seja apenas uma personagem coadjuvante, que sirva de anjo para os meus amigos. E, gente, eu não me importo com isso. Até gosto.

***

Naquele dia, como combinado (e apesar da minha dor de cabeça de ressaca) levaríamos o pequeno Gohan para visitar sua mãe, Lara, que continuava em coma na UTI. Márcio QI também aproveitaria para passar no banco de leite da maternidade.

Tivemos que ir de ônibus, já que QI me disse que gastara o dinheiro todo que tinha com o táxi na noite passada. Me senti mal por ter dado tanto trabalho enquanto bêbada, mas amigo é pra essas coisas.

— As pessoas estão olhando para nós como se nós fôssemos os pais do Gohan. Olha. — Márcio cochichou para mim, enquanto sentados nos bancos do ônibus esperávamos chegar ao nosso destino. Olhei ao redor e, realmente as pessoas (principalmente as velhas com cara de fofoqueiras) ficavam encarando a gente como se nós fossemos a vergonha do nosso país. Conversavam entre si, ficavam apontando para mim e para Márcio QI, que estávamos apenas levando o nosso pequeno Gohan inocentemente para visitar sua mamãe na maternidade.

— Estamos quase chegando. — falei — Deixa essas velhas mal comidas ficarem se remoendo de inveja! — gritei e elas sentiram a indireta. — Quando descermos do ônibus, Márcio, elas vão ter que procurar outro assunto pra fofocar.

O motorista parou em frente ao hospital e Márcio QI, levando Gohan nos braços, desceu. Eu fui em seguida, mas antes dei língua para as fofoqueiras.

PALAVRAS DE ISAAC SANCHEZ

Já era o oitavo jogo seguido em que nós jogávamos e perdíamos. O RFC estava na lanterninha da classificação geral do campeonato. Os jornais de colunas esportivas falavam que nosso time teve uma sorte passageira, sorte essa que se chamava Gustavo Rodrigues.

O técnico Eriberto estava de mãos atadas, já não sabia o que fazer. Nós não podíamos mais confiar só no Piter, que era um excelente jogador, mas estava levando quase tudo nas costas. Eu era um ótimo zagueiro, mas também estava quase desistindo da minha carreira. Nosso goleiro desistiu, mas tínhamos um reserva, que também apanhava mais do que cadela no cio.

Acontece que antes nós estávamos acostumados a perder. Porém, depois que Gustavo apareceu nas nossas vidas, nós conhecemos o gostinho da vitória.

Nós precisávamos vencer, ou seríamos desclassificados.

Nós precisávamos do Gustavo.

***

O Regatas Futebol Clube jogaria mais uma vez naquele dia. Seria o último jogo do ano, talvez de nossas vidas, caso não vencêssemos. E nós tínhamos certeza de que perderíamos.

Antes do jogo, reunião no vestiário. Todos os jogadores olhavam concentrados para que o técnico Eriberto iria dizer.

— Rapazes, talvez esta seja a nossa despedida. Parece que tudo o que nós conquistamos no ano passado foi embora nesse ano. — pausa. Aquilo parecia mais com m velório — Nosso amigo Gustavo foi embora, sem nos dar motivos e talvez ele era o coração do nosso time e nem havíamos percebido isso. Às vezes eu me pergunto se nós não dávamos o devido valor a ele. — Eriberto nos encarou, um a um, antes de prosseguir — Peço que joguem como espartanos. Mesmo que percam, lutem! Não entreguemos a vitória ao outro time de mão beijada. Ouviram?!

Silêncio.

— VOCÊS OUVIRAM?! — vociferou.

SIM!!! —Todos nós gritamos, com garra. Se ao menos fosse tudo tão simples assim...

Saímos do vestiário. O sol bateu no meu rosto ao mesmo tempo em que o cheiro da grama molhada invadia as minhas narinas. Beijei o pingente do meu cordão, que era um pequeno crucifixo e, em seguida, o escondi embaixo da minha camisa.

“Seja o que Deus quiser. ” pensei.

PALAVRAS DE GABRIELA CARVALHO

Quando chegamos ao hospital, mais precisamente na ala onde Lara estava internada, as enfermeiras encararam Márcio QI e eu, que estava com Gohan nos braços, como se tivessem algo muito sério pra falar.

— Ih, lá vem bomba. — falei.

