Equinocial

A última oferta e a primeira condição - Parte II


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*Capítulo 14*

A última oferta e a primeira condição

Parte II

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Existe realmente alguma diferença entre dizer uma mentira ou uma verdade?

Em épocas passadas, Kaien Cross não se importaria com a resposta. Mas hoje, sua vida praticamente gira em torno desta indagação.

Após viver por tanto tempo em um mundo de guerras cuja história é escrita pelos vencedores, ele chegou à conclusão de que verdades e mentiras possuem mais semelhanças do que diferenças entre si.

Por exemplo, há inúmeras formas de se contar uma verdade assim como infinitas possibilidades de dizer uma mentira; só é preciso moldar o significado das palavras para se ajustarem aos limites das crenças, perspectivas ou interesses de cada indivíduo.

Porque afinal, é exatamente isso que as verdades e as mentiras são:

Palavras.

Nada mais, nada menos.

E é por isso que Kaien passou toda a sua vida acreditando somente em fatos.

Os fatos sempre serão absolutos. Os fatos sempre estarão acima de todas as interpretações deste mundo, independente daqueles que contam verdades ou mentiras.

Porém… ele não queria mais acreditar nos fatos. Queria acreditar em algo que, para ele, seria impossível.

Queria acreditar que ao menos desta vez, tudo poderia se resolver sem dor, cinzas e sangue.

Pela primeira vez, Kaien Cross queria apenas ter fé.

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O quarto estava novamente em silêncio. Cuidando para que permanecesse assim, Kaien tomou a cadeira sem fazer nenhum ruido e se sentou ao lado da cabeceira da cama.

Inclinou-se levemente para observar mais de perto o rosto daquela menina. Com os olhos fechados, as pálpebras dela se movimentavam num ritmo ligeiro, indicando que sua mente estava mergulhada no mundo dos sonhos.

E ele se perguntava; Que tipo de memórias povoariam seu inconsciente? Que paisagens ou lugares ela estaria vendo?

Desde o dia em que ela acordou pela primeira vez na Área Médica, seus períodos de sono eram frequentemente agitados e turbulentos. Em algumas ocasiões, a Diretora Persson teve que prendê-la no leito com pulseiras de restrição para evitar que machucasse a si mesma. Por este ser um método violento, não houve alternativa a não ser recorrer ao uso de sedativos e calmantes para fazê-la repousar em segurança.

Entretanto, Kaien ainda suspeitava que nem mesmo isso seria capaz de acalmar sua mente.

Através dos vidros da janela, o céu daquela tarde estava cinzento e esbranquiçado, combinando exatamente com aquele quarto. Tudo ali era tão monocromático… até mesmo ele não acrescentava nenhuma mudança significativa: vestido num terno cinza escuro, sua figura se tornava apenas uma sombra em meio a claridade do ambiente.

Agora que prestou um pouco mais de atenção nisto, Kaien se arrependeu de não ter trazido algumas flores para enfeitar o aposento.

A única cor viva ali era ela. A pele bronzeada, os cabelos ondulados que não se decidiam entre o castanho e o loiro misturados em várias matizes queimadas pelo sol, tudo nela contrastava com o branco frio dos lençóis e o marfim apático da mobília.

E mesmo assim, com os braços enfaixados e os curativos na cabeça, aquela menina também estava desbotando e desaparecendo devagar.

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Um bipe soou no gráfico do painel que monitorava os sinais vitais e as condições físicas de Az. E depois foram dois; três e quatro… até que se estabilizaram numa sequência contínua. Kaien endireitou a postura e olhou para o rosto dela com expectativa.

Ela estava despertando.

Suas pálpebras tremeram uma última vez e lentamente se abriram para a luz. Durante alguns momentos ela apenas encarou o vazio, e quando seu olhar ganhou foco, ela fitou o teto ligeiramente confusa.

Com evidente esforço, Az moveu a mão esquerda para o alto e fechou os olhos. Seus dedos trêmulos cortaram o ar, como se tentassem tocar ou apanhar algo. Mas, seja lá o que estivesse procurando, ela se deu conta de que não encontraria aquilo ali. Com essa constatação amarga e um suspiro decepcionado, abriu os olhos novamente e deixou seu braço cair sobre o colchão.

— Por favor, não se esforce muito –o presidente aconselhou. — Seu corpo ainda não está respondendo direito devido aos efeitos da medicação.

A garota virou o rosto para Kaien, finalmente percebendo a presença dele.

― … Ele se foi.

— Desculpe? De quem a senhorita está falando?

— O sonho… Ele se foi. Acabou, e agora eu sei que ele não vai mais voltar. – ela disse, com a voz soando num sussurro áspero e fraco. — Então, por favor, mande aquelas mulheres pararem de me dar remédios para dormir. São irritantes… e tem gosto ruim.

— Oh…! Sim, é claro. – Kaien não entendeu muito bem as palavras dela, mas supôs que talvez ainda estivesse um pouco atordoada pelo sono. — Eu conversarei com a Diretora Persson sobre a sua insatisfação. Então, como está se sentindo hoje, senhorita Az?

A garota pensou um pouco antes de responder.

