Londres, Inglaterra

24 de Março de 1872

Elizabeth estava se preparando para dormir quando ouviu um barulho deveras suspeito. Ela havia ficado até mais tarde lendo um romance da biblioteca da casa, todos já haviam ido para seus aposentos, e Elizabeth era a única acordada, pelo menos era isso que ela pensava até aquele momento.

As portas da casa eram de madeira e tinham um problema com rangidos. O barulho que Elizabeth ouviu era de uma das portas do andar de cima. Foi quase imperceptível, mas devido à quietude da casa, ela conseguiu perceber. Ela permaneceu em silêncio, esperando para ouvir mais alguma coisa, e neste momento uma luz acendou na cabeça de Elizabeth, hoje era o dia do Pandemônio, sua irmã estava indo para o tal evento.

Ela correu até a janela de seu quarto que dava para a entrada dos fundos da mansão Clark. Se o barulho estivesse correto, pelo tempo que havia passado, June já estaria saindo pela entrada e não seria burra de usar a principal. E foi exatamente isso que Elizabeth viu. June usando um vestido cor de vinho, uma máscara escondendo seus olhos e testa. E mais importante de tudo, ela estava entrando em uma carruagem desconhecida.

A irmã mais velha dos Clark balançou a cabeça em descrença. Até aquele momento estava se recusando a acreditar que sua irmã havia arranjado um pretendente e escondia de sua irmã. Custou para a realidade bater que a sua irmãzinha estava arriscando sua reputação impecável por um cavalheiro misterioso.O peito de Elizabeth doía, angustiada. June podia estar se metendo em encrenca e nem havia sequer avisado alguém de confiança.

Foi neste momento que ela tomou uma decisão. Ela abriu a primeira gaveta de seu guarda roupas e achou a máscara que havia usado em um baile há dois atrás e o maldito papel que Natalia havia lhe dado. Colocou a máscara nos olhos. Já havia desmanchado todo o seu penteado e seus cabelos caíam soltos em cachos por toda extensão das suas costas, mas ela não tinha tempo de refazê-lo, teria que ir desta maneira, precisava impedir um mal de ser feito. Abriu a porta do seu quarto devagar para não fazer nenhum barulho e desceu as escadas apressada.

Elizabeth andou por dois quarteirões, totalmente desacompanhada até achar um cabriolé de aluguel disponível. Tudo bem que Mayfair era um bairro relativamente seguro, mas mesmo assim uma dama sair desacompanhada neste horário era perigoso. Seguiu até o dito clube e o que ela viu, tirou seu fôlego.

O prédio era gigante, a arquitetura similar às construções gregas, luzes saindo por todas as janelas. Cavalheiros e damas mascarados entravam e saiam do cassino aos montes. Todos muito bem vestidos, ostentando ternos bem cortados e vestidos dos melhores tecidos. Elizabeth sentia no ar a luxúria e a ganância que aquele lugar esbanjava e entendia o fascínio que as pessoas tinham por lugares daquele tipo. Eles ofereciam uma fuga para um universo à parte em que as pessoas podiam ser quem elas quisessem.

Ela se aproximou da porta de entrada e viu um segurança lendo um romance publicado pela editora de seu pai. Clark teve que se segurar para não dar uma gargalhada, ela havia lido aquele volume e ficou surpresa pelo gosto do porteiro. Haviam algumas partes bem melosas, e ele parecia estar apreciando, seus olhos pareciam encantados e tinha um sorriso de canto de boca. Ela tossiu delicadamente, não querendo interromper o momento.

O segurança olhou para a frente e seu sorriso se fechou, dando lugar a uma cara bem fechada e mal humorada. Elizabeth arregalou os olhos assustada com a mudança repentina de humores.

—Por favor, eu gostaria de entrar, senhor- Ela sentiu que tanta formalidade era um pouco inapropriada para aquele momento, no entanto manteve a pose.

