— Desculpe mas a senhora errou o endereço, nem meu pai nem minha mãe tinham irmãos.

— Sua tia Mauba não deve ter falado de mim, eu precisei ir embora logo depois que seus pais morreram, resolver uns assuntos, mas eu cuidei de você quando nasceu, troquei suas fraldas...

— Espere, o que?

— Vou começar do começo. Eu e seu pai somos irmãos gêmeos, nos mudamos para perto de sua mãe quando nós três tínhamos dez anos, eu e Helena éramos melhores amigas e ela e Felipe também no começo antes de, é claro, começarem a namorar. Fomos muito unidos até o acidente e eu te vi dar seus primeiros passos, falar sua primeira palavra, sorrir pela primeira vez...

A mulher olhava para Scar com doçura, mas a garota ainda não estava entendendo muita coisa, será que realmente Clara era sua tia? E se fosse como nunca tinha ouvido falar dela?

— Eu sei que você deve estar confusa, mas eu tenho algo aqui para provar o que eu estou falando a verdade.

Clara começou a revirar sua bolsa até entregar a Scar um papel de aparência antiga todo amassado, dobrado ao meio, que parecia estar dentro da bolsa por no mínimo uns quinze anos.

— Essa foto estava em um porta-retratos que costumava ficar nessa sala – ela olhou ao redor – mas um ano antes de morrer sua mãe a entregou para mim ela disse que se algo acontecesse a ela isso deveria chegar até você, por isso mesmo tendo ido embora ela nunca saiu da minha bolsa esperando o dia em que poderia chegar até você.

Scar desdobrou e quase instantaneamente sentiu as lágrimas atingirem seus olhos, era realmente uma foto de seus pais mais precisamente uma foto dos três juntos, sua mãe era exatamente como se lembrava tinha cabelos ruivos longos exatamente como os dela, um sorriso brilhante na face com uma leve maquiagem que ressaltava seus olhos cinza como uma tempestade mas tão quentes como um dia de sol. Já seu pai que não parecia menos feliz os cabelos negros como os da mulher a frente da garota penteados para o lado onde formavam uma leve franja maçãs do rosto bem desenhas e os olhos tão azuis quanto os da filha, e quanto a ela, ela era apenas um bebezinho de vestido e uma leve penugem ruiva na cabeça entre os dois mas ambos olhavam para ela.

— São minha mãe e meu pai? – Sua voz estava levemente fanha e só então percebeu que chorava copiosamente.

Clara confirmou com a cabeça e prosseguiu:

— Você tinha seis meses.

— Eu, eu não sei o que dizer. Obrigada, eu não sei o que aconteceu com as coisas deles eu nunca tinha visto uma foto – limpou o canto dos olhos enquanto continuava a encarar a foto – meu Deus, onde está minha educação? Eu estou começando a fazer o almoço, você quer esperar para comer?

— Não, querida, não precisa, eu já estou de saída, mas nós manteremos contato – pegou um bloquinho de papel que estava sobre um criado mudo sacou uma caneta da bolsa e rabiscou algo, entregando a Scar em seguida – esse é meu número me ligue sempre que precisar de algo.

— Manteremos mesmo eu ainda tenho tantas perguntas.

— Eu imagino que tenha e todas elas serão respondidas em seu devido tempo.

Clara abraçou Scar com força como se esperasse por aquele momento a anos, e ao que parecia realmente esperava, depois disso saiu da casa deixando a garota ainda com lágrimas nos olhos e apenas um nome em mente, “Arthur”.

Tão logo terminou o almoço Scar gritou tia Mauba e disse para a tia que precisava fazer um trabalho com uma amiga, pois não tinha tempo de esperá-la dormir precisava falar com Arthur enquanto tudo ainda estava fresco em sua mente.

Saiu em disparada pelo portão de sua casa a foto pesando cem quilos no bolso de shorts e depois do que pareceram horas – mas que na verdade não chegava nem a um minuto – Scar tocou a campainha dos Castela.

— Scar meu bem chegou cedo, mal comecei a preparar suas rosquinhas.

Marina era absurdamente bonita, cabelos vermelhos cortados um pouco abaixo dos ombros, sardas espalhadas pela região do nariz e grandes olhos azuis opacos, porém mesmo sendo bondosa, carinhosa e gentil, Scar sabia que a mulher escondia uma grande tristeza, pois Fernando pai de Arthur havia morrido quando o garoto tinha seis anos e ela sabia que Marina amava extremamente o marido, haviam fotos dele por todos os cantos da casa e de acordo com o próprio Arthur ela nunca havia arrumado nenhum namorado após o acontecimento.

— Marina... eu preciso... falar com o Arthur...

