Entre dois mundos.

Capítulo 2. Começando a entender minha vida.


Assim que sua família se retirou, o médico passou a realizar alguns exames. Nada muito intrusivo, apenas certificando-se de que a concussão que causou sua amnésia não afetasse nenhuma outra parte de seu corpo.

Isso também permitiu que Loid soubesse como acabou naquela situação. Aparentemente, ele havia sido encontrado há dois dias, no início da manhã, por um atleta que corria por um parque perto de sua casa. Ele estava inconsciente, deitado em uma poça de seu próprio sangue, com um corte profundo na cabeça e sem seus documentos.

Tudo dava a entender que havia sido assaltado enquanto voltava para casa, os policiais supunham que Loid talvez ao tentar reagir tenha feito com que a pessoa que o abordasse utilizasse mais força do que inicialmente batedores de carteira programem, causando aquela grave concussão.

Ele foi levado imediatamente ao hospital, que por sorte descobrira ser onde ele justamente trabalhava hoje, rapidamente trataram seus ferimentos e contactaram sua família, estando lá desde então.

Um boletim de ocorrência foi aberto para tentar encontrar o ou os culpados, mas sem nenhum resultado até o momento. E agora que não conseguia lembrar de nada, não havia mais muita esperança.

Mas pelo menos, tinha noção já de muitas coisas.

Ele foi capaz de confirmar que seu nome era de fato Loid. Loid Forger para ser exato. Mas por alguma razão, esse nome ainda não lhe parecia certo. Havia uma pequena voz no fundo de sua mente constantemente lhe dizendo que esse não era seu nome verdadeiro. Talvez fosse porque ele estava acostumado a ser chamado de Roland desde seu tempo no exército.

Ele também descobriu que era casado com Yor Forger há cerca de dois anos, e Anya era uma criança que ele teve de seu primeiro casamento. O que explicava por que ela não se parecia em nada com nenhum deles. Ela deve herdar a maioria de suas características de sua mãe biológica.

Mas a maior surpresa que teve foi descobrir que agora era psiquiatra e trabalhava num hospital justamente em Berlint, o prédio em que estava atualmente. Primeiramente, como ele conseguiu fazer um doutorado, ele odiava estudar. E segundo, o que ele estava fazendo em Ostania?!

Ele sabia que quando a guerra terminasse não teria nada nem ninguém lhe esperando em Westalis, então teria liberdade para se estabelecer em praticamente qualquer lugar do mundo, mas por que Ostania? Havia centenas de outros países onde ele poderia ter vivido, então por que escolher aquele contra o qual lutou?

Sua única teoria, e que lhe parecia a mais plausível, já que aparentemente seu diploma de psicologia veio da universidade de Berlim, era que ao fim da guerra o exército teria oferecido estudo aos seus recrutas e numa tentativa dos líderes manterem selada a paz entre seus países tenham forçado seus jovens a realizarem algum tipo de intercâmbio, assim poderia ter conhecido seu primeiro amor no país que agora não era mais seu inimigo, convencendo-lhe a ficar.

A única coisa que puderam lhe informar, visto ser a única informação que compartilhou com seus colegas de trabalho sobre sua primeira esposa, era que ela havia morrido no parto de Anya.

Mas uma coisa ainda o incomodava, Yor sabia que ele era westaliano? Ele deveria contar a ela? Ele não tinha ideia de como era a relação entre o país deles agora que a guerra havia acabado, então ela ainda o amaria se soubesse que se casou com um westaliano?

No final, ele optou por não contar a ela, pelo menos não ainda. Se ela já sabia, ótimo! Isso significava que ela era capaz de amá-lo apesar disso. Mas se ela não soubesse, bem...

A última coisa que ele queria era que ela o deixasse logo depois que ele perdeu a memória. Ele vai precisar de ajuda para se orientar. Será que realmente importava que ele fosse westaliano? Ele se sentiu um pouco egoísta, mas prometeu a si mesmo que conversaria com ela sobre isso mais tarde, assim que não se sentisse mais constantemente perdido com tudo.

Loid estava tão perdido em pensamentos que não ouviu a enfermeira entrar em seu quarto para anunciar que já eram dez horas da noite. Então, depois de ajudá-lo a abaixar a cama, ela apagou as luzes, informando que o café da manhã seria servido às seis.

