Equinocial

A última oferta e a primeira condição - Parte I


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*Capítulo 13*

A última oferta e a primeira condição

Parte I

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Instituto Ironheart — Área Hospitalar

14h:25 pm

A medicina nunca foi o campo de atuação favorito de Karen Nyckell.

Suas habilidades sempre se inclinaram mais para a engenharia e também não era segredo o fato de ela gostar mais de consertar “coisas” do que “pessoas”. E pela vigésima vez só naquele dia, ela se arrependeu de ter aceitado ficar naquele quarto de hospital, cuidando e mantendo em observação a mais nova (e especialmente suspeita) protegida de Kaien Cross.

Como foi mesmo que eu acabei enfurnada aqui…?

Ela indagou enquanto girava uma caneta entre os dedos da mão esquerda.

Ah, claro. Foi por causa de Margoth.

Aborrecida, usou a caneta para prender os cabelos ruivos num coque frouxo e se acomodou no encosto da cadeira. Em seguida, olhou para a pequena caderneta de rascunhos apoiada em seu colo e contemplou os esboços frustrados que fez nas últimas duas horas. Com um suspiro resignado, ela desistiu de investir sua atenção neles e guardou a caderneta no bolso interno de seu jaleco.

Se desenhar pistolas ornamentadas não conseguiu entretê-la, nada mais conseguiria.

Quando a diretora da área hospitalar pediu que a substituísse e cobrisse seu plantão, Karen não esperava que isso fosse ser tão chato. Mas foi um pedido de sua antiga mentora, e além disso, ninguém em sã consciência na Associação negaria um favor para Margoth Persson. Afinal, você nunca sabe o que pode te acontecer no futuro.

De qualquer forma, era notável que o Presidente fez questão de hospedar a garota no quarto mais confortável e com as melhores instalações.

O lugar era todo mobiliado e decorado em tons de marfim e branco, e tomaram o cuidado de posicionar a cama da paciente ao lado de uma janela ampla com a melhor vista para o jardim. Apesar da monotonia, ela não podia negar que o silêncio e a tranquilidade do ambiente eram agradáveis.

O olhar de Karen passeou pelas paredes e pelo chão, perscrutou os pés da cama e os lençóis brancos. E devagar, ela permitiu que seus olhos espreitassem a figura da garota adormecida sobre aquele leito.

A cada instante que passava naquele quarto, Karen se sentia ainda mais ansiosa pelo retorno de Margoth. Simplesmente não conseguia relaxar enquanto a vigiava, e como se não bastasse, o efeito do sedativo já estava no fim e a paciente poderia acordar a qualquer momento.

Porém, ainda que não quisesse admitir, Karen sabia muito bem que seu desconforto nada tinha a ver com o tédio ou com seu descontentamento com o plantão.

A verdade era que ela se sentia inquieta. Inquieta por estar na presença daquela criança, pela mudança súbita no comportamento de Margoth, pela estranha atmosfera que pairava sobre o QG… Enfim, inquieta por vários motivos.

Entretanto – ponderou consigo mesma — Parece que eu não sou a única a sofrer com inquietações nos últimos quatro dias.

Touga Yagari, quem nunca escondeu o ódio que sentia pelo trabalho burocrático no QG, se trancou no próprio escritório e esteve agindo de modo ainda mais hostil que o normal. Rumores dizem que ele e o Presidente chegaram a ter uma discussão violenta. E o mais impressionante nisso tudo, há quem diga até que ele estava parando de fumar.

Margoth quase não saía mais do laboratório e passava noites pesquisando drogas e manipulando pílulas.

Até mesmo aquele imbecil do Takamiya resolveu sumir e já fazia um bom tempo desde a última vez em que ela o viu xeretando informações na Central.

Como jamais acreditou em coincidências, Karen tinha plena noção de que o comportamento estranho desses três estavam conectados, e ela já imaginava muito bem qual era a natureza dessa conexão: Zero Kiryuu.

Falando nele…Onde ele poderia estar agora ?

Com um leve sobressalto, os pensamentos dela foram interrompidos por três batidas suaves na porta. Seria Margoth, voltando para assumir seu turno? O pensamento lhe trouxe esperanças. Deixou escapar um suspiro de alívio e se levantou da cadeira silenciosamente.

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Apesar não ter sido uma grande surpresa, ela não pode evitar arquear as sobrancelhas ao se deparar com a figura alta e elegante esperando pacientemente do outro lado da porta. Mas, assim que se recuperou, um sorriso presunçoso ameaçou despontar em seus lábios.

— Boa tarde, Presidente Cross. Eu deveria ter imaginado que o senhor logo apareceria por aqui.

— Olá, doutora Nyckell. – Kaien a saudou, e assim como fizera nos dias anteriores, seus olhos instintivamente se direcionaram para o interior do quarto.