—Senha, por favor senhorita - com a cara fechada, o segurança colocou ênfase na última palavra, como se fosse uma pequena gozação da polidez de Elizabeth. Ela teve que morder a língua para não contar o final daquele maldito livro que ele lia tão intensamente minutos atrás. Ela deu a senha e o porteiro deu um passo para o lado sem falar mais nada, permitindo sua entrada.

Elizabeth entrou no clube e olhou em volta. Havia mesas espalhadas por toda extensão do salão. Ela concluiu que cada espaço era designado para um jogo específico. Nos dois andares de cima, havia quartos privativos, Elizabeth engoliu em seco. Se June realmente estivesse neste clube, seria bem difícil de achá-la no meio daquela imensidão. Ainda mais no dia de maior agitação do Royale, nem isso a caçula facilitou para ela.

Ela estava tentando olhar por cima da multidão para achar um vestido vinho, quando um cavalheiro passou rapidamente sem o menor cuidado e esbarrou nela. Elizabeth se desequilibrou e quase caiu. O cassino estava muito lotado devido ao Pandemônio, pessoas andando de um lado para o outro, mas aquele cavalheiro em questão não precisava ser tão rude com alguém que estava parada no meio do caminho.

—A senhorita está bem?- Elizabeth ouviu uma voz atrás dela. Se virou e viu um cavalheiro de cabelos loiros e olhos azuis quase transparentes. Ele não usava máscara, então ela podia analisar suas feições, delicadas, a face de um anjo. Era alto e delgado. Havia alguma coisa na postura dele que acionava um alarme na cabeça de Elizabeth. Ele era um anjo perigoso, isso sim. Mas Elizabeth estava muito vacinada contra esse tipo de encanto, por isso continuou a conversa, sem a menor afetação.

—Sim, está tudo bem. Obrigada, senhor …- Não sabia o nome do homem.

— Sem formalidades, por favor. Pode me chamar de Ethan. Sou um dos sócios do Royale- o cavalheiro ofereceu o seu melhor sorriso. Elizabeth levantou as sobrancelhas, tendo uma ideia. Uma pessoa que poderia ajudar a procurar June. Mas ela segurou a língua antes de se apresentar, caso ele soubesse sua identidade, talvez tentasse encobrir para seu sócio. No entanto, ao mesmo tempo, ela não havia pensado nesta parte no plano, não imaginou que encontraria com algum outro sócio que não fosse James. Ela não sabia o que dizer, um monte de ideias passaram pela mente dela, confundindo-a. Então, Elizabeth disse a primeira coisa que lhe visse a sua cabeça, o que foi um erro fatal.

—Ah então você pode me ajudar. Pode me levar até o senhor James? Temos um encontro marcado para esta noite.

Ethan franziu o cenho, confuso por um segundo. Ele olhou profundamente para as feições de Elizabeth, o que era um pouco difícil por conta da máscara. Por um segundo, Ethan esboçou uma pequena reação que ela não conseguiu reconhecer, ainda mais naquele lugar mal iluminado. Todas as luzes do Royale eram bem fracas, ela tinha impressão que era intencional para os associados se sentirem mais encobertos pela penumbra.

—Claro. Me acompanhe, por favor- Ethan virou-se e liderou Elizabeth pelo salão, passando com uma facilidade impressionante pelos apostadores e suas acompanhantes. Ela quase não conseguia acompanhar o ritmo das pernas longas dele. Elizabeth sentiu seu coração acelerar, uma dúvida pairava em sua cabeça, se Ethan havia percebido que ela era a irmã de June e um medo emergiu ,para onde ele estava levando-a?.

Seus pensamentos atordoados só foram interrompidos quando ele parou em frente a uma pequena porta, discreta, perto de toda opulência que as outras no mesmo corredor ostentavam. Elizabeth respirou fundo, nervosa com o que encontraria atrás daquela porta. Talvez James e sua irmã em uma posição comprometedora? Ou James sozinho em seu escritório? Ou Ethan a trancaria naquele cômodo e tentaria retardá-la de encontrar sua irmã? Mas quando Ethan abriu a porta para ela, Elizabeth se decepcionou com a visão do cômodo.

