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*Capítulo 07*

Sinestesia

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O cheiro... É tão horrível...

Sangue.

Jorrando, espalhando-se pelo chão. Tingindo seus olhos e o mundo que via através deles. Tudo era tomado por aquela odiosa cor.

Vermelho.

Fluindo, levando a vida para longe.

Dor... muita dor...

Angustiante, alastrando-se por suas veias, penetrando em sua carne, corroendo os ossos. Rasgando a alma.

Frio...

Porque estava tão frio? Tão, tão gelado...



E escuro...

As sombras lhe envolviam. Descendo, afundando mais e mais na profunda escuridão vazia.

Vozes.

Passos.

Próximos, cada vez mais próximos.

Uma, duas... Várias vozes diferentes falavam. O som ecoava, as palavras flutuavam distantes e quase aleatoriamente.

"... abominável."



"Cuidado... fiquem em alerta..."

"Avisem os outros..."

"massacre."

(...)

"... mortos. A família inteira?"

" Os pais..."

"... até as crianças?... os corpos..."

(...)

"... procurem pela casa..."



Uma voz soou mais clara entre as demais.

"Aqui! Encontrei!"



Uma mão tocou-lhe na testa.

" Você pode me ouvir?"

"Vamos... Resista!"

"Acorde!"



" Abra os olhos!"

E lentamente...

"Abra-os! "

Ele acordou.



Deitado na cama, Zero entreabriu e fechou os olhos algumas vezes enquanto a imagem do teto ganhava foco. Pela janela, um facho de luz pálida atravessando as cortinas era a única fonte de iluminação dentro do quarto. Apesar de ter acabado de despertar, ele sentia-se exausto. Parecia até que em vez de tentar dormir, havia corrido quilômetros .

Ele revirava-se e contorcia-se sobre a cama. Pontadas de uma dor aguda o apunhalavam por todo o corpo e suas mãos agarravam-se com força no lençol, rasgando em pedaços o tecido de algodão branco. Quando tentou levantar-se, uma vertigem seguida de uma dor intensa nas laterais de sua cabeça o obrigaram a recuar, fazendo-o desabar novamente no colchão.

A dor o atingia impiedosamente numa espécie de ressonância, como se badaladas de um sino gigantesco colidissem nas paredes de seu cabeça. Imagens, cheiros, sons e texturas misturavam-se e distorciam tudo a seu redor. Estava a beira de um colapso. Logo explodiria.

Isso é ruim...

Imagine ter a capacidade de ouvir cada som, por mais suave que fosse, desde os mais distantes até os quase imperceptíveis. A respiração, a pulsação sanguínea das pessoas que lhe cercam, os batimentos cardíacos de um pássaro que cruza o céu.

Ter o olfato mais apurado, com o qual você poderia distinguir os mais diversos ingredientes de um único prato ou as notas aromáticas de um perfume simplesmente apreciando sua fragrância; identificar no meio de uma multidão cada um dos indivíduos através de seus odores característicos ou encontrá-los mesmo que estejam a longas distâncias apenas memorizando-os e seguindo seus rastros.

Sentir as vibrações do ar envolverem tudo a seu alcance e as gotas de chuva que caem sobre o solo. Ver com clareza coisas que seriam indistinguíveis para os olhos dos outros. Guiar-se no escuro como se fosse dia.

Zero é capaz de fazer cada uma dessas coisas.

Agora pense em como seria possuir toda essa percepção sensorial estando no centro de uma cidade movimentada, com carros buzinando, diversas pessoas falando em voz alta, poluição e lixo.

Ou estar dentro da sala de aula tentando se concentrar na leitura de um livro, terminar um teste ao mesmo tempo em que no andar superior carteiras são arrastadas, alunos pisoteiam o chão, discutem no refeitório e gritam durante uma competição esportiva.

Ou ainda, - no caso dele em especial - simplesmente estar no campus de uma Instituição gigantesca com centenas de pessoas trabalhando e deslocando-se, máquinas e aparelhos apitando, telefones tocando...