— Eu diria que estou bem. Não estou sentindo nenhuma dor agora, se é isso o que você quer saber. O que mais incomoda são esses remédios estranhos, eles me fazem perder toda a noção do tempo. Aliás, que dia é hoje?

— Quarta-feira. A propósito, já passou do meio-dia. Se estiver com fome, eu posso pedir para que lhe tragam uma refeição.

Az balançou positivamente a cabeça. Em seguida, semicerrou os olhos e fixou seu olhar na face de Kaien, analisando-o por um longo minuto.

— Você está fazendo isso de novo.

Kaien não conseguiu evitar se sentir confuso com essa afirmação.

— Estou fazendo o quê?

— Sempre quando vem me visitar, você fica olhando para mim, mas sem realmente me ver. Como se esperasse encontrar o rosto de outra pessoa e não o meu. – ela esclareceu. — Há muito tempo, eu conheci alguém que costumava me olhar exatamente desta maneira. Uma vez eu questionei o porquê, e ele me disse que eu o fazia lembrar de uma pessoa que o deixou muito triste. Aconteceu algo ruim com você, senhor Cross? Eu também te faço lembrar de uma pessoa que te entristeceu?

Ao ouvir tal declaração, Kaien não soube decidir se estava maravilhado ou assombrado pela perspicácia latente e a naturalidade desconcertante que aquela criança possuía. Mesmo após conversarem diversas vezes nos dias anteriores, ainda não havia se acostumado.

— Foi apenas uma curiosidade minha. Não precisa responder se não quiser.

O presidente pestanejou. Estava tão absorvido em seus pensamentos que não percebeu que ficara em silêncio.

Seria prudente falar sobre esse assunto com ela?

Ao se indagar sobre isso, Kaien percebeu que realmente desejava conversar com alguém. Alguém que não estava diretamente envolvido em toda aquela teia de mágoas e assuntos mal resolvidos que era a sua vida. Alguém de fora, longe da Associação, longe de tudo. Alguém que talvez pudesse compreendê-lo. Alguém pudesse simplesmente ouvi-lo.

E antes que sequer percebesse, ele começou a narrar um pouco de tudo o que aconteceu.

— Meu filho e eu tivemos uma briga muito séria. – Kaien inspirou fundo, procurando as palavras adequadas para sintetizar aquela história tão complicada. — Por causa de diversos… problemas e desavenças que tivemos no passado, eu e ele nos distanciamos e praticamente não nos falamos durante os últimos dois anos.

“E então, na semana passada, quando finalmente pudemos nos ver de novo e conversarmos a sós… Tudo o que eu consegui fazer foi comprovar o quanto ele ainda me odeia. Durante a discussão, dissemos muitas coisas duras um para o outro, e eu não me lembro de tê-lo visto demonstrar tanta raiva e mágoa daquela maneira antes.

Porém, ao mesmo tempo, eu senti que aquela foi a primeira vez em que tivemos uma conversa franca. Talvez a primeira em que ele realmente foi sincero comigo e me disse tudo o que pensava sobre mim. E eu não posso culpá-lo por isso.”

As palavras escaparam dele de um modo que Kaien não achou ser possível, e o tempo todo a garota aguardou em silêncio e ouviu cada uma delas com atenção.

Ao fim do discurso, Az direcionou os olhos novamente para o teto e seu olhar vagueou para longe, talvez perdido em alguma reflexão de seu próprio passado.

— Então, no final, o que aconteceu foi algo bom. – ela concluiu. — Pelo menos, ele te mostrou como se sentia e falou tudo o que tinha para lhe dizer. Na próxima vez que encontrá-lo, você compreenderá melhor os sentimentos dele. Quando isso acontecer, conte a ele como o senhor se sente também, e deixe ele saber que você se importa – e virando-se novamente para Kaien, ela acrescentou, ainda pensativa — Não é assim que as famílias deveriam ser?

Em resposta, Kaien olhou para o fundo dos olhos cor de âmbar dela, finalmente enxergando-a por quem realmente era.

— Eu gostaria que sim. E eu agradeço pelo seu belo ponto de vista.

Ela deixou escapar um de seus sorrisos quase invisíveis.

— Sendo seu filho, eu imagino que ele deve ser uma pessoa muito interessante. Eu gostaria de conhecê-lo.

— Oh, ele com certeza é. Quando a senhorita melhorar de saúde, talvez possa encontrá-lo algum dia.

Az deixou escapar um pequeno bocejo e ajeitou melhor a cabeça no travesseiro macio.

— E finalmente, chegamos a pergunta final. O senhor ainda quer saber qual foi a minha escolha, não é?

Kaien assentiu.

Ela sabia que um dos motivos de aquele homem vir visitá-la era devido ao acordo ainda não firmado entre ambos.

Aquele era o último dia para dizer sua resposta, e ela já havia tomado sua decisão.

— Eu sinto muito, senhor Cross. Infelizmente, o que eu desejo é algo que você não pode me dar. Porém, há algo de que eu preciso, e não tenho mais ninguém a quem posso recorrer. Se o senhor puder me ajudar com isto… então, eu aceitarei a sua proposta.

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