E Karen não deixou de notar isso.

Com uma reverência rápida e graciosa, ela se afastou da porta e deu passagem ao visitante.

― Por favor, entre. O senhor veio aqui para vê-la, não é? Margoth avisou sobre as suas visitas diárias antes de me transferir para o plantão.

Kaien fez um aceno discreto e adentrou no quarto. Uma linha de preocupação se formou entre suas sobrancelhas quando se aproximou da cama onde a garota dormia. Observou-a durante um longo momento, procurando qualquer sinal de alguma melhora. Porém, a decepção ficou evidente em seu rosto após ver que ela apenas parecia ainda mais frágil e debilitada desde a última vez em que a visitou.

‪— Como ela está?

A poucos passos atrás dele, Karen respondeu na voz fria e indiferente que costumava usar quando relatava dados científicos.

— Em termos gerais, não houve muito progresso na recuperação física. Apesar de a paciente ter sido tratada com Alquimia, o corpo dela ainda está impregnado com o poder da Bloody Rose e os vestígios dessa energia estão impedindo o trabalho dos remédios alquímicos. Conseguimos estabilizá-la com a ajuda de minhas fórmulas, mas o efeito é apenas temporário.

— E não há mais nada que possa ser feito?

— Margoth é uma excelente médica, mas até mesmo ela possui limites. Se o tratamento continuar neste ritmo, eu temo que a paciente não resistirá por muito tempo.

— E quanto a você, doutora Nyckell? – Kaien insistiu. — Com as suas habilidades, há algo que a senhorita possa fazer?

— Talvez… – ela revelou, ajeitando os óculos na base do nariz — Existe uma maneira de neutralizar o poder da Bloody Rose e, consequentemente, liberar o caminho para a ação dos remédios alquímicos. Porém, o procedimento é muito arriscado e não vale a pena submetê-la a isto. E mesmo que seja bem-sucedido, a paciente ainda poderá sofrer com os efeitos colaterais.

Karen já havia previsto como aquilo acabaria no momento em que Margoth pediu sua ajuda para tratar a menina. Desde o começo, as chances de uma recuperação eram praticamente nulas.

Ossos quebrados? Órgãos feridos? Cortes profundos? Tudo isso era facilmente curável com a medicina avançada da Associação. Mas, no caso daquela criança… A situação foi além de qualquer recurso.

Ela já estava destruída por dentro.

Era inevitável, afinal. Por isso, Karen terminou seu discurso e esperou que ele também finalmente se conformasse.

Mas Kaien Cross não estava disposto a atender suas expectativas. Sem pestanejar, numa voz clara que não deixava espaço para dúvidas, ele ordenou:

— Faça isso imediatamente.

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Louco. Aquele homem estava completamente e irremediavelmente louco. Essa era a única explicação que Karen conseguiu formular depois de ouvir tamanha sandice.

— O senhor… realmente compreendeu o que eu acabei de dizer? Com todo o respeito, Presidente, o simples fato de ela ainda estar viva já é algo extraordinário. Se deseja tanto cometer um assassinato, por que simplesmente não ordena que a joguem de volta no lugar onde a encontraram? Pelo menos ela poderia morrer pacificamente.

— Sei exatamente do que estou falando, doutora Nyckell, e estou ciente das consequências. Mas se esta for a única chance que ela possui, por menor e insignificante que seja, eu não posso ignorá-la. Não ficarei de braços cruzados esperando essa criança morrer.

A pesquisadora respirou fundo, sentindo todo o estresse acumulado na última semana atingir-lhe à cabeça numa onda de cansaço. Agora ela sabia que discutir com aquele homem seria inútil.

— Que seja! – disse, encolhendo os ombros num gesto de desistência. — Farei como o senhor desejar. Mas, o procedimento só deve ser feito com o consentimento da paciente. Ela acordará em poucos minutos, então aproveite esta oportunidade para obter sua permissão.

Karen chegou à conclusão de que se Cross estava convencido a fazer tal loucura por aquela garota, não havia motivos para tentar impedi-lo. No fim das contas, o problema não era dela. Sua maior preocupação era não ser envolvida caso algo desse errado.

No entanto… Havia uma última coisa que a incomodava profundamente naquela história.

— Diga-me, presidente Cross. O senhor está indo tão longe apenas por querer realmente salvá-la, ou isso tudo não passa de uma medida desesperada para inocentar o seu filho?

Ela sabia que suas palavras haviam sido rudes. Também tinha perfeita noção da autoridade e do poder do homem para quem as proferiu, mas não se arrependeu nem um pouco de dizê-las. Apenas queria saber a verdade.

E Kaien a respondeu, com a face serena e um olhar tão distante que ela julgou como inalcançável.

— Eu fiz uma promessa. É só o que posso lhe dizer.


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