E apesar de você estar a vários metros de distância enfurnado dentro de um prédio velho e desbotado nos fundos da propriedade; seu corpo continua a receber simultaneamente a todas estas informações ampliadas centenas de vezes, a ponto de você mal conseguir organizar seus próprios pensamentos.

É estressante demais.

Por isso, ele geralmente reprimia a maioria dos próprios sentidos até quase atingir o nível de um humano normal, liberando-os apenas durante as missões e caçadas onde teriam maior utilidade.

Porém, naquela noite estava sendo difícil manter tudo sob controle. Afinal, não é muito simples manter a mente concentrada enquanto você sente dor como se seu crânio fosse quebrar.

Hesitante, ele conseguiu se arrastar até a beira da cama. Sua pele estava gelada. Suas mãos e pernas tremiam. A garganta e o estômago queimavam.

Ele tinha sede.

Com uma das mãos, tateou desajeitadamente à procura de algo em cima da mesa de cabeceira e finalmente apanhou uma pequena caixa de plástico transparente recheada de comprimidos brancos.

Pílulas de sangue.

Retirou o lacre e entornou todo o conteúdo, engolindo-os de uma só vez. O sabor era repulsivo e provocava-lhe náuseas. Não era capaz de saciá-lo, mas o manteria razoavelmente estável.

E razoavelmente, para ele, era muito melhor do que nada.

Conforme as pílulas agiam em seu sistema, o quarto parou de girar, a turbulência em sua mente se dissipou e ele retornou a seu estado de autoconsciência. A dor passara de agonizante para quase suportável. Não que isso significasse um grande progresso, de qualquer forma. Porém, foi o suficiente para que conseguisse se levantar da cama, então já estava bom o bastante.

Se lhe perguntassem quantas vezes na vida tivera pesadelos como aquele, ele provavelmente não conseguiria responder. Foram tantas noites que era de se esperar que os sonhos não o assustassem mais. E, de fato, com o passar dos anos ele deixou de temê-los. Mas nunca se acostumaria com a presença deles.

Olhando a seu redor, as coisas pareciam ir novamente para o devido lugar. O velho assoalho de madeira estava lá, frio e duro sob seus pés descalços. O teto e as paredes que algum dia foram pintadas em tons pastéis e que agora eram cinzentos e banhados pelas sombras; O estreito e rústico guarda-roupa, a cama e o criado-mudo que compunham a pouca mobília do quarto. Mais uma vez, tudo estava onde deveria estar. Tudo, exceto ele.

Quanto tempo teria conseguido dormir? Pelo jeito, não muito.

Por intuição, sabia que o relógio estava marcando cerca de vinte e uma horas. Zero adormecera pouco antes das seis. Três horas e onze minutos de sono. Um novo recorde para ele, mas ainda insuficiente para repor uma semana inteira de vigília.

Inspirou e expirou devagar, finalmente deslocando-se. Seu "dia" acabou de começar, não poderia desperdiçá-lo daquela maneira mofando no quarto, não é? No fim das contas, tudo que lhe restava a fazer era seguir em frente. Precisava, já que este ciclo tendia apenas a piorar.

Foi até o guarda-roupas, despiu-se e vestiu uma camisa de mangas longas e uma calça jeans escolhidas ao acaso. Seguiu para escovar os dentes no banheiro e retirar os resquícios do sabor metálico das pílulas em sua boca.

Após lavar-se, olhou a própria imagem no espelho pregado na parede. Um rapaz de dezenove anos lhe encarou de volta. Fazia um bom tempo que não vislumbrava o próprio reflexo e ver a si mesmo daquela maneira repentina foi surpreendente.

Era como olhar para um desconhecido.

As feições elegantes, a pele lisa e pálida como mármore, o rosto triangular emoldurado por cabelos prateados e aqueles grandes olhos cor de ametista que ele se acostumou a chamar de 'seus' agora pareciam pertencer a outra pessoa.