Percebeu então que estava ofegante, devia ter corrido o caminho inteiro até a casa o amigo.

— Scar aconteceu alguma coisa? – Marina estreitou os olhos daquele jeito que fazia parecer que ela conseguia enxergar até a sua alma.

— Não, nada, eu só preciso falar com o Arthur, uma coisa da escola.

— Ele está no quarto – ela continuava com o mesmo olhar mas mesmo se sentindo culpada Scar não tinha tempo de contar-lhe, Arthur precisava ser o primeiro a ouvir a história, era isso que melhores amigos faziam.

Seguindo os The Killers que tocavam que eram apenas fugitivos Scar encontrou a porta de mogno pintada com um enorme sorriso de palhaço inspirado no lendário Coringa de Heath Leger, era por essas e outras que ela adorava Arthur.

Bateu várias vezes na porta o que a fez ficar meio ofegante novamente, mas logo o amigo a atendeu preocupado.

— Scar? Chegou cedo.

— Olha isso – empurrou a foto na mão dele enquanto invadia o quarto e caía na cama.

— Você teve uma filha quando? E quem é esse cara?

— Esse bebê não é minha filha, esse bebê sou eu, esse cara é meu pai e a mulher minha mãe.

— Wow, vocês são parecidas – Arthur deitou-se ao seu lado – onde você achou essa foto?

— Esse é o lado estranho, eu não achei, deram para mim.

— Tia Mauba teve um ataque de lucidez?

— O pior é que não – Scar contou-lhe toda a história envolvendo tia Clara.

— Meu Deus – foi a única coisa dita pelo garoto após Scar terminar– como você está se sentindo? É um baita baque – ele segurou sua mão.

— Eu não sei, é... é tudo tão confuso! – Sentou-se em um impulso segurando os longos e rubros cabelos entre os dedos – essa tia Clara que apareceu do nada eu não tenho certeza se confio nela, porque poxa ela ficou fora por treze anos! Onde ela estava esse tempo todo? Ela diz que me viu andar e falar mas onde ela estava em todas as minhas gripes, minhas cólicas e tudo? Marina parece muito mais uma tia amorosa do que ela! Mas por outro lado ela me trouxe uma foto dos meus pais e pareceu tão carinhosa, eu realmente não sei o que pensar, não sei – lágrimas desciam pelo seu rosto, estava realmente vivendo uma montanha russa emocional.

— Hey, hey Vermelhinha calma, calma – Arthur envolveu-a em um abraço protetor acariciando seus cabelos – lembre-se não importa o que aconteça eu estou aqui e sempre vou estar, ouviu bem?

— Eu sei é só... Argh! Do nada eu tenho uma tia que nunca vi na vida! Quais são as probabilidades disso acontecer?

— As probabilidades eu não sei mas isso ta parecendo o roteiro daquela novelinha besta da Disney que você gostava quando a gente era menos como era mesmo o nome Nonoletta?

— Bobo – Scar acertou-o com um travesseiro – essa é uma música italiana antiga, o nome da novela era Violetta e não era besta.

— Era sim, Vermelhinha eu te amo mas nunca entendi seus gostos Disney, Hannah não sei o que lá os Feiticeiros de Nova York.

— Eu fui uma criança nos anos 2000 é óbvio que eu tenho esses gostos Disney, e é Hannah Montana e Os Feiticeiros de Waverly Place ta? – Nesse ponto Scar deitara-se sobre o peito de Arthur.

— Tá, ta, o médico falou que não era pra discordar.

— Idiota – estalou um tapa no braço do garoto onde estava agarrada depois se entreolharam e começaram a rir.

Por um momento sentiu-se bem novamente não havia mais confusão nenhuma em sua vida, eram apenas ela e Arthur, rindo, deitados no quarto dele como sempre fora, porém em algum momento pararam de rir mas continuaram a apenas se olhar era como se o mundo tivesse se tornado apenas aquele pequeno espaço entre quatro paredes, ela agarrada ao braço dele e deitada sobre seu peito a outra mão dele que acariciava lentamente sua cintura lhes envolvendo em uma nuvem de energia e corações acelerados, sem perceber Scar fechara os olhos e abrira levemente a boca sem perceber que o garoto fazia o mesmo e seus lábios iam se aproximando... se aproximando...

— Arthur! Scar! Venham comer! – Gritou Marina.

Como uma bolha de sabão estourando os dois foram arrancados abruptamente de seu mundinho, ambos pularam rapidamente cada um para o lado, Scar abaixou a cabeça não se atrevendo a encará-lo pois tinha certeza de que seria impossível diferenciar seu rosto e seu cabelo naquele momento, sentia-se como Gina Weasley em A Câmara Secreta.

