Equinocial

Contagem Regresiva I - Mensagem


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*Capítulo 08*

Contagem regressiva – Parte I: Mensagem

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23:52 pm

Portugal, Distrito de Lisboa

Era noite. O silêncio que imperava na luxuosa suíte do hotel era quase tangível, preenchia o ar e envolvia todo o espaço e a mobília de estilo elegante e contemporâneo. As lâmpadas estavam desligadas, mas as luzes da cidade à fora ainda adentravam entre as cortinas de cetim nas janelas e através dos vidros da ampla sacada. Vagos feixes de luz artificial se derramavam sobre a penumbra e tingiam o ambiente em diversos reflexos amarelados, iluminando o recinto de maneira sutil.

O único som claramente perceptível era o constante "Tic-tac" ressoando através do antigo relógio de madeira entalhada pregado no alto da parede. Os ponteiros avançavam ao ritmo da batida constante, que combinada a quase onipresença do silêncio, parecia compor o fundo musical perfeito para aquele cenário e a ilustre pessoa que o ocupava.

No centro da sala, sentada em postura de lótus com as pernas entrelaçadas sobre o tapete macio que cobria o chão, estava ela.

A pela clara e o robe de seda branco que vestia o corpo esbelto e bem delineado contrastavam entre as sombras. O cabelo longo e dourado cobria-lhe as costas numa cascata que descia em belas ondas até a altura de seus quadris, as pontas tocando suavemente na superfície do tapete.

Seus grandes olhos, emoldurados por cílios longos e espessos, permaneciam fechados enquanto mantinha-se imóvel e em profunda meditação. A face era de feições delicadas e harmoniosas, mas recebia um aspecto exótico pela tatuagem que ostentava no meio de sua testa: a marca de um algarismo romano ladeado por dois trovões.

O símbolo que enuncia sua posição e responsabilidade.

(...) Tic-tac, tic-tac, tic-tac ...

O ponteiro do relógio entoava. Os minutos se arrastavam.

A mulher inspirou e expirou profundamente, permitindo que seus olhos se abrissem, revelando um par de íris azul claras como um ensolarado céu de verão.

Direcionou seu olhar até o aparador encostado próximo à parede, em que repousava um pequeno aparelho metálico de formato retangular. E no mesmo instante, como se previsse o momento oportuno exato, o aparelho vibrou e emitiu um brilho fraco, anunciando uma chamada.

Ela se ergueu graciosamente, atravessando o grande aposento a passos suaves e silenciosos. Mais que apenas deslocar-se, seu corpo parecia flutuar, os pés mal pareciam tocar o chão.

Estacando de frente ao aparador, bastou um leve toque de sua mão direita para que o aparelho fosse acionado. Um tremido filete de luz colorida emergiu da superfície metálica, expandindo até transformar-se numa tela holográfica, onde lentamente surgia a imagem conhecida de um rapaz de cabelos negros e rosto de traços orientais.

Na tela, o rapaz encarava fixamente algum ponto invisível no ar, aguardando que ambas as conexões se estabilizassem. Quando a imagem do holograma parou de tremeluzir, seus olhos entraram em foco e ele vislumbrou a figura de sua correspondente.

"Olá, Comandante."

O rapaz encenou uma breve e formal reverência.

"Tal como fui ordenado, venho informá-la que a última das investigações foi concluída."

— Muito bem, Xiao Li. - Ela declarou em tom de voz plano. As palavras soavam sem emoção alguma. Sua expressão era impecavelmente controlada e impassível. Mas, internamente, sua intuição e estado de espírito não partilhavam da mesma tranquilidade.

— Agora, diga-me o resultado.

Xiao Li assentiu, compreendendo a advertência implícita naquela frase. Ele recebera instruções prévias para executar aquela missão sob sigilo absoluto e expressamente proibido de fornecer qualquer informação a nenhuma outra pessoa que não fosse a sua superior e comandante direta, Sephiria Arks.

