~ATO I~

LANCER

Dois Dias Antes

O ofício da magia não tardou a chegar no Novo Mundo, especificamente naquela terra que viria a ser chamada de Brasil. Cedo, quando os magi embarcaram em peso ao que viria a ser um país, muitas famílias de linhagem nova e inexperiente estabeleceram-se no local visando encontrar o Caminho Dourado de Afonso e obter a fama e o poder que o feito traria. Essas famílias viriam a se tornar tradicionais da região nos séculos que se seguiram e seu conhecimento dos mistérios divergiu-se do caminho da Associação, os estudos das magias naturais da terra e a forma de encontrar o Caminho Dourado tornaram-se os focos e desenvolvendo-se nesse modo, o ofício mágico do Novo Mundo se tornou algo quase alienígena para os magi de tradição antiquíssima nos dias recentes.

Entretanto, o Caminho e o seu poder nunca deixaram de ser admirados por todos que queriam algo daquele mistério e quando foi iniciada a Guerra, todas as atenções se voltavam para o Brasil de 100 em 100 anos. Aquele poder comparável ao do Santo Graal era irresistível para qualquer família e estes mandavam seus sucessores aos volumes para que pudessem participar do conflito. O isolacionismo brasileiro quando em choque com os estrangeiros interessados somente em poder criou uma rivalidade que viria a ser eterna, muitas vezes a Guerra tornava-se uma competição entre dois lados em vez de cada Mestre por si.

No ano de 2015, a energia concentrada na região Centro-Oeste e Sudeste começa a se alterar – os magi instantaneamente reconhecem o que está por vir e a Igreja, supervisora do embate, dá nome ao regulador. Aos poucos as alterações de energia se concentram em uma cidade, neste caso Luzes, no interior do estado de São Paulo, uma cidade com forte tradição magi e lar de diversas famílias do tipo. Os meses que precedem a Guerra são um conflito por si só, rivalidades entre as próprias famílias explodem e muitas exigem ser escolhidas para representar os magi da cidade nas limitadas vagas, que ainda são competidas com estrangeiros e pessoas de outras regiões do país. O Padre Lopes é impassível sobre o assunto e ignora quaisquer apelos das famílias, mesmo que muitas insistam nisso por possuírem algum catalisador que facilita a invocação de um Espírito Heroico específico.

A obtenção dos Servos, figuras históricas e lendárias que lutam por seus Mestres na Guerra do Caminho Dourado, é realizada por meio de um ritual de invocação. Na teoria e prática, é impossível um magus ter poder o suficiente para trazer o Servo de sua própria realidade, portanto, o poder do Eldorado é utilizado no processo resultando em qualquer magus ser capaz de realizar uma invocação do tipo já que ela envolve conceitos meramente elementais.

É isso o que motiva o jovem Felipe Jonaso a tornar-se um Mestre na Guerra que está por vir. Sua família é antiga, porém não é altamente atrelada ao mundo mágico brasileiro e sua participação na Guerra tem sido mínima ao longo dos séculos. Felipe lembra-se claramente do dia em que seu pai explicou como o Símbolo da família era fraco e continha pouco conhecimento e nenhum de seus ancestrais possuíra Circuitos Mágicos excepcionais – por muito tempo o rapaz acreditou que dedicar-se a vida de magus seria um desperdício pois de nada contribuiria com seu poder ínfimo. Tomar conhecimento sobre aquela Guerra em busca de um misterioso poder obtível por qualquer magus medíocre e que aconteceria ali mesmo em sua cidade reacendeu a chama da força de vontade dentro de Felipe e ele estava determinado em sair vitorioso, não importa contra quem estivesse competindo.

Faltavam apenas dois dias para o começo de tudo, eram os dois dias finais para invocar um Servo. Felipe adiou com todas as suas forças, mas já havia passado da hora – se não realizasse a invocação naquela noite, duvidaria fortemente de sua própria determinação em ganhar o conflito.

Ele esperou até uma hora da manhã, até lá seus pais já estariam em sono profundo. Cuidadosamente levantou-se da cama e saiu do quarto até o abandonado quarto de serviço, aquele era o único lugar que ninguém costumava entrar na casa – contara muito com a sorte nos últimos dias, qualquer um que entrasse veria logo de cara um grande círculo de invocação gravado no chão, feito com base em um modelo que Felipe viu no antigo livro de seu avô, uma das poucas coisas relacionadas ao ofício mágico naquela casa que supostamente era o lar de uma família de magi.

