Entre Ódios e Desejos

Capítulo 4 - A última das últimas vezes


Terceiro dia de cárcere. Eu me sentia como se fosse o primeiro, na verdade. Enfim, eu estava livre de muitas amarras. Se eu planejava, mesmo que à força, ficar em Leitchfield nos próximos anos de minha vida, faria da minha estada um pouco mais suportável.

Nicky se sentava numa mesa no canto direito do refeitório, na hora do café, junto à garota da van, uma loirinha de tranças de olhos avermelhados e a russa da cozinha. Marchei objetivamente ao encontro delas e quando parei ao lado da mesa todas me olharam com um semblante de “veio tarde, white girl”.

_Como vai, princesa? - Nicky saudou-me com um sorriso torto e Morello também sorriu -.

_Senta logo, antes que alguma clemente a Deus venha lhe dar o sermão das 8:00.

_Por aqui é assim, então? - sentei-me -.

_Acostume-se, criança.

Era a primeira vez que eu ouvia a voz de Red de mais perto. Nos dois primeiros dias, apenas escutava alguns de seus gritos que ecoavam da cozinha, num sotaque peculiar, mas agradável e que parecia soltar fogo em meio a alguma desordem dentro do que ela chamava de sua cozinha.

_Então você era importante, hã? - a garota de tranças se inclinou em minha direção, curiosa, e olhou bem fundo em meus olhos -.

_Não sou mais, querida.

_Deixe-a em paz, Trisha – Red interviu o interrogatório, poupando-me de explicações – Vause é uma de nós, aqui dentro, e não é melhor do que você, nem que ninguém.

Era engraçado como todas as detentas comentavam sobre mim, como se eu fosse algum tipo de superstar por estar em alguns dos jornais que circulavam pelo país como uma das principais chaves para a destruição dos cartéis internacionais de droga da América. Obviamente, cada mídia sabia por si só que aquilo era balela e que nós, braços de Kubra Balik, éramos apenas uma pontinha de um iceberg enorme do narcotráfico norte-americano, europeu e mundial.

Cada programa sensacionalista mostrava de uma forma a proeza da polícia federal e da inteligência internacional em intervir em nossos negócios, e algumas donas de casa metidas a apresentadoras de televisão comentavam todo aquele noticiário usando meu rosto para embarcar no discurso batido de “Hoje não podemos distinguir mais quem são nossos inimigos. Olhem só, uma mulher aparentemente da alta sociedade, bonita, mas um algoz da nossa sociedade ilibada...”. Meu grande foda-se a toda essa corja e à imprensa.

Nicky e Morello pareciam muito íntimas à mesa. Olhares, mãos tímidas, mas nem um pouco comportadas para lá e para cá, e mesmo assim alguns segundos da atenção de Nicky ainda sobravam a me olhar pelos cantos. Eu fingia não ver, afinal, não queria mais falar sobre o dia que se passara, sobre eu estar chorando feito uma criança em seu colo, muito menos queria parecer fraca ou um alvo fácil ali dentro.

_Hey, Barbies, já prepararam a chapa para as eleições? Daqui uns dias, queridas, vamos fazê-las rodopiar em volta dos seus traseiros, de tão perdidas que todas vão ficar.

Uma garotinha que mais parecia ter 21 anos, negra e com um peso avantajado, aproximou-se de nossa mesa zombando e se apoiou na parede.

_Porque você não se arrasta pelo pátio procurando migalhas de gordura trans pra enfiar nessa sua bunda gorda, Taiiiiiis....tee? - Trisha se levantou e parou em frente à garota -.

Aquela era uma situação que beirava o ridículo. Briga de gangues. Mas todos agiam naturalmente, como se fosse diário e não necessariamente perigoso.

De repente uma magrela, baixinha e com os cabelos bem negros e lisos subiu em cima de uma das mesas e começou a gritar.

_Silêncio, irmãs, silêncio! Hoje é um dia de comemoração. Jesus e seus discípulos foram ao...

E em meio ao caos e aos murmurinhos ninguém mais ouviu o que ela falava, muito menos eu. Algumas jogaram pedaços de torta na garota, outras apenas mostraram dedos e ela continuou berrando “Deus não perdoará vocês, suas profanas! Os céus não abrirão suas portas aos que não seguem a Deus!...”. Dois dos guardas pararam a bagunça e só o que pude fazer foi rir e me retirar do refeitório indo até minha cela compartilhada.

