- Você prometeu que ia me ligar.

Na manhã seguinte, Absinthe foi acordada pelo som estridente do telefone tocando.

- Desculpe, Liz. Aconteceram umas coisas, eu me esqueci.

- Hum... Que tipo de coisas?

- Não o tipo que você está pensando.

- Como sabe o que eu estou pensando?

- Te conheço há tanto tempo que já sei ler sua mente.

- Hum. Então o que eu estou pensando agora?

- Está pensando em me perguntar sobre o que aconteceu noite passada em todos os possíveis detalhes.

- Bingo. Me poupa saliva. Pode começar a falar.

- Nada que mereça ser contado na verdade, e no final ele ainda me largou e saiu correndo pra sei lá onde na chuva.

- Uh, foi tão ruim assim?

- Foi.

- Credo.

- Nem me fale, eu estou preocupada.

- Por quê?

- Parecia sério...

- Ah, relaxa. Liga pra ele de novo e pergunta se está tudo bem.

- Eu não quero ficar acordando ele todo dia de manhã...

- Oi?

- Eu liguei pra ele ontem no mesmo horário...

- Oh... Então liga mais tarde.

- É o que eu pretendo fazer.

- Boa sorte amiga!

- Valeu Liz...

Ela desliga o telefone e enfia a cara na pilha de travesseiros amontoados em sua cama, preocupada e apreensiva.

- Seraw quy tah tuhdu bewn...?

É difícil se expressar com clareza com a cara enfiada num monte de travesseiros fofos. Por isso, traduzindo: “Será que está tudo bem...?”.

Sua mãe bate na porta, ela pula na cama e acaba caindo dela, arrastando um punhado de travesseiros consigo.

- Oh querida, você devia tirar parte desses travesseiros.

Hoje Emma estava vestida como uma mulher relativamente normal, em uma roupa bege de duas peças, com um blazer da mesma cor por cima e um par de sapatos de salto pretos, de salto de um tamanho normal.

- Bom dia mãe...

- Bom dia querida. – Emma sorri.

- O pai já saiu pra trabalhar?

- Cedo como sempre. Eu nem estava acordada.

Dois suspiros femininos frustrados.

- Quer descer e tomar café com a sua mãe?

- Claro mãe. Eu já desço.

- Estarei te esperando na sala de jantar.

- Certo.

Mesmo que Emma não tivesse a menor noção de seu espaço no universo, ainda assim era uma boa pessoa, e por mais que se esforçasse em parecer uma perua desalmada, quase sempre ainda parecia uma mulher gentil e agradável que de fato era.

E Absinthe sabia disso.

Também sabia que nos últimos tempos, sua mãe estava se sentindo muito sozinha. Seu pai quase nunca parava em casa e ela raramente tinha companhia.

Desce pra tomar café com sua mãe, senta na cadeira e tem alguns momentos agradáveis de conversa com sua mãe. Ao que parece, hoje ela chamaria suas amigas pra virem até sua casa discutir sobre o livro que todas combinaram de ler.

Mais tranquila por saber que sua mãe não estaria abandonada em casa, Absinthe se sente melhor pra ligar pra Alexis e perguntar se estava tudo bem.

- Alô? Ah, graças a Deus está tudo bem!... Você está bem né?!

***

Alexis tinha acabado de se jogar na sua cama, estava acabado, morto, esgotado, sua cabeça latejava como se fosse explodir, mas por alguma razão, a voz de sua presa preocupada com sua segurança o deixou mais tranquilo.

- Estou... Estou bem... Estou exausto, mas estou bem. Acabei de chegar em casa.

- O que houve?

- Meu irmão, levou um tiro, fui visita-lo.

- Deus! Ele está bem?

- Pessoas como Luka são difíceis de derrubar.

Ele joga os braços sobre os olhos, a mínima luz que entrava por debaixo da porta perturbava seus olhos.

- Estimas melhoras.

- Obrigado. E desculpe por largar você lá sozinha ontem...

- Tudo bem. Mas...

- Mas?

- Como você sabia que ele tinha levado um tiro? Quer dizer, fico feliz que você tenha chegado a tempo... Mas como você sabia?

Boa pergunta. Como ele sabia?

- Ele tentou me ligar. Ontem, enquanto você estava de olhos fechados, meu celular vibrou, e quando eu olhei a tela tinha 4 ligações perdidas da casa dele. Ele nunca me liga mais de uma vez, eu soube que era importante.

- Oh, entendo.

Pensou rápido.

- Olha, eu quero mesmo te recompensar por ter te abandonado ontem, que tal sair pra jantar?

- Hum... Me parece uma boa ideia.

- Ótimo. Quer que eu vá buscar você?

- Er... Não será um incomodo?

- Não. Eu realmente tenho assuntos pendentes por ai.

Entenda “tenho assuntos pendentes” por “preciso caçar um mestiço que cruzou a linha permitida e será julgado por mim e pelas minhas armas”.

- Eu vou te buscar quando terminar, está bem?

- Tudo bem.

- Até.

Desligando o telefone ele novamente foi tomado pela pulsante dor em sua cabeça, seu estomago girava em repulsa pela traição de Vincent.

- Terei de reunir a irmandade... – um suspiro de desgosto.

Abstraiu-se do sentimento crescente de que aquilo era um pressagio e voltou sua atenção a sua presa, estava mantendo o lado físico de sua mente adormecido, e desejava que continuasse assim por pelo menos mais alguns dias. Temia que ela se assustasse se tivesse contato direto com o predador que dormia no lado mais sombrio e egoísta de sua mente.