Devido a estas circunstâncias, até mesmo as mais secretas conversas e as chamadas de alto nível confidencial deveriam ser curtas e sutis, de modo que apenas ambos soubessem do que o assunto realmente se tratava.

E por longas quatro semanas ele trabalhara arduamente, viajando pelos quatro cantos do mundo e perseguindo as mais invisíveis pistas, coletando os mais improváveis vestígios, reunindo as mais precisas - e , por vezes, alarmantes - informações que passariam despercebidas até aos olhos dos mais astutos espiões do mundo. Mas nunca aos de Xiao.

Dentro da rede de espionagem da Organização, ele é incontestavelmente o melhor. E claramente, ele jamais teria sido designado para esta missão se fosse menos do que isto. Afinal, para estar aos serviços de alguém como Sephiria, excelência e precisão são pré-requisitos fundamentais.

E ele, como o esperado, teve sucesso. A fase mais complexa de sua missão fora completada.

Entretanto, pela primeira vez em todo o tempo em que trabalhou à pedido da Organização, ele desejou estar equivocado e que tudo aquilo não passasse de um mero erro de cálculo que cometera.

Naquela noite, os resultados de seus esforços não trariam boas notícias.

Mas o fato é que Xiao iria, de uma forma ou outra, transmitir o que descobrira. Para a Chronos e os Guardiões, falhas e insubordinação são algo pura e simplesmente inaceitáveis. E ele, sendo um Chrono Number, tinha o dever de executar querendo ou não cada uma de suas ordens.

E foi o que fez:

"O alvo conseguiu escapar.

De alguma maneira, ele desapareceu sem deixar rastros."

(...)

"E Infelizmente, creio que as tuas suspeitas se concretizaram."

Sephiria registrou e analisou tais palavras, permitindo que o significado delas ecoassem no interior de sua mente, confirmando o grande temor que há dias rondava-lhe a consciência. E por mais que procurasse, não conseguia encontrar sinais de insinceridade nos olhos de Xiao. O rapaz fora inteiramente convicto e verdadeiro naquela afirmação. Não restavam mais dúvidas.

Alguém ousou ferir o equilíbrio.

Alguém ousou desafiar a Chronos.

(...) Tic-tac, Tic-tac, Tic-tac...

Como se atraída por uma força misteriosa, Sephiria elevou o olhar para o relógio na parede. Os ponteiros continuavam a avançar em ritmo e batida próprios, compondo aquela harmonia que ela aprendera a conhecer tão bem. Algo que ela amava e odiava simultaneamente.

Hora, Segundo e Minuto. Passado, Presente e Futuro.

A roda do tempo regia os três instrumentos, entoando todos na singular melodia impiedosa e ingrata; imperturbável e indeclinável. E todos prosseguiam, até fundirem-se em apenas um só. Aproximando-se do fim de um ciclo e do início de outro.

A última badalada enfim ressoou. Era meia noite.

Voltas, voltas e mais voltas... Para ela, naquele instante o mundo pareceu girar rápido, muito mais rápido do que deveria.

" ... Comandante Sephiria?"

A voz do rapaz a chamou, despertando-a de seu devaneio.

"Ainda consegue me ouvir?"

— Em alto e bom som. - respondeu.

Ela concentrou-se, lembrando a si mesma de que perder-se em pensamentos amargos nunca fora algo de seu feitio e se recompôs, voltando-se para o rapaz que aguardava por suas próximas ordens.

Sua voz retornou ao usual tom tranquilo e suave.

— Fez um excelente trabalho, Xiao Li. E ainda concluiu tudo em um prazo menor do que o estimado. A respeito de minhas instruções para a próxima fase: Todas permanecem inalteradas. Logo, creio que já saiba o que deve fazer daqui em diante.

"Sim."

(...)

" Perfeitamente, Comandante."

E com uma ultima reverência, Xiao Li despediu-se e deu fim à conexão. Sua imagem apagou-se junto com a tela num estreito fio de luz que logo desapareceu em pleno ar.

A mulher tomou o aparelho nas mãos e também desativou sua via de conexão, tendo o cuidado de excluir permanentemente qualquer registro da chamada recém feita.