De fato, ele possuía um rosto muito bonito. Lindo, até.

Mas não para Zero. A única coisa que ele conseguia ver e reconhecer naquela imagem era a face de um espectro. Alguém que se negava a desaparecer mesmo após ser tragado pela morte.

Sem alma. Vazio.

Oh, sim...

Ele estava morto. Desde àquela maldita noite.

No espelho, o espectro continuou a encará-lo com uma expressão hostil, e embora não soubesse a razão exata, Zero sabia que aquele estranho desprezava-o. E o sentimento era recíproco.

Quando nenhum dos dois desviou o olhar, o desprezo transformou-se em raiva. Zero, incapaz de cogitar a derrota, soprou no espelho tornando a superfície completamente embaçada.

Desapareça da minha frente.

O intruso finalmente foi embora.

Sozinho outra vez, um pensamento estranho flutuou em sua mente enquanto enxugava o rosto com a toalha. Será que o outro voltaria para uma revanche? E se assim fosse, quem seria o perdedor da próxima vez?

Será que eu desapareceria...?

A dor aguda nas têmporas o fez voltar à realidade e ele balançou a cabeça afastando tais ideias. Uma risada vazia escapou de seus lábios. Se não fizesse algo a respeito, aquela dor de cabeça infernal logo o deixaria alucinando.

Lembrou-se de que havia alguns analgésicos guardados dentro de uma estante no primeiro andar e estava seguindo pelo corredor quando sentiu a presença de uma aura familiar. Ele inclinou a cabeça, atento para a aproximação daquele futuro visitante. Demoraria poucos minutos para aquela pessoa chegar ali.

Virando à esquerda, ele desceu pelas escadas e dirigiu-se à sala de estar para aguardar seu futuro visitante.

Ao chegar lá, o rapaz teve uma sensação estranha, como se tivesse esquecido de alguma coisa ou deixado algo fora de lugar. Vasculhou a sala com o olhar e procurou qualquer sinal que confirmasse suas suspeitas.

Mas o que poderia ser..?

Não conseguia encontrar nada fora de ordem. Tudo ali estava limpo, arrumado e até o ambiente da sala parecia especialmente agradável naquela noite.

Noite?

Foi então que ele finalmente se deu conta do que era. Todas as lâmpadas do primeiro andar estavam desligadas e a sala de estar permanecia mergulhada em completa escuridão.

E até aquele momento ele nem havia percebido.

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Já sabendo de quem se tratava, Zero abriu a porta sem delongas.

— O que veio fazer aqui?

A cena era quase cômica.

Lá fora, o vento rodopiava uma garoa fina caindo sobre o gramado e do outro lado da porta do alojamento estava Kaito, tremendo de frio e com as mãos nos bolsos do sobretudo preto, ostentando a conhecida expressão de quem vive aborrecido com tudo e todos.

O irônico é que com o nariz avermelhado e os cabelos escuros emaranhados pela ventania, Zero achou que seu infame colega de trabalho se parecia muito com Rudolph, a famosa rena natalina. Bem, é claro que ele jamais diria isso em voz alta.

Argh!– Kaito ralhou. — Odeio quando você faz isso! Tudo bem se você está a anos-luz de ser uma pessoa normal, mas podia ao menos tentar agir feito uma, esperar que as visitas batam na sua porta e fingir que se preocupa em saber quem elas são?

— Primeiro, eu não recebo "visitas". Segundo, você não merece ser tratado como tal.

Hunf!

Irritadiço, o rapaz empurrou Zero para o lado e adentrou o prédio sem nenhuma cerimonia.

Dizem que assim como as más notícias sempre chegam mais depressa, as visitas indesejáveis são também as que mais demoram a irem embora.

Ou ao menos algo parecido parecido com isso.

Zero não se lembrava muito bem das palavras deste ditado, mas tinha a impressão de que sabia exatamente o que significavam.