— Crianças as rosquinhas vão esfriar – Marina colocou a cabeça dentro do quarto – aconteceu alguma coisa? – E lá estava O Olhar novamente.

— Aqui Marina – Scar pegou a foto esquecida em cima da cama e a entregou a mulher, feliz por poder concentrar-se em outra coisa – vamos comer e eu lhe explicarei tudo.

— Te creo, te creo...

Cantarolava Scar em frente a seu espelho enquanto terminava de desembaraçar os enormes cabelos ruivos, Arthur não devia ter lhe lembrado de sua novelinha de pré-adolescente, agora ela estava com aquela música besta na cabeça, tudo bem nem era tão besta assim, era até bonitinha, mas ela tinha dezesseis anos! Não devia ficar cantando Violetta por aí!

A parte boa é que estava na segurança de seu quarto, ninguém nunca a ouviria cantar aquilo, poderia cantar o quanto de Violetta quisesse!... Pensando bem era melhor ela colocar um pouquinho de Coldplay para tocar e esquecer aquela música.

Dera o play em Mylo Xyloto, quando seu celular alertou uma mensagem de Arthur.

O filme fica para amanhã. Uma pena eu estou quase me esquecendo de como se pronuncia Wingardium Leviosa.

Eles realmente não assistiram ao filme, se mantiveram ocupados durante um tempo comendo rosquinhas e explicando para Marina sobre a existência de Clara depois eles viram que realmente não havia nada para se dizer um ao outro após o ocorrido no quarto de Arthur, e Scar acabou por quase sair correndo da casa do amigo, era um tanto quanto surpreendente ter recebido algo dele, mas percebeu que sorria e que aquela mensagem era provavelmente uma das melhores coisas que acontecera a ela o dia inteiro, pelo menos ela e Arthur estavam bem. Como devia ser.

É leviÔsa não leviosá!

Digitou rapidamente antes de pegar novamente a foto de seus pais, bom os outros estavam certos, ela e Helena realmente tinham coisas em comum além do cabelo o formato de sua boca e da boca da mãe era o mesmo e o jeito em que seus olhos se curvavam ao sorrir.

Uma grossa lágrima manchou o papel. Gostaria de poder perceber tudo aquilo tocando a face da mulher.

Meu Deus! Como estava sentimental! Parecia ter assistido Moulin Rouge, A Menina que Roubava Livros e Lilo & Stich tudo no mesmo dia. Colocou novamente a foto no criado mudo, virando-se para dormir, depois de um longo dia isso era tudo que ela precisava.

— Lipe! – Gritou Helena quando viu que o marido não a acompanhava.

— Corre Lena! Você e a Scar precisavam ficar seguras! Esse monstro vai vir atrás de mim de qualquer jeito!

— De nós! Eu não posso te deixar! Eu não quero! – Lágrimas desciam pelos grandes olhos acinzentados da mulher que agora mais do que nunca lembravam uma chuva torrencial – Vamos acabar com isso juntos como sempre fizemos!

O homem beijou a cabeça de Scar que dormia serenamente no colo da esposa e voltou-se para respondê-la...

Beep! Beep! Beep!

Scar acordou com o grito preso em sua garganta. O que diabos fora aquilo? Com as mãos tremendo desligou o despertador do celular para só então perceber que sua velha camiseta de pijama grudava em seu peito devido ao suor, o sonho havia sido real demais, colorido demais para ser apenas isso.

Viu-se totalmente sem sono o que fez com que se arrumasse mais depressa do que nas outras manhãs onde se arrastava morrendo de sono e demorasse em torno de uma hora para ficar totalmente pronta, dessa vez, no entanto, não se passaram nem vinte minutos, ou seja, ela tinha quarenta minutos para fazer o que ela bem entendesse aquela manhã, podia por exemplo ver um episódio de How I Met Your Mother ou Friends no Netflix ou até mesmo checar se estava passando The Big Bang Theory... As possibilidades eram infinitas!

Ao colocar sua mão na maçaneta do quarto percebeu algo de estranho, sua mão emitia um brilho vermelho fraco, como se o sol batesse mas não o dia estava nublado, e ao levantá-la o brilho havia sumido exatamente como aparecera, assim como mágica.

— Estranho – sussurrou continuando a encarar a própria mão, mas ao perceber que provavelmente era alguma ilusão de ótica proporcionada pelo fato de ter acabado de acordar e seu cabelo.

Desceu as escadas e deu play em seu episódio favorito do seriado favorito de todos mas nem mesmo Phoebe gritando “My eyes Chandler and Mônica! My eyes!” fizera se esquecer do sonho, o olhar daquelas pessoas, eram seus pais ela sabia disso. Mas como raios podia se lembrar? Diabos! Vira a si própria dormindo! Era tudo tão confuso.