Terminado esta tarefa, Sephiria reiniciou o aparelho. Com exceção de trocar mensagens durante alguma missão, aquele comunicador servia perfeitamente como qualquer outro celular. Pressionou a tecla de discagem rápida para o único contato armazenado ali.

Ele atendeu ao primeiro toque.

Diga, Comandante.” - uma voz grave e familiar soou no fundo do comunicador.

— Nizer, por favor, apronte-se.

Entendido."

"Irei buscá-la em quinze minutos.”

Era hora de ir.

A mulher abandonou a sala de estar e seguiu para o quarto. O aposento estava perfeitamente arrumado, e não fosse pela única mala de couro negro que repousava sobre a cama junto a uma muda de roupas embaladas num saco plástico, nada indicava que alguém estaria hospedado ali.

Sephiria aproximou-se da mala. Com seus dedos longos e pálidos, abriu o pequeno painel e digitou rapidamente a senha, destravando o sistema de segurança. No interior da mala jaziam seus únicos e verdadeiros pertences pessoais: A longa veste de cor púrpura intensa e uma impressionante bainha decorada.

Com delicadeza e precisão, ela desembainhou a espada sem emitir qualquer ruído. A lâmina era negra, perfeitamente polida como um espelho e a gema rubra cravejada no guarda-mão cintilou como uma chama viva.

Veloz, letal, precisa, graciosa. Bela.

Terrivelmente bela.

Assim era Ichthys¹, sua adorada espada.

Sephiria fechou os olhos e refletiu sobre as possibilidades do futuro que surgia diante de si. A sensação do peso da espada em suas mãos era reconfortante, um resquício daquele desejo por estabilidade e segurança há muito desacreditadas. Era uma das poucas coisas que conseguiam devolvê-la um pouco de tranquilidade em tempos de crise. Talvez por algum tipo implícito de fé. Algo cada vez mais raro naquele mundo cheio de precipitações.

Já se passara muito tempo desde que ela levou Ichthys em uma missão e se pudesse escolher, desejaria que a necessidade de manejá-la jamais aparecesse. Porém, desta vez, ela não poderia arriscar.

Ela sabia que estava prestes a adentrar em um campo de batalha desconhecido e perigoso, onde os inimigos eram traiçoeiros e impiedosos; escondiam-se no submundo e habitavam na escuridão como se dela fizessem parte.

Para isso, Sephiria estava preparada.

Empunharia Ichthys e pelejaria até a morte se fosse necessário. Ela lutaria. Venceria e destruiria qualquer inimigo. Usaria de todos meios possíveis para alcançar seus objetivos.

E não hesitaria em destruir a qualquer um que se pusesse em seu caminho.

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Em exatos quinze minutos a campainha tocou.

Antes de atender a porta, ela se olhou no grande espelho que ocupava a parede do quarto e fez uma última análise na própria aparência. O blazer bem cortado e a saia lápis marfim vestiam-lhe o corpo de maneira discreta e elegante, combinando com os sapatos de salto alto.

A maquiagem feita às pressas era suave, mas ainda suficiente para esconder a tatuagem em sua testa. Os cabelos cor de ouro desciam soltos por suas costas e uma delicada echarpe de seda finalizava a composição.

Sua aparência exalava elegância, formalidade e diplomacia. Combinava perfeitamente com a natureza de suas intenções.

Estava pronta.

Virou-se, arrastou sem dificuldade a mala com uma das mãos e dirigiu-se para a sala.

— Entre. Está destrancada.

Com um leve estalo, a porta foi aberta suavemente. A figura esguia de um homem negro adentrou no recinto.

O homem deu alguns passos à frente, tendo o cuidado de manter uma distância respeitosa e inclinou a cabeça em reverência.

— Boa noite, Comandante.

— Olá, Nizer. - Ela devolveu a saudação com um meio sorriso.

