Entre dois mundos.

Capítulo 1. 15 anos em 15 minutos


Numa floresta perto da fronteira de Ostania, um soldado corria para salvar a vida. Caminhando entre as árvores, tentando desesperadamente despistar seus perseguidores. Havia muitos deles para pensar em revidar, ele só podia correr.

Ele grunhiu uma pequena maldição baixinho, se não tivesse perdido tempo conversando com aquele outro soldado cabeludo eles não o teriam visto.

O sangue do ferimento na testa escorrendo pelo olho, obstruindo sua visão. Uma decisão difícil, lembrando-o do erro que acabara de cometer. Ele era um soldado no meio de um campo de batalha, este não era lugar para fazer amigos.

Ao dobrar uma esquina, um tiro ressoou, atingindo-o bem na parte de trás da perna. Ele caiu com um suspiro de dor, seu capacete colidindo com uma pedra abaixo. Ele sentiu a dor através dele, pois produzia um som alto e estridente. Sua visão começou a ficar embaçada e ele tentou desesperadamente permanecer consciente. Mas ele rapidamente perdeu a batalha enquanto seus olhos se fechavam lentamente, deixando-o à mercê de seus inimigos.

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A primeira coisa que ouviu quando recuperou a consciência foi um sinal sonoro constante. Sem abrir os olhos, ele já percebeu que estava em uma cama de hospital. Seu corpo estava todo dolorido e algo ou alguém segurava sua mão.

Ele lentamente abriu os olhos para ver dedos delicados entrelaçados com os seus, grandes e volumosos. Seguindo o braço até sua dona, ele se deparou com uma jovem, de não mais de trinta anos, com longos cabelos negros. Ela usava um suéter vermelho e dormia profundamente em uma cadeira ao lado dele, impedindo-o de ver a cor de seus olhos.

Deitada ao lado dela, no pequeno sofá que ocupavam, uma criança tão sonolenta quanto ela. A menina era tão pequena, não parecia ter mais do que cinco anos, cabelos rosa brilhante e pequenos acessórios de chifres no topo da cabeça. Ela usava um uniforme escolar preto com detalhes dourados enquanto agarrava uma pelúcia esquisita.

Ele não tinha ideia de quem era qualquer uma delas.

Era improvável que fossem parentes distantes, pois ele lembrava que a maioria de seus parentes eram loiros de olhos azuis, assim como ele. E de qualquer forma, a maioria deles morreu antes da guerra. Talvez tenha havido uma confusão e ele não fosse quem eles pensavam que era.

Então ele tentou gentilmente tirar a mão do aperto da mulher, mas rapidamente descobriu que ela tinha um aperto de ferro. Ele ficou surpreso com o quão forte ela era. Se essa fosse a força dela enquanto dormia, ele só podia imaginar como seria quando estivesse totalmente consciente. Mas ele estava determinado a retirar a mão, querendo evitar o constrangimento de ficar de mãos dadas enquanto anunciava a ela que eram completos estranhos.

Ele tentou novamente se libertar, desta vez com um pouco mais de força. E como ele temia, isso acidentalmente a despertou.

A mulher acordou lentamente, com os olhos abertos revelou um par de orbes vermelhas brilhantes. Sua sonolência desapareceu rapidamente quando ela olhou nos olhos dele.

— Oh Loid! Graças a Deus, você finalmente acordou! - Ela exclamou com lágrimas brotando em seus olhos ao mesmo tempo em que se jogava contra seu corpo na maca para abraçá-lo

Ei?! Quem era aquele? Este não era o nome dele, pelo menos não que se lembrasse. Mas pensando bem, ele não tinha ideia de qual era seu nome. O único que lhe veio à mente foi Roland Spoofy, mas também não era este seu nome de batismo, era apenas um nome falso que usou para se alistar cedo. Talvez fosse realmente Loid como aquela mulher sugeriu? Ou talvez não, ele realmente não tinha ideia, sua cabeça zunia.

Ele tentou protestar, ou pelo menos explicar que ela o estava confundindo com outra pessoa, mas ela não lhe deu tempo. Recuando da mesma forma abrupta com a qual lhe abraçou, o rosto emitindo um leve rubor, que o homem achou gracioso naquele rosto tão pálido, ela soltou a mão dele para acordar rapidamente a criança ao seu lado.

— Senhorita Anya, acorde, ele finalmente acordou. - Ela disse em um meio sussurro tentando conter seu entusiasmo.