Não havia James, muito menos June. Aquele cômodo era claramente um escritório, com um sofá, poltronas, um armário, uma mesa. Sentado à mesa, havia um cavalheiro de cabelos longos e escuros mexendo um livro que ela presumiu ser da contabilidade. Sua pele era num tom chocolate belíssimo. Ele olhou diretamente para Elizabeth, seus olhos tinham um tom mel e carregavam uma intensidade inigualável. Ela não pode deixar de notar o quão belo aquele cavalheiro em questão era, uma beleza deveras rara de encontrar em meio à aristocracia inglesa.

—Duque, essa senhorita está procurando por James- Ethan havia acabado de chamar aquele rapaz de Duque? Que tipo de apelido era esse? De qualquer maneira, Duque olhou acima da cabeça de Elizabeth, parecia tentar decifrar alguma coisa. Ela presumiu que era Ethan tentando falar silenciosamente algo que ela não poderia saber, provavelmente que ela era a irmã de June e que estava procurando-a. Elizabeth permaneceu em silêncio, esperando por uma reação do dito sócio.Duque expressou uma pequena surpresa quando entendeu o que ele dizia, mas logo disfarçou exatamente como Ethan havia feito.

—Que estranho. Eu tenho a impressão que James saiu faz algumas horas. Não sei quando estará de volta - Duque e Ethan trocaram um olhar cúmplice.

—Acho que seria melhor a senhorita regressar em alguma outra noite, porque hoje, pelo visto, ele está indisponível. - Ethan já estava abrindo a porta, indicando para Elizabeth ir embora. Eles realmente esperavam que ela cairia nesse papo? James estava com June em algum lugar daquele maldito cassino e aqueles cretinos estavam tentando segurá-la de achá-los. Havia se mantido relativamente calma até aquele momento, mas uma pequena indignação surgiu com a simples dispensa dos dois. Desistiu de manter sua fachada de desconhecida.

—Ah está bem. Vocês dois sabem muito que eu sou a irmã de June Clark e estou aqui procurando-a. Então acho melhor vocês me dizerem onde ela está, ou eu posso sair batendo de porta em porta até achá-los em uma posição comprometedora e obrigar o senhor Carter a se casar com June.- Elizabeth levantou a voz, usando um tom confiante, não sairia daquele clube sem a irmã.

Duque franziu o cenho, parecia irritado. Levantou-se da sua cadeira e ela percebeu que ele era alto, não tanto quanto Ethan, mas o suficiente para fazer uma sombra sobre a sua cabeça. Elizabeth também teve um pensamento inapropriado de que os músculos do braço de Duque saltavam sobre a camisa, já que ele não estava usando paletó. Elizabeth agradeceu silenciosamente a vestimenta pouca apropriada daquele cavalheiro em questão.

—Acalme-se, senhorita Clark. Nós não temos nada a ver com seus problemas com sua irmã. E nós certamente não deixaremos a senhorita circular por este clube desacompanhada abrindo todas as portas dos nossos quartos privativos de jogos, vamos chamar a segurança e retirá-la imediatamente- o tom dele era firme e seus olhos estavam completamente intempestivos. Elizabeth ficou completamente ultrajada com a audácia daquele sujeito, tratando-a como um cachorro de rua, pronto para expulsá-la de seu clube de meia tigela. Que absurdo! Arrependeu-se imediatamente de admirar as formas daquele homem autoritário.