Assim como a maioria dos Chrono Numbers, Nizer Brukheimer possuía um corpo forte e imponente, esculpido e endurecido por longos anos de treinamento árduo. Ele tinha a cabeça completamente raspada à navalha, o rosto de traços firmes e marcantes, o nariz reto e anguloso. O cavanhaque fino e bem cuidado emoldurava as linhas de seu queixo e mandíbula, conferindo-lhe um aspecto sério e cortês.

No auge de seus vinte e oito anos e com quase dois metros de altura, Nizer possuía uma aura e postura severas, capaz de intimidar inimigos com apenas um olhar. Mas, para Sephiria, que o conhecia verdadeiramente; escondido sob toda aquela couraça e rigidez havia o caráter virtuoso de um companheiro leal.

— Perdoe-me pela ousadia, mas... Não achas que seja perigoso deixar a porta aberta?

— Honestamente, não. Afinal, se houvesse alguém determinado a me ferir, duvido muito que esta pessoa se incomodaria com um mero pedaço de madeira.

Sephiria arqueou as sobrancelhas delicadas e sorriu exibindo os dentes brancos e perfeitos, divertindo-se com a expressão preocupada do companheiro.

— Você sempre está por perto. — ela emendou — Então, por que deveria me incomodar com algo tão pequeno?

As palavras trouxeram um brilho de orgulho e determinação aos olhos de Nizer.

— Certamente, eu sempre estarei. Obrigado, Comandante.

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Apesar dos protestos de Nizer, ela insistiu em sentar-se ao lado da janela do carro com o vidro abaixado. Observar os arredores durante o trajeto era um velho hábito que adotava nos momentos de reflexão.

Naquela noite, as ruas da antiga e bela capital portuguesa estavam pouco movimentadas e silenciosas. Os desaparecimentos e mortes na região ainda assombravam os cidadãos, que com medo evitavam deixar suas casas após o anoitecer. Um instinto de proteção sábio e primitivo.

No entanto, Sephiria achava que a pouca movimentação contribuía para tornar Lisboa ainda mais bonita. Dava a cidade uma atmosfera quase etérea, com as luzes alaranjadas dos postes refletindo nos edifícios e no pavimento úmido das ruas, como se toda a cidade fosse banhada por ouro.

Sem toda a bagunça do transito e a correria diária, a cidade respirava viva, exalando sua voz no silêncio. Cada prédio e cada casa ganhava personificação e pareciam sussurrar como se ansiassem contar inúmeras histórias ao vento, ainda que ninguém pudesse ouvi-las.

Sephiria abraçou-se, ajeitando o tecido do longo casaco. Uma leve garoa caiu do céu e purificou o ar, beijando-lhe a face com um sopro de brisa fria.

E então, subitamente, começou.

O primeiro uivo soou alto e agudo. O segundo, grave e angustiado. E após o terceiro formou-se a conhecida canção ululante.

O coro de ganidos ecoou no ar, vindo por todas as direções.

Sephiria aproximou o rosto um pouco mais da janela e semi cerrou os olhos, focando o olhar para o alto. O céu, antes tingido de azul marinho, tornou-se negro e agourento. As sombras sinuosas que espreitavam sob as árvores e entre as construções da cidade tornaram-se mais densas, como se reagissem ao chamado daquela canção. Como se quisessem também respondê-la.

— Comandante, está tudo bem...?

O olhos atentos de Nizer refletiram no espelho do retrovisor, analisando a figura de sua superior com cautela.

— Sim. É apenas... – ela respondeu, embora parecesse falar consigo mesma. — Fazia muito tempo que não os ouvia desta maneira. São muitos desta vez.

Com isto, ele não podia discordar. A canção era opressora, agourenta e sombria, como o mau presságio que rodeia os ventos de uma tempestade. E talvez fosse exatamente este o seu significado. O prelúdio que anunciava tempos tempestuosos.

E desviando o olhar do retrovisor e voltando toda a sua concentração para o trânsito, Nizer acelerou o veículo. Os uivos e ganidos ecoavam cada vez mais distantes, até finalmente se perderem nas ruas da cidade que ficava para trás.