Seríamos relocadas, hoje. Desde o primeiro dia eu já estava encarregada do trabalho na biblioteca, porém a direção trocou meus afazeres e passei a ficar encarregada da lavanderia. Odiei a troca, mas ao menos lá era uma local mais isolado, onde eu podia ficar um pouco mais em paz em meio a cada bizarrice que ocorria dentro daquele presídio. Infelizmente toda a equipe religiosa de Leitchfield trabalharia ali comigo, o que não pouparia meus ouvidos de ouvir bastante merda durante bastante tempo. Porém tudo aquilo não era realmente um problema. Eu sabia rir na hora certa.

Quando definidos os meus aposentos, soube que dividiria um cubículo aberto com outra detenta. Eram frequentes as trocas de locação, mas inicialmente, ao menos, colocaram-me com Trisha, ao lado de duas garotas negras que cantavam o dia todo e uma senhora séria e de cabelos curtos que mal falava, passava, na verdade, a maioria do dia lendo. Ajeitei minhas coisas na nova escrivaninha, guardei a escova de dentes que Morello havia me entregado gentilmente no primeiro dia e me sentei na cama.

Os colchões conseguiam ficar cada vez piores, era incrível. Mesmo assim me deitei. Logo uns vinte minutos após o silêncio em que me encontrava, Nicky veio rasteira e se encostou na mureta de concreto que separava o aposento do corredor.

_E então, Vause, como está?

_Bem, posso dizer que, bem – respondi-a e sorri – Sente-se.

Ela veio meio desconfiada e se sentou ao meu lado na cama.

_Você não gosta muito de falar sobre o que sente, certo?

_Na verdade não. Tenho dificuldades em me abrir, mas esse ambiente acaba a gente.

Ela concordou e sorriu.

_Sua primeira vez presa? - perguntou-me -.

_É sim. Achei que era intocável.

_Todas éramos, até virmos pra cá.

Nicky recostou a cabeça na mureta ao lado da cama e pareceu viajar um pouco em seus pensamentos.

_Você e Morello...?

_Ela é uma das primeiras da minha lista de fodas. Um doce de menina...mas meio pirada. E noiva, pra fuder com o resto.

Sorri pesadamente com sua cara de esnobe ao dizer aquilo.

_Vocês só se divertem então?

Ela levantou a cabeça, virou-se para mim e pousou sua mão em meu rosto.

_Queridinha, diversão não é a palavra. Trata-se de sobrevivência. Cada segundo aqui sem ter que pensar nos próximos dez ou doze dias, é uma dádiva. Um presente dos deuses, aqueles malditos.

Fiquei em silêncio apenas fitando-a, sem querer me aprofundar muito no assunto. Só de pensar nos próximos dias, já me sentia acuada. Eu teria de participar de uma audiência para dizer a algum promotor sobre minha delação, oficialmente, apesar de ter decidido o que falaria. Precisava pensar em mais nomes, e ao mesmo tempo tinha medo de que isso respingasse em mim, se eu saísse fora dali.

_Mas você – Nicky intorrempeu meus pensamentos – com certeza sabe como se divertir. A nova queridinha de Leitchfield não tem cara de santa.

_É – sorri meio debochada – Eu não sei muito bem o que é diversão há uns...

Não continuei a frase. Eu sabia que mesmo com todo o rancor que tinha no peito eu ainda ia travar falando dela. Usando Piper como minha desculpa para ter vivido pouco durante dez anos. Por ter experimentado do vício, por algum tempo, das próprias drogas que vendia e por ter amargado a morte de minha mãe sozinha entre malas e aeroportos cheios de gente vazia.

_Ih, isso tá me cheirando a calcinha... Eu conheço um drama lésbico de longe.

Ajeitei meus óculos na maça do rosto e sorri desconfiada.

_Lésbico? Como você chegou a essa conclusão?

_Homem nenhum causa tanto estrago, princesa. Eu e você sabemos o poder de uma boa boca entre nossas pernas. Ou de um par de pernas envolvendo nossas bocas.

Céus! Ela conseguia me fazer rir ainda. Os olhos amendoados e grandes de Nicky tinham um ar pesado de ironia e despreocupação que eu até invejava.