Na verdade, ele entendeu no exato instante em que Kaito, não satisfeito em bater os malditos sapatos sujos no assoalho impecável onde Zero gastou horas encerando, comportou-se como se ele fosse o dono do recinto e ocupou a única poltrona decente da sala. Parecia que em algum momento antes de ir até lá, Kaito tinha feito questão de lançar na lata de lixo todo o seu senso de educação e boas maneiras.

Isto é, se ainda houvesse algum para jogar fora.



Por outro lado, a pior parte nem era esta. Zero se lembrava vagamente de ter escutado alguma coisa relacionada a "arma", "mulher insuportável", "assistente inútil" e o quanto Kaito lhe considerava desprezível, arrogante, idiota e outros adjetivos semelhantes, mas tudo soou uma cacofonia em seus ouvidos e as palavras que ele dizia latejavam dolorosamente em sua cabeça.

E foi temendo pela própria sanidade que o rapaz deixou o colega falando sozinho e dirigiu-se para a cozinha.

Chá.

Precisava urgentemente de um bom chá de camomila batizado com muitos analgésicos ou correria o sério risco de acabar assassinando alguém.

Na cozinha e com o frasco de medicamentos em mãos, ele depositou num pequeno pires uma boa quantidade de comprimidos que na certa lhe causariam overdose caso fosse uma pessoa normal.

Tirou duas canecas diferentes da parte superior do armário e colocou-as sobre o balcão. Em seguida, abriu a garrafa térmica despejando água quente em ambas e acrescentou os sachês: um para a "visita", dois para si mesmo.



Ponderou por um instante e decidiu servir alguns biscoitos para acompanhar. Não era por um gesto de cortesia, obviamente, e sim pela esperança de que ao comê-los Kaito finalmente fechasse a matraca.

Não gostava muito da ideia, mas também não tinha muitas opções. Antes pensou até em nocauteá-lo com a frigideira que estava sobre o fogão e chutá-lo para fora do alojamento, mas logo descartou essa possibilidade. Ele gostava daquela frigideira. Era resistente, tinha boa cobertura antiaderente e era ótima para o preparo de omeletes e panquecas. Definitivamente não merecia ser amassada na cabeça de um imbecil.

Ele retornou à sala com a bandeja em mãos e colocou-a sobre a mesinha de centro. Assentando-se no sofá, tomou sua caneca e acenou para o 'visitante'.

— Por acaso você adicionou veneno nisso aí? — Kaito perguntou, desconfiado da súbita e anormal gentileza do colega. Entretanto, essa não era a única coisa anormal que ele notou por ali.

Olhou fixamente para a caneca de cerâmica e desviou o olhar para a mesa de centro. A madeira lustrosa brilhava como se fosse nova. Aliás, apesar do prédio ser antigo e a mobília um tanto desgastada, tudo naquele alojamento estava exageradamente limpo e ajeitado, sem nem um mísero fio de teia de aranha no teto ou qualquer grão de poeira no chão.

E o que era aquele cheiro de lustra-móveis?! Céus, até mesmo o estofado da poltrona cheirava levemente a amaciante de lavanda!



Impressionado, Kaito parou de observar os cantos da sala ajeitou-se melhor na poltrona. De repente, sentia-se sujo e grudento naquele ambiente asséptico e quase hospitalar. A cada dia ele tinha mais certeza de que Zero era realmente maluco. Não bastasse o infeliz ser viciado em estourar cabeças de vampiros, o cara ainda tinha que ter mania de limpeza! Onde diabos esse mundo vai parar?!

— Claro que sim. — Zero respondeu calmamente antes de sorver um pouco do chá. — Um elefante cairia morto em questão de segundos

Kaito encarou a bandeja mais uma vez com hesitação, mas não demorou muito a provar um dos biscoitos.

— Vai arriscar?

— Não sou um elefante. — justificou-se e encolheu os ombros num gesto de indiferença. No entanto, ele retornou a falar após curtos instantes de calmaria. E desta vez, deixando transparecer certa resignação.