Era primário e venenoso, do tipo que envenenava sua racionalidade lentamente, um tipo doentio e frívolo, um tipo sucumbia aos desejos da carne muito mais rapidamente que o devido.

Se pensava muito nele, ele o olhava de volta, e isso fazia sua pupila se estreitar, e seus olhos se aguçarem na escuridão. Duas finas linhas negras no meio do mar prateado de sua íris, brilhando na escuridão.

Levantou horas depois, quando o dia virou noite, e se deparou com aquele olhar o encarando de volta no espelho, somente aqueles dois pontos no meio da escuridão.

- Os olhos de um predador...

Tinha os olhos de um grande felino carnívoro, e com certeza os caninos também.

Tinha fome.

Seus ouvidos se apuraram em meio ao silêncio, e puderam captar alguém passando na rua. Não precisou pensar muito, pulou da janela do quinto andar e viu a pobre garota de cabelos tingidos largar os livros que tinha nas mãos e encará-lo no mais puro pavor.

- D-Deus do céu!

Se preparava pra gritar, mas não teve tempo, ele cobriu sua boca com uma das mãos.

- Shh... Prometo que não vou machucá-la... Será rápido...

Fincou seus dentes na veia pulsante de seu pescoço, deixando o sangue verter da ferida fresca e inundar sua boca com o gosto férreo.

A garota, agora em contato com o veneno sutil que embebia a saliva do seu agressor, relaxou, soltando seu peso nos braços do estranho que agora drenava parte de sua vida das veias.

Como havia prometido, não a machucou, soltou-a e lambeu as feridas paralelas idênticas até que não restasse nem sequer sinal delas. Olhou em seus olhos e disse, em voz baixa e melodiosa, dando dois passos pra trás.

- Deixou seus livros caírem, foi um tombo feio. Se machucou?

Como que saindo de uma imensa cortina de fumaça, a garota limpou a visão, chacoalhando a cabeça de leve e dizendo.

- Não, não... Estou bem obrigada.

Ajudou-a a pegar os livros do chão.

- Tome mais cuidado, podia ter se ferido, o chão ainda está escorregadio por conta da chuva.

- Sim. Obrigada pela ajuda. – sorriu.

- De nada. Olhe por onde anda, hein?

- Sim. Farei isso, obrigada.

- Tenha uma boa noite.

Esperou que ela cruzasse a esquina caminhando em passos tranquilos e cantarolando uma melodia sobre dias de chuva e voltou para dentro de casa, sabendo que aquele episódio foi completamente esquecido, a droga em sua saliva garantia isso com mais certeza que qualquer outra coisa.

Se sentia menos abatido depois de se alimentar devidamente. Também não gostava de partilhar dos familiares do irmão, geralmente eram contaminados por narcóticos ou sofriam de graves doenças terminais ainda em desenvolvimento.

Filhos da noite sentem o cheiro de morte.

E Luka o fazia como nenhum outro, selecionava seus familiares pelo cheiro, todos os que eram escolhidos eram vítimas de algum vício, ou estavam nas fases iniciais de alguma doença incurável.

Sendo assim, pensando de forma fria, ele apenas levava pessoas que seriam levadas de qualquer modo. E mesmo que não sentisse nada em especial por suas fontes de vida, não as destratava ou fazia-as de escravas, pois também não tinha esse intuito. Eram apenas comida, não existe razão para se brincar com a comida.

- Acho que vou precisar de algo alcoólico... – ele se reclina sobre o batente da porta do seu quarto, contemplando a janela de onde tinha pulado faz alguns segundos.

Sabia que tinha de sair e ir julgar o mestiço que quebrou as regras e depois tinha que sair pra jantar com sua doce presa. Lembrou-se de como ela estava preocupada ao telefone, temendo por sua segurança, isso fez um sorriso lhe cruzar os lábios.

Por mais que pensar em sua presa o divertisse de modo bastante particular, era necessário sair e responder ao trabalho, pois o trabalho vinha antes de seus joguinhos de controle. Logo, esquecera-se dela por alguns instantes, pegou sua jaqueta de couro, uma de suas armas carregadas com balas untadas em sua própria saliva, misturada à água benta e saiu, saiu pra caçar um dos frutos do deslize que cometera no passado.

A verdade é que não havia se preocupado no passado, achava que, por pertencerem a espécies diferentes, nada aconteceria.

Mas estava enganado... Em parte.

A maior parte das fêmeas humanas não era compatível ao gene instável de um filho da noite, este acabava por se autodestruir antes que houvesse qualquer fecundação. Porém, haviam algumas poucas humanas, que tinham a força e a genética resistente o bastante para combinarem-se com a genética arisca e complexa desses habitantes noturnos.

E com a genética, veio a mutação.

Depois de combinados os genes humanos e vampíricos, tudo ficou confuso e distorcido, e todas as mulheres que geravam os filhos vampíricos, morreram ao fim da gestação. Pois seus herdeiros sugaram até a última gota de vida que lhe corria nas veias.

Por fim foram adotados por humanos, e quando alcançaram a adolescência, e sua genética congelou-se e parou de se desenvolver a caminho da morte como qualquer humano normal, seus olhos tornaram-se vermelhos e junto com sua vida, almas e os batimentos de seus corações, levaram também a vida dos pais que os haviam criado.

E foi quando os seus pais, progenitores, e mestres, descobriram o que se passava.

E então começou a guerra.