—O senhor diz que não tem nada a ver com meu problema, mas aparentemente está encobrindo o causador do meu problema, então parece que está se metendo sim. Então, estou no meu direito de procurar pela minha irmã neste maldito antro da perdição.- Duque levantou as sobrancelhas, surpreso com o vocabulário da dama. Elizabeth levantou ainda mais o tom de voz, irada com a petulância daquele homem.- E aí de vocês caso me coloquem para fora porque eu peço para o meu pai fazer uma investigação jornalística no Royale e eu tenho certeza que este local tem uns belos podres, prontinhos para serem revelados

Ela semicerrou os olhos, balançando a cabeça com um pequeno sorriso irônico no rosto. Elizabeth detestava usar a carta do The Globe, mas não tinha muita escolha naquelas circunstâncias. Duque permaneceu em silêncio por alguns segundos depois da afirmação dela. Ethan soltou um pequeno assobio, impressionado com o confronto entre aquelas duas forças da natureza, a tempestade e o furacão. Ambos intensos e perigosos.

Duque, ao ouvir a reação do amigo, travou seu maxilar e disse num tom sóbrio:

—Ethan, vá buscar James e June, traga-os para cá- Pelo visto, ela havia ganhado aquele impasse. A porta se fechou atrás dela e Elizabeth foi deixada a sós com aquele homem mandão, belo e arrogante.

Elizabeth virou o rosto, se recusando a encará-lo e analisou a pintura da parede do seu escritório.

—Não entendo o seu tom comigo e meu sócio. Nós não estamos tendo encontros às escuras com sua irmã- Duque baixou seu tom, mas ainda estava na defensiva. Elizabeth virou sua cabeça e respondeu.

—Mas os dois sabiam exatamente o que estava acontecendo e tentaram me enganar, e o senhor até ameaçou me expulsar. E pela lei, cúmplices também vão para a cadeia. -ela semicerrou os olhos novamente, sua irritação ainda não havia passado completamente, seu coração estava ligeiramente acelerado.

Duque levantou as duas mãos no ar, indicando que desistia e se declarava culpado. A tensão dentro da sala era quase palpável, Elizabeth não sabia explicar exatamente porque estava tão irritada, Duque só estava tentando defender seu amigo. Mas alguma coisa no tom que Duque havia usado fez Elizabeth explodir.

Os dois permaneceram em silêncio por um tempo. Elizabeth analisava os pequenos detalhes da sala, os quadros cheios de vida, os móveis de couro, o armário no fundo da sala cheio de objetos curiosos. Elizabeth estava tentando decifrar exatamente o conteúdo daquele armário, quando percebeu Duque a observando, analisando-a . Ela retribuiu o olhar, perguntando curta e grossa.

—Tenho alguma coisa no meu rosto?- esquecendo a condição principal das mulheres para entrarem no clube.

—Sim, uma máscara. Por isso que estou olhando tanto para a senhorita. Fica difícil o que está sentindo verdadeiramente, o quão irritada está- o tom de Duque era de um desafio. Duvidando que a dama tirasse a máscara e revelasse sua identidade por completo

Com essas palavras, Elizabeth dobrou o braço até atrás de sua cabeça e desatou o nó de sua máscara, mostrando sua face para aquele cavalheiro totalmente desconhecido. Duque percorreu o olhar por todo o seu rosto, analisando cada pequeno detalhe e Elizabeth nunca se sentiu mais nua em toda a sua vida, mesmo estando completamente vestida. Suas bochechas ficaram coradas e sua respiração ligeiramente acelerada. Não sabia realmente o que pensar daquele homem. Eles estavam simplesmente se encarando, mas na cabeça de Elizabeth aquele olhar era devorador.

A porta do escritório abriu, dando um susto em Elizabeth, e entraram June, James e Ethan pela porta. Ela respirou fundo, tentando manter o mínimo controle naquela noite que parecia estar ficando cada vez mais maluca. Primeiro sua irmã sai na calada da noite para ir a um cassino se encontrar com um homem, depois ela é levada até um dos sócios do Royale e se sentiu extremamente atraída por ele. Pelo amor de Deus! Precisa pegar as rédeas de volta!