— Você pelo menos escutou alguma coisa do que eu disse?

— Vejamos... A sua mulher te traiu com seu assistente, você se vingou atirando neles com uma arma e agora quer a minha ajuda para fugir do país...?

— É. Totalmente. Essa sua perspicácia é extraordinária.

— Obrigado.

Kaito lançou-lhe um olhar de descrença e balançou a cabeça em desaprovação.

— Estava falando dos últimos resultados das investigações! E se estiver curioso, a sua arma continua em posse da 'C.P.I '. Vou logo avisando que com o perito que está responsável por ela, é melhor esquecer qualquer esperança de tê-la em mãos por um tempo. A respeito do caso em geral, nossos informantes reportaram que as coisas estiveram relativamente mais calmas nestes últimos dias.

— Que bom. É apenas isso? - respondeu com desconfiança enquanto terminava de engolir o chá e os comprimidos.

Havia... algo diferente no modo que a voz de Kaito soava. Apesar de agir e se comportar da maneira irritante de sempre, Zero tinha a sensação de que ele escolhia cuidadosamente cada uma das palavras antes de dizê-las. Era como se ele ocultasse alguma coisa.

— Sim.

— E você atravessou o campus vindo até aqui, numa hora dessas, apenas para me manter informado?



— Eu também gosto muito dos seus biscoitos caseiros. - Kaito alegou numa expressão carregada de inocência fingida, como se esta fosse uma razão mais do que plausível.

Ah, dá um tempo!

Zero já estava no limite da própria paciência e sua irritação só ganhava força conforme aquela situação se estendia. Ele expirou o ar com força e massageou as laterais da cabeça. Manchas negras e pontos luminosos dançavam sob suas pálpebras e ele fechou os olhos na tentativa de clarear a visão.

E como se não bastasse, os analgésicos não fizeram efeito algum, aliás, pareciam ter piorado tudo. Lidar com Kaito era a última coisa que queria fazer naquela hora.

— … machuca?

Kaito chamou-lhe a atenção e o rapaz abriu os olhos devagar. Por um minuto tinha até se esquecido de que o colega ainda estava falando.

— A sua cabeça. Dói muito? Há quanto tempo você está assim?

— Não sei... Acho que três ou quatro dias. Talvez seja porque praticamente não dormi durante as últimas semanas. E nas poucas vezes em que conseguia pegar no sono... "Tive pesadelos". Ele acrescentou mentalmente. ... Enfim, vai passar logo. Mas hoje... a dor está pior.

A expressão curiosa de Kaito tornou-se séria.

— Entendo. Na mesma época em que estiveram aqui.

De quem você está falando?

O rapaz hesitou, calculando se deveria ou não compartilhar o que descobrira. Percorreu os olhos pelos arredores da sala, checando cada canto escuro como se esperasse encontrar alguém espionando-os. — Ah, que se dane! Você mais do que qualquer um devia estar a par da situação. Afinal, é tudo culpa sua!

— Fale logo!

Shhh! Não grite. Vamos ter sérios problemas se nos ouvirem!

— Quem esteve aqui? — Zero exigiu com urgência, diminuindo ligeiramente o tom de voz no fim da frase.

— Alquimistas. Um grupo inteiro se reuniu com a Divisão Primária faz pouco mais de três dias e realizaram a restauração da barreira e das defesas que cercam o QG. Com tantas proteções anti-vampiro reforçadas, não me admira que você esteja tão abatido apesar de possuir a marca.

Zero tocou com as pontas dos dedos a tatuagem estilizada em seu pescoço. A pele estava um pouco mais fria que o normal.

Mas, espere, ele realmente ouviu aquilo?

Só pode ser piada.

Alquimistas (ou Ahlckers¹, como eram comumente chamados entre os Hunters na Associação) são membros de um poderoso clã detentor de conhecimentos místicos. Além de terem uma longa história de relações de benefício mútuo com os caçadores de vampiros, eles são também os responsáveis pela maioria dos encantamentos que protegem a sede da Associação.