Ao chegar no local mal iluminado, o rapaz acendeu as velas que havia preparado mais cedo e observou a luz alaranjada espalhar-se pelas paredes. O círculo encontrava-se intacto – nada o impedia de realizar o ritual ali mesmo.

“Ok, só tenho que me lembrar das palavras” Felipe pigarreou “Espero que não venha nenhuma aberração”.

Após trancar a porta, Felipe respirou fundo e sentou-se de pernas cruzadas na borda do círculo de invocação. Mentalizou as exatas palavras que lera no livro e ativou seus Circuitos de forma com que seu poder fluísse junto do canto.

Juntem-se, viajantes perdidos

No fluxo eterno

Ascendam à terra nova

O lar da Natureza

Emitam a aura do poder supremo

E clame o direito da Chave

A Chave do Caminho Dourado”

Por um momento, Felipe imaginou ter falhado. Foi um segundo infinito, onde silêncio dominou o ambiente e parecia ter matado as esperanças do jovem magus em ir além do que era esperado dele. Eis que de súbito, o círculo se ilumina em luz escarlate e a sala toda adquire um tom de vermelho sangrento.

Foi a primeira vez que Felipe sentiu o poder do Caminho Dourado. Foi quando tornou-se óbvia a necessidade de alcançar aquele distante objetivo, que parecia cada vez mais próximo enquanto uma luz intensa brilhava no meio do círculo.

Num piscar de olhos, toda a iluminação extinguiu-se e as velas tombaram no chão com a força da invocação. Naquela escuridão, Felipe mal conseguia distinguir a silhueta diante dele – reconhecia apenas que era uma visão intimidadora.

“Imagino que meu Mestre seria capaz de no mínimo prover alguma luz ou será que me engano?”

O magus ainda estava paralisado, talvez a ideia de tudo dar certo fosse apenas uma fantasia para seu cérebro, ver o Servo em carne e osso o pôs em um estado de confusão – talvez estivesse distante da realidade que conhecia.

Quando a figura misteriosa do Servo deu seu primeiro passo, o corpo de Felipe conseguiu funcionar por alguns instantes e sua mão rapidamente apertou o interruptor do lugar. Em sua frente emergia da escuridão um homem de pele vermelha e de estatura que quase alcançava o teto mantinha um olhar severo em sua direção. O jovem sabia que estava sendo julgado – a noite poderia terminar de forma muito boa ou muito ruim dependendo do que o aparente indígena concluiria.

Enquanto era analisado por olhos, o magus decidiu fazer o mesmo e observou aquele a sua frente: era realmente uma pessoa de porte incomum, de músculos moldados pela natureza selvagem, sua pele era morada de pinturas que retratavam uma época há muito perdida. O instrumento que ele segurava em sua mão indicava a resposta para a pergunta que Felipe desejava fazer: era uma lança rústica, cheia de laços e símbolos de força. Um Lancer havia sido invocado naquela noite.

“Não tem nada a falar, Mestre? Apresentações seriam o comum em uma situação como essa.” A fala surpreendeu Felipe, qualquer que tenha sido o resultado do julgamento, Lancer iria mantê-lo para si.

“Ah, sim, é claro. Eu sou Felipe Jonaso, o magus que invocou você para lutar na Guerra do Caminho Dourado.” respondeu o rapaz “Imagino que você seja um Lancer, certo?”

“Não precisa ser alguém muito perspicaz para descobrir a que classe pertenço” Lancer olhou de relance para sua arma “É um prazer em conhecê-lo, Mestre Felipe. Lutaremos lado a lado nesta guerra e sem dúvida alguma triunfaremos no final, em nome de minha vila e de Tupã.”

Finalmente a animação que Felipe achou que tomaria seu corpo começou a florescer – com um Servo de aspecto tão forte, tudo parecia possível. Ao esticar as mãos para cumprimentar Lancer, o jovem percebeu os Feitiços de Comando gravados em sua mão direita: era de fato um Mestre consumado e não havia mais volta, o único caminho disponível era em frente.