A garotinha, agora conhecida como Anya, acordou lentamente, esfregando os grandes olhos verdes. Ela ergueu o olhar para ele e sua boca formou um enorme sorriso.

— Papai! - Ela exclamou, esticando os braços curtos em direção a ele.

Seus olhos se arregalaram e internamente ele começou a entrar em pânico, tentando processar a informação bombástica que a garota acabara de lançar sobre ele.

Por que ela o estava chamando de papai? Este não poderia ser filho dele, ele era muito jovem para ter um filho, especialmente um de cinco anos. E esta mulher, era a mãe da menina? Desde quando ele tem uma parceira?

Sua mente acelerou, tentando se lembrar de qualquer evento que o ajudasse a entender a situação em que se encontrava, mas não encontrou nada.

Claro que não havia explicação para esta criança. Quando ele encontraria tempo para ter uma filha quando toda a sua vida girava em torno do exército para sobreviver?!

Isso o deixou estressado e confuso. E também não ajudou o fato do bipe lento e irritante ao fundo ter se transformado em um alarme frenético, apenas aumentando sua angústia.

De repente, uma equipe médica irrompeu na sala, instruindo a mulher e a jovem criança a saírem. Ele podia ouvir uma voz distante pedindo-lhe para inspirar e expirar profundamente, assegurando-lhe que estava seguro.

Ele tentou o melhor que pôde para seguir o conselho da voz e depois de alguns minutos, finalmente conseguiu se acalmar.

O monitor próximo a ele diminuiu a velocidade e ele conseguiu reconhecer as pessoas que haviam entrado na sala. Era um médico mais velho, nada de especial nele. Cabelos curtos e escuros, óculos e jaleco branco. E ao lado dele, uma jovem de cabelos castanhos curtos.

— Sente-se melhor, senhor? - O médico perguntou.

Ele assentiu.

— Esses dois, quem eram eles? - Ele então perguntou, ainda um pouco perturbado.

Mas em vez de responder, o médico voltou-se para sua assistente com um olhar preocupado.

— Você poderia nos dizer seu nome, senhor?

— Eu... eu não me lembro. - Ele admitiu.

— Nesse caso, você sabe onde estamos?

Ele pensou nisso por um segundo, olhando ao redor antes de balançar a cabeça em negativa.

A cada resposta, a carranca do médico só se aprofundava com mais preocupação.

— Você pelo menos sabe como veio parar aqui?

— Eu caí em batalha. - Respondeu confiante, ele pode não saber sua situação atual, mas pelo menos estava confiante nisso.

— Havia pelo menos seis deles, tentei despistá-los, mas eles atiraram em minha perna, provavelmente me deixaram lá para morrer.

O médico olhou para ele confuso antes que uma faísca de compreensão o atingisse de repente.

— Por acaso o senhor já serviu no exército?

— Ainda estou. Eu estava em uma missão de reconhecimento na fronteira de Ostania quando isto aconteceu.

— E em qual guerra estava lutando?

— A de Ostania e Westalis, é claro.

Ele se sentiu aliviado por ter conseguido responder pelo menos uma de suas perguntas, mas o outro não compartilhou seu entusiasmo, apenas parecendo ainda mais preocupado enquanto continuava tomando notas.

— Receio que esteja sofrendo de amnésia grave. - O médico disse com uma voz solene.

— O que?

— A guerra que o senhor está descrevendo terminou há quase quinze anos…

— Q-quinze anos…

Mais uma vez, o som do monitor aumentou de velocidade e ele começou a tremer visivelmente também.

Isso não poderia ser real, certamente ele estava sonhando. Ele se lembrava claramente de sua manhã, colocando o equipamento, pegando seu rifle e entrando no carro com seu esquadrão em direção ao próximo objetivo. Como poderia haver um intervalo de quinze anos entre isso e agora?

O médico e seu assistente foram rápidos em acalmá-lo desta vez, mantendo seus braços no lugar e chamando-o até que ele voltasse à realidade.

— Senhor, eu sei que é um grande choque, mas precisa se acalmar, por favor. - O médico ordenou.

Foi tudo tão repentino, num minuto ele estava no meio de uma floresta e no outro, ele estava em uma cama de hospital quinze anos depois, sem nenhuma lembrança do que aconteceu no meio. Ele tinha tantas perguntas, a maioria das quais ele nem sabia se queria a resposta.

— Então esses dois são… - Ele começou, um pouco hesitante.

— Sua esposa e filha, sim. - O médico terminou por ele.