Estes indivíduos raramente se mostram em público e quando o fazem, quase sempre é por meio de representantes ou mediadores. E até onde Zero sabia, o último mediador de confiança da Associação faleceu há mais ou menos quatro anos em algum lugar da Escandinávia.

— Foi uma visita secreta, ninguém além do topo da Divisão Primária estava ciente de que viriam. Mesmo nós dois não deveríamos saber.

— E como você ficou sabendo?

— Bem... Não importa. A questão é que a segurança do Quartel General não foi a razão de terem vindo. Pelo menos, não a única. – ele fez uma pausa, verificando se o colega acompanhava sua linha de raciocínio. — Quando procurei nos arquivos dos sistemas de segurança, encontrei relatórios afirmando que além da barreira estar em ótimas condições, uma restauração completa já havia sido feita há menos de dois meses! Sabe o que isso significa?

— Que você é um total desocupado e adora xeretar nos assuntos alheios?

Ah é?! E por acaso você sabia que antes de partirem, eles fizeram uma visitinha à ala médica? E sabia também que algumas horas depois disso a sua garota finalmente acordou?

— I-isso é...

— Muita coincidência? Pois lá vai mais uma. — sorriu levantando a manga do sobretudo para checar o relógio no pulso esquerdo — Agora, neste momento, faz exatamente uma hora, quarenta e cinco minutos e dezesseis segundos que ela foi levada para interrogatório. Enquanto você, meu caro, está aqui alienado e reclamando da vida. Então, o que acha que devemos fazer…

Kaito não soube discernir se seu parceiro teve alguma reação negativa ou se ele estava agradecido por receber aquele aviso. No fim das contas, nem teria tempo para fazê-lo. Ele apenas viu Zero correr feito um borrão para o vestíbulo, apanhar o casaco e calçar os sapatos num milésimo de segundo.

E mais rápido do que Kaito achou ser possível, ele atravessou a porta completamente vestido e ainda virou-se para trás a tempo de dizer "Ande logo e me leve até lá."

"Eh...."– o moreno murmurou para si - "Parece que ele já está se sentindo muito melhor."



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A garoa havia cessado e agora as nuvens suaves e esbranquiçadas manchavam o céu negro como nanquim. Alguns postes de luz quebravam a penumbra que pairava sobre todo o Pátio Sul, iluminando a passarela de alvenaria. No jardim, as sombras tingiam as estátuas de pedra dando a elas um aspecto fantasmagórico.

E enquanto atravessavam o grande pátio, Kaito relatou o que ocorrera no QG durante os últimos seis dias. Ele falou para Zero sobre as medidas que Yagari tomou para evitar a divulgação do incidente, apresentou um resumo sobre a análise feita na Bloody Rose ( tomando o cuidado de ocultar as teorias ofensivas de Karen Nyckell). Também citou a falta de informações para determinar a identidade da civil ferida durante a última caçada, incluindo uma descrição rápida do laudo médico.

"No geral, a vítima sofreu cortes, fratura no braço esquerdo e lesões na perna direita. As lacerações nas costas foram mais graves, já que houve risco de infecção por terem sido feitas por unhas de vampiro(...)" - ele relatava, sempre se certificando de manter o tom de voz o mais baixo possível apesar de Zero lhe garantir que ninguém os seguira.

Além de intrometido por natureza, ultimamente Kaito andava mais cauteloso e bem informado. Bem até demais. As vezes Zero se perguntava qual seria a fonte das informações de Kaito, mas não tinha lá muita certeza se iria gostar de saber dos métodos que ele utilizava para obter informação.

Humn. Não parece ter sido tão grave quanto imaginei. Pelo menos, não tanto quanto achei que fosse, quando você ouvi dizendo que ela quase morreu.



— Mas é aí que entra a parte mais interessante... — olhou para Zero, esperando que este se manifestasse. — Não quer saber qual é?