“Mestre, reconheço que acabei de chegar, no entanto… Vejo-me obrigado a pedir-lhe um favor.” O tom humilde do Servo surpreendeu Felipe, que não esperava tamanha cortesia de um guerreiro de figura selvagem.

“Não precisa embaraçar-se para pedir algo, Lancer. Não sei se poderei realizar o favor, mas não tenha receio em pedir algo para mim – a força que você me empresta lhe garante que eu faça qualquer coisa para você”

“O favor não é algo difícil fisicamente ou que requira habilidade, no entanto, você possivelmente estará se colocando em uma desvantagem estratégica e me dando maior controle sobre nossos embates. Ainda deseja ouvir o meu pedido?”

“Agora você me deixou intrigado, por favor fale logo.”

“Muito bem.” Lancer suspirou “Peço que fique sem conhecimento de minha real identidade por tempo indeterminado.”

A pergunta realmente tomou Felipe de surpresa. Ele conhecia a importância do nome de um Servo: quando você o sabe, também toma conhecimento de sua história, suas fraquezas, suas armas, etc. É uma grande vantagem conhecer a identidade de um inimigo, Felipe só não entendia o porquê da vontade de Lancer.

“Não me entenda mal, Mestre, mas… Vejo sua capacidade enquanto magus como menor do que a de um usual Mestre na Guerra pelo Caminho Dourado, você está sob maior risco de ser capturado ou interrogado do que qualquer outro. Não estou dizendo que sou incapaz de protegê-lo, muito pelo contrário, entretanto, é a melhor decisão estratégica que podemos tomar logo de cara.”

Felipe estava surpreso pela seriedade de seu Servo. Começava a compreender que talvez ele quisesse ganhar a Guerra tanto quanto ele – sabia que os Servos possuíam suas próprias vontades quanto ao Caminho Dourado, mas aquilo lhe parecia extremamente intangível até o momento da pergunta. A névoa de misticismo que cobria aquela figura invocada de outra realidade esvaía-se e no lugar, Felipe conseguia ver uma pessoa.

Após o fluxo de pensamentos, uma pontada de dor atingiu a cabeça do jovem. Ele percebera que já tinha desgastado bastante sua mente e talvez não fosse a melhor hora para tomar uma decisão importante.

“Me desculpe, Lancer, acho que não posso te dar uma resposta agora. Preparar toda essa invocação me deixou bastante cansado, é melhor eu descansar um pouco e pensar sobre o assunto. Você tem razão sobre as vantagens, mas devo refletir sobre quaisquer desvantagens que isso traga a nós.”

Lancer olhou nos olhos de Felipe, o garoto sabia que ainda não possuía a aprovação completa do Servo e erros de julgamento poderiam piorar sua avaliação. No fim, o guerreiro suspirou e compreendeu a situação de seu Mestre.

“Muito bem, concordo sobre você precisar de descanso. É uma lição que aprendi há muito tempo: devemos somente agir em total juízo e clareza, equívocos se acumulam e levam à derrota.”

“O que você fará enquanto eu estiver dormindo? Espero que não se sinta obrigado a manter guarda sobre mim.”

O Servo assentiu.

“Passarei a noite reconhecendo a área, preciso saber de todos os posicionamentos disponíveis a nós e aos nossos oponentes. Felizmente possuo a habilidade perfeita para esse tipo de missão.”

Felipe pensou em perguntar qual era a habilidade, mas hesitou no último segundo. Sentiu que Lancer não estava tão aberto àquele tipo de pergunta depois de seu pedido.

“Ok, parece bom pra mim. Caso você fique cansado, pode dormir aqui neste quarto mesmo.”

“Não precisa se preocupar com isso – Servos não precisam dormir.”

“Oh… Tudo bem então.”

O magus estava no meio de um gesto de despedida quando o Servo simplesmente sumiu da sala. Sua velocidade era de fato impressionante, pensou Felipe.

Sentindo o golpe que sua energia mágica havia tomado, Felipe voltou ao seu quarto e dormiu quase que instantaneamente. Nem mesmo o nervosismo de ter se tornado uma parte ativa da Guerra do Caminho Dourado o manteve acordado.