Talvez se tentasse esquecer tudo isso as coisas voltassem ao normal, é era isso que devia fazer esquecer e assistir Friends, ótimo, essa era uma boa filosofia de vida.

Talvez até fizesse um vídeo ao som de The Remebrandts e jogasse no youtube com esses dizeres.

“Esqueça e Assista Friends” ia se tornar viral.

— Scar! – Foi arrancada de seus sonhos no palco de algum programa de domingo pelo seu amigo que a gritava.

— Já vou! – Respondeu desligando a TV e jogando a velha mochila pelo ombro.

— Aconteceu alguma coisa? – Arthur questionou assim que a vira na porta da casa.

— Como você sabe?

— Eu já disse, eu te conheço mais do que você imagina, agora fala o que pode ter acontecido entre ontem 23h00 e hoje.

— Não foi nada, só um sonho maluco com meus pais.

— Quer falar sobre isso?

Sem se segurar a garota narrou o sonho com a maior riqueza de detalhes que conseguiu e Arthur a escutava parecendo leve e estranhamente assustado.

— E o mais estranho de tudo isso é que minha mão brilhava quando eu acordei como se o sol estivesse batendo nela – ela ergueu novamente a mão na altura dos olhos mas estas já não emitiam luz alguma.

- Você já pensou que pode ser efeito da luz no seu cabelo? – Arthur encarava um ponto fixo na sua frente.

— Dá uma olhada no tempo, a luz no meu cabelo não é uma opção.

— Olha, já estamos atrasados para a escola – Arthur checou o celular – é melhor nos apressarmos se não quisermos chegar atrasados.

Scar ficou quieta mas tinha a nítida impressão de que o amigo estava tentando esconder algo dela. E isso a machucava , nunca em seis anos de amizade Arthur havia feito tal coisa, porém preferiu ficar calar-se falar algo naquele momento só iria piorar as coisas.

Terça feira era seu dia favorito na escola, tinha sociologia, história e português tudo no mesmo dia, suas matérias favoritas, então esquecer-se do ocorrido pela manhã foi fácil, porém mesmo assim seu sonho ia e voltava de sua mente, porém agora tudo parecia ainda mais bagunçado, por isso preferiu fechar-se, tentou se concentrar ao máximo em tudo que fazia.

Mas a hora de ir embora significava ficar sozinha em casa com tia Mauba e deixar sua mente voar, na maioria das vezes isso a deixava feliz, porém naquele momento lhe dava certo medo das peças que sua mente podia lhe pregar.

— Nos vemos amanhã – Arthur plantou um beijo no topo de sua cabeça e tentou se afastar para sua casa mas ao invés de soltá-lo Scar agarrou-se ainda mais ao amigo.

— Hey o que foi?

— O sonho, a luz na minha mão... estou com medo de tudo isso – Arthur apertou-a ainda mais contra seu corpo.

— Vai ficar tudo bem, eu te prometo.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Eu apenas tenho confie em mim – ele acariciou a bochecha dela com a ponta dos dedos e seus olhos se prenderam a boca da garota e novamente os dois foram envolvidos naquela névoa que nenhum deles conseguia explicar.

— Qualquer coisa não pense antes de me ligar – Arthur quebrou o contato e beijou-lhe novamente a cabeça antes de se afastar de vez.

Scar ficou parada ainda por um tempo observando seu amigo se afastar lentamente até sua casa, e apenas se moveu quando o viu desaparecer dentro dos muros.

Ao entrar dentro da casa encontrou tia Mauba dormindo no sofá com um livro de sudoku jogado em seu colo.

Deixou a idosa assim, e foi preparar-lhe o almoço, fez questão de colocar algo bem alto e barulhento em seus fones - Black Sabbath lhe era uma boa pedida – para fazer questão de não deixar sua mente pensar em nada além de picar legumes e refogar o arroz.

Passando um pouco das 13h00m da tarde serviu tudo na velha mesa da casa, e decidiu ser a hora de acordar tia Mauba.

— Tia - Scar chamou a idosa - o almoço está pronto.

Mas ao invés de levantar reclamando de qualquer coisa tia Mauba continuou parada, não moveu um único músculo.

— Tia, tia acorda - a garota tentou novamente, sem resposta o que a fez entrar em desespero, ela chacoalhou a tia diversas vezes e sentiu as lágrimas começarem a atrapalhar sua visão - tia, tia Mauba, por favor, levanta! Sou eu Helena! Levanta!

Mas nada, sua tia estava morta.