Zero rolou os olhos de impaciência. Kaito era metido a locutor, adorava frases de efeito e uma boa plateia, principalmente se fosse interativa. Mas, para sua infelicidade, fora designado a trabalhar justamente com um sujeito nem um pouco comunicativo.

O jovem Kiryuu era quase sempre quieto, fechado e pouco amigável. Geralmente, as conversas entre ambos se baseavam em queixas, provocações e em sua maioria estavam mais para monólogos do que diálogos. Não compreendia bem o motivo, mas isso parecia incomodar muito a Kaito, pois ele sempre tentava fazê-lo dizer ao menos duas ou três frases. Era irritante!

— E qual seria...?

— Você entenderá melhor se conferir os laudos por si mesmo. Todavia, posso adiantar que parte dos motivos é devido a vítima já estar em más condições físicas mesmo antes de ter sido atacada. O médico responsável acredita até que ela provavelmente fora vítima de violência e maus tratos.

Zero virou-se para o colega.

— Defina "violência e maus tratos", por favor.



Uma expressão de desconforto passou pelos olhos de Kaito.

— Parece que aquela garota passou por tempos difíceis. Encontraram várias cicatrizes e hematomas por todo o corpo dela. De acordo com os exames, são ferimentos antigos ou pouco anteriores ao ataque.

Zero recordou-se da fisionomia da menina. Um rosto de traços simples, normal e uma estatura média. Nada muito impressionante a primeira vista.

Ele fora afastado pela equipe médica durante os primeiros tratamentos de emergência, logo não teve muito tempo para analisá-la com atenção. Mas o que Kaito dissera foi um tanto intrigante.

Como seria olhá-la de perto, sem estar coberta de farrapos ou manchas de sangue? E que desculpas ela usaria para se justificar quando ele exigisse respostas?

Vários cenários, perguntas e suposições rodearam sua mente. Ele mal podia esperar.

— Depois de tudo que eu disse até pensei que veria alguma reação, mas você não me parece nenhum pouco surpreso. Que chato! - Kaito disse, observando a expressão vazia no rosto do colega.

Zero apenas deu-lhe um meio sorriso. Seus olhos eram como muralhavas sólidas e impenetráveis, incapazes de revelar qualquer pensamento ou intenções que cruzassem sua mente.

— Bem, pode-se dizer que eu já esperava por algo assim.

O vento frio assobiava em seus ouvidos, circulava pela grama e varria as copas das árvores, balançando as folhas como milhares de chocalhos. As temperaturas caíram alguns graus durante a noite e já anunciavam que o outono estava cada vez mais próximo.

A dupla de caçadores caminhou em silêncio por alguns minutos e quando finalmente chegaram ao fim do Pátio, Kaito desviou o curso e seguiu para o leste.



— Espere, o Portal Sul fica do outro lado...

— Eu sei. Nós vamos pegar uma rota mais discreta. Não vai ser nada bom se os guardas de Yagari te encontrarem perambulando por aí.

Caminharam silêncio até a arcada, onde Kaito indicou uma porta. Eles entraram após mostrar os distintivos, identificaram-se para os vigilantes e logo depois seguiram até uma escadaria que levava aos andares superiores.

O que nenhum dos dois imaginava era que não muito longe dali, entre os limites do campus e as primeiras árvores do bosque, uma criatura observava atentamente o Instituto Ironheart.

O pelo cinza balançava levemente com o vento, que trazia diversos cheiros a seu focinho. Dentre eles, havia um que destacava-se entre os demais.

Um odor raro, provindo de um ser ainda mais peculiar. E perigoso.

Vislumbrando pela ultima vez a grandiosa construção, o lobo virou-se para o bosque, adentrando profundamente entre as árvores. Seus instintos tinham absoluta certeza: Finalmente encontrara algo que valia a pena caçar.

E desaparecendo pela floresta, a criatura seguiu para além das colinas em direção a cidade onde seus companheiros o aguardavam.



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