_Qualquer dia desses você pode assinar minha listinha de fodas.

_É só trazer – brinquei e sorri para ela numa leveza que ainda não havia experimentado ainda naquele lugar -.

Dois dias depois eu estava de novo naquela van que me introduzira a Leitchfield. Meu advogado sentado ao meu lado no furgão, algemas ao redor dos meus punhos e um pouco de ar puro.

_Você se lembra de tudo que alertei, certo, Alex?

_Não se preocupe, pai.

Sem muita paciência ou ânimo, cheguei ao tribunal para ouvir minha sentença. Até então eu estava apenas cumprindo prisão preventiva e não sabia ao certo o que esperar. Exerci todas as minhas funções burocraticamente, compareci ao tribunal, não consegui sequer pensar em outro nome senão o de Piper e foi apenas ela quem levei comigo às ruinas, na delação.

Após cerca de três horas de espera num banco de madeira do lado de fora do palácio suntuoso em que nos encontrávamos, o juiz do caso pediu que retornássemos, eu e o palhaço que fingia me defender, à sala de justiça.

_Após a análise das acusações por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, Alex Vause, você está condenada a...

Nem mais ouvi o que o senhor juiz dizia. Do que me importava a quantidade de tempo que eu estaria presa? Do que me importava tudo aquilo se, de fato, eu não tinha nada pelo que lutar ou alguém para deixar do lado de fora me esperando. Qual era a liberdade real que eu teria um dia? Sair de uma prisão federal com um carimbo de ex-detenta na ficha, procurar um novo emprego e um pouco de dignidade e viver como, sei lá, atendente de bar que mal consegue pagar um plano de saúde?

Foda-se. Foda-se tudo aquilo.

Voltei para casa segurando o choro e quando cheguei já era tarde, por volta das 22:30. Todas as luzes já apagadas, detentas dormindo ou ao menos em suas camas e guardas em suas salas, pouco se importando para o que, de fato, ocorria nos dormitórios. Troquei minhas roupas e me deitei, indo em direção aos banheiros novamente para me sentar. O ambiente lá era mais fresco e menos conturbado. Eu não poderia estar ali àquela hora, mas também não estava ligando muito para tal fato.

Liguei a torneira bem devagar e deixei um filete saindo por ela. Retirei meus óculos e molhei-os, deixando-os na pia gelada logo em seguida. Ainda no chão, estiquei as pernas e me recostei numa das paredes, fechando meus olhos. Resolvi, numa daquelas promessas de essa é a última vez que deixaria meu inconsciente tomar conta por alguns instantes, que depois disso tomaria de conta de mim uma Alex completamente prática, com poucos pesares e muitas atividades que fizessem com que as horas passassem.

Nesse último lapso de libertação, lembrei-me do dia em que fui ao enterro de minha mãe sozinha, toda de preto, devastada por tudo que havia acontecido comigo de forma simultânea. Havia uma semana que eu nem tinha notícias de Piper. Enquanto chorava, descendo meu corpo com um buquê nas mãos para deixar em cima do túmulo, fechei meus olhos como sempre fazia quando não acreditava nas coisas ao meu redor, e tudo o que quis foi um abraço.

Se ela soubesse como foi grande aquele vazio em meu peito sem os seus braços ao meu redor para me segurar, nunca o teria feito. Se ela soubesse que, pela primeira vez, quis desistir de tudo o que fazia na vida para voltar ao Brooklin, conseguir um emprego medíocre e tirar ela de casa e trazer para morar comigo, nunca teria me deixado daquela forma.

Nada menos do que tudo em que eu acreditava havia se desmoronado em segundos. Piper não era meu algoz, mas me causara uma dor que eu jamais conseguiria compensar. E sempre que eu pensava em me deixar levar por algo que sentia, após sua ida, me fazia lembrar que eu poderia subir aos céus, mas com certeza ia cair e ia doer pra caralho, mais uma vez.

Respirei fundo, então, voltei de fininho ao meu cubículo que dividia com Trisha, sentei-me na cama pensativa e me levantei mais uma vez, agora sem o inebriante veneno da saudade. Escrevi um bilhete sucinto e, de fininho, levantei-me e coloquei na escrivaninha de Nicky.

Amanhã seria outro dia.