De alguma forma, depois que o choque inicial passou, ele foi capaz de absorver essa informação muito melhor. Ele ainda se sentia um pouco desconfortável por não ter ideia de quem era qualquer uma delas, mas também lhe deu alegria ouvir sobre eles.

Depois de tudo que passou, perdendo sua casa e família para a guerra e sua humanidade para o exército, ele ficou feliz em saber que de alguma forma conseguiu superar tudo isso e construir sua própria família. E vendo como eles reagiram quando ele acordou, ele teve certeza de que ambos o amavam muito.

— E essa coisa de perda de memória. É permanente?

— Infelizmente, não há como dizer. O senhor pode acordar um dia lembrando de tudo ou nunca mais recuperar essas memórias. O cérebro é estranho assim.

— Entendo…

Não era o que ele queria ouvir, mas não se sentiu tão chateado quanto deveria.

Talvez estivesse tudo bem. Ele ainda tinha uma linda esposa e filha, só teria que aprender a amá-las novamente.

— Agora, se estiver pronto, podemos trazer sua família de volta para contar sobre sua condição. - O médico disse.

— Tudo bem.

A assistente rapidamente abriu a porta de seu quarto e gesticulou para que a senhora de cabelos negros e sua filha voltassem. Elas entraram hesitantes, ainda preocupadas com o estado de pânico em que o quarto estava antes.

O médico foi rápido em tranquilizá-las com um sorriso acolhedor, acenando para que se aproximassem. A mulher sorriu de volta, deixando escapar um suspiro de alívio. Assim que a família estava ao seu lado, o médico deu a notícia.

— Sra. Forger, seu marido está infelizmente sofrendo de amnésia. - Ele revelou.

Ela engasgou alto, olhando para ele com choque e simpatia.

— O que é amnésia? A garotinha perguntou.

— Isso significa que esqueci algumas coisas. - Loid respondeu.

— Mais especificamente, acreditamos que ele esqueceu tudo o que lhe aconteceu durante os últimos quinze anos. - O médico acrescentou.

— Então papai não se lembra de Anya? - A garotinha perguntou com os olhos marejados.

Loid balançou a cabeça negativamente em resposta.

Ele se sentiu mal. Ele sabia que não era culpa dele, mas a menina era tão jovem, não merecia ter um pai que não pudesse amá-la porque não a reconhecia mais. Nesse momento, ele prometeu a si mesmo que faria tudo o que pudesse para continuar sendo o melhor pai que ela poderia desejar.

A sensação de pequenas mãos segurando as suas o trouxe de volta ao presente. Ele olhou para baixo, as mãos dela eram tão pequenas em sua palma grande.

— Está tudo bem, papai, Anya ainda te ama, mesmo que você tenha esquecido dela.

— Ela está certa. - A mulher acrescentou. - Você pode ter se esquecido de nós, mas isso não nos impedirá de nos preocupar com você.

Isso trouxe um sorriso ao seu rosto. É isso mesmo, ele pode ter perdido todas as lembranças que tinha delas, mas elas ainda tinham todas as lembranças dele. Ele deve ter sido um ótimo pai para que o amassem tanto. Ele só podia esperar e desejar que isso não mudasse.

— Obrigado... hum…

— Yor. - A jovem respondeu seu nome sorrindo, ao compreender o incômodo do marido ao não saber completar sua frase.

— Obrigado, Yor. Estou feliz por ter uma esposa tão maravilhosa quanto você. - Ele disse com um sorriso agradecido.

Ela corou furiosamente com o comentário dele, forçando-se a não desviar o olhar de vergonha.

— Agora, então - o médico interrompeu. - Se estiver tudo bem para o senhor, gostaríamos de mantê-lo aqui por um dia para ter certeza de que está tudo bem.

— Ah, claro, eu entendo. - Yor disse, pegando Anya no colo e lhe debruçando sobre a maca para que pudesse abraçar o pai em despedida, em seguida caminhou em direção à porta. - Tchau Loid, voltaremos amanhã para te levar para casa.

— Tchau papai! - Anya acrescentou, acenando para ele.

Ele acenou de volta, observando-as sair do quarto com um sorriso no rosto. Tudo parecia tão estranho, mas ao mesmo tempo tão certo, ele não se sentia tão perdido quanto deveria.

Era como se ele sempre tivesse estado com elas e só precisasse de um tempo para acordar adequadamente e se lembrar. Talvez ele não tenha esquecido completamente, afinal.