— Será que aconteceu o pior, Gabi? — Márcio cochichou pra mim.

— Vira essa boca pra lá. Gohan precisa de uma mãe de verdade e não vai ser agora que ele vai perder essa chance.

Pedi para que Márcio se aproximasse de uma das enfermeiras.

— Aconteceu alguma coisa? — meu amigo parecia um pouco assustado, mas ao mesmo tempo disposto a saber o que estava acontecendo.

— Venham comigo. — disse a enfermeira, apontando para o quarto.

***

Ao entrarmos no quarto, vimos Lara, como sempre, deitada na cama, com os aparelhos ligados. Parecia tudo normal até então. A enfermeira, porém, pediu para que nós nos aproximássemos mais ainda e então Márcio e eu podemos ver do que se tratava:

Lara havia abrido os olhos.

Seus grandes olhos verdes estavam abertos, e olhavam fixamente para o nada. Ela não se mexia, nem falava, apenas olhava para o teto. Contudo parecia que ela estava ouvindo e entendendo, talvez, o que estava acontecendo.

Márcio ficou maluco e, sem falar nada, olhava para ela, segurava sua mão e chorava.

— Ela está voltando. Aos poucos. — disse a enfermeira.

— Lara... Lara... você... pode me ouvir? Será que você pode me ouvir? — QI falava com ela, ainda segurando levemente sua mão. De repente, segundos depois, ele olhou incrédulo para mim e para Gohan.

— Que foi, Márcio? — eu confesso que estava emocionada com aquilo tudo.

— Ela apertou minha mão. Com força. Acho que ela tá escutando a gente! — respondeu ele, feliz.

Eu posicionei o pequeno Gohan de modo que Lara pudesse ver o rostinho dele. O garotinho ficou olhando para a mãe: era a primeira vez que ele olhava nos olhos dela e vice-versa.

— Olha, Gohan. Essa é a sua mamãe, Lara. Ela não é linda? — falei.

Márcio QI, que continuava segurando a mão de Lara, perguntou:

— Lara, você tá vendo? Você tá vendo, ele é seu filho. Se estiver vendo ele, aperta a minha mão de novo...

E assim ela fez. Lara apertou a mão de Márcio, confirmando que acabara de conhecer o seu filho. E confirmando que estava voltando para nós.

PALAVRAS DE VALESKA SOARES

Acho que eu estava virando a excluída do grupo, só porque Márcio e Gabi já eram maiores de idade e eu ainda era a ‘piveta’ que ainda estava no Ensino Médio. Certo que eu deixei eles por uns meses se virando sozinhos, mas poxa, poderiam ter me incluído no passeio para ver a Lara naquele dia.

Sem nada pra fazer naquele dia, liguei a TV. Pedi para mamãe, Dona Sílvia, me fazer um balde de pipoca, pois eu assistiria o futebol.

— Desde quando você gosta de futebol, Valeska? — mamãe estranhou.

— Ah, mãe. Esse tempo como jogadora infiltrada no RFC me fez repensar um pouco os meus gostos.

— Eu não gostei nada de você ter ido se enfiar no meio daquela macharada.

— A senhora já disse isso, mamãe. — me deitei, colocando os pés em cima do sofá. Mamãe me encarou e eu já sabia do que se tratava. Tirei os pés de cima do sofá.

Enquanto eu ouvia as pipocas estourarem lá na cozinha, fiquei fuçando na televisão para ver se eu achava o canal em que estaria sendo exibido o jogo do Regatas Futebol Clube.

Achei. Vi o placar: 3x0 para o time adversário. E ainda estávamos no primeiro tempo. Ouvi o comentarista falando enquanto as imagens do jogo, ao vivo, eram exibidas:

— Lembrando que este pode ser o último jogo do Regatas Futebol Clube, pois o técnico Eriberto Mangbeira garantiu que se não obter mais sucesso com o RFC, o clube vai fechar as portas. É uma pena. Parece mesmo que o time teve uma sorte passageira com a entrada do brilhante Gustavo Rodrigues, mas tudo voltou ao normal com a saída repentina dele. Vamos ver o que vai acontecer.

Ao ouvir aquele comentário, um frio se apoderou da minha espinha. Esqueci da pipoca, esqueci de tudo. E eu precisava esquecer por algumas horas que era uma menina, pois eu iria ressuscitar o Gustavo. Pelo bem do time.

Apenas pelo bem do time.