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Naquela noite, ele teve um sono sem sonhos e ficou muito grato por isso. Já se passaram anos desde que ele não teve nada além de pesadelos todas as noites. A princípio, por ver as consequências do bombardeio que destruiu sua cidade natal e, depois, pelo horror que testemunhou e até participou durante a guerra. Ele raramente dormia noites inteiras por causa disso, sempre acordando suando frio e lutando para voltar a dormir depois.

Mas esta noite foi diferente. Ele não acordou nenhuma vez e até conseguiu descansar totalmente o corpo, que percebeu estar dolorido por anos de estresse. Ele realmente não sabia o que causava isso, mas suspeitava que tivesse algo a ver com a tranquilidade que sentiu quando soube que a guerra havia acabado.

As coisas funcionaram bem para ele no final. Ele tinha uma família adorável e um trabalho respeitado, ele não poderia estar mais feliz.

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Na manhã seguinte, Loid acordou com a sensação de que alguém o estava observando. Ele lentamente abriu os olhos e sentou-se antes de perceber o motivo de sua sensação desconfortável.

Ele quase deu um pulo ao ver uma mulher sentada bem ao lado de sua cama, no sofá que sua esposa ocupava no dia anterior. Ela parecia um pouco mais jovem que Yor, com cabelos curtos e prateados e olhos violetas. Ela estava olhando para ele com uma expressão fria como pedra, nem mesmo reagindo quando ele de repente gritou de surpresa.

Quem era ela? E o mais importante, há quanto tempo ela está lá? Ela estava apenas sentada lá observando-o dormir? Ele não pôde deixar de se sentir um pouco assustado com esse último pensamento.

— Com licença. - Loid dizia enquanto levemente coçava a cabeça em desconforto - Posso ajudá-la? - Perguntou, hesitante.

— Bom dia, doutor Forger. - Ela disse com uma voz neutra. - Como está hoje?

— Bem, eu acho….

— Você leu as notícias recentemente? Ouvi dizer que haveria uma liquidação de pimenta vermelha.

— Não, acabei de acordar. - Respondeu, um pouco irritado. Que tipo de pergunta era essa? Ela acabou de vê-lo acordar, o que ela esperava que ele respondesse?

— Bem, eu os recomendaria. Além disso, ouvi dizer que as cebolas verdes estão na estação agora.

Loid franziu a testa visivelmente perdido. O que havia com aquela mulher? Que tipo de aberração vê as pessoas dormirem apenas para depois conversarem sobre o assunto mais mundano? Ainda mais com alguém desmemoriado.

— Me desculpe senhorita, mas realmente não sei quem você é. Imagino que por estar em meu quarto sejamos conhecidos..? - Loid continuou sua frase com dúvida se era realmente uma constatação ou na verdade uma pergunta.

— Agradeço por vir me visitar, mas não sei se lhe informaram, sofri um atentado e agora me encontro sem as memórias de meu últimos quinze anos, sequer lembro de minha esposa e filha….. - Completou com um fraco riso anasalado como alguém que procura esconder sua tristeza - Então, espero não soar rude, mas será que poderia se retirar e conversarmos mais posteriormente? Estou realmente exausto.

Loid percebeu que à medida que completava sua fala a expressão da jovem a sua frente ia mudando, milimetricamente, mas mudava, e naquele rosto tão impassível ele pensou observar terror. Ela parecia querer dizer mais alguma coisa, mas foi interrompida pela porta se abrindo repentinamente, revelando uma enfermeira mais velha segurando uma bandeja de comida.

— Bom dia Dr. Forger, há, olá Senhorita Frost! Já conversamos sobre isso, só porque você conhece pessoalmente o Dr. Forger não significa que você pode desconsiderar o horário de visitação. - A enfermeira repreendeu. - Agora, por favor, saia ou terei que chamar a segurança.

A mais jovem, que agora Loid sabia se chamar Frost, e que pelo visto se conheciam pessoalmente, levantou-se sem dizer uma palavra, apenas curvando-se para ele em sinal de respeito e saiu da sala, sem sequer murmurar um pedido de desculpas para enfermeira que lhe repreendeu.

— Sério, a coragem de algumas pessoas… - A enfermeira resmungou assim que a outra saiu.

— Hum, com licença. - Loid disse, chamando a atenção da senhora mais velha. - Você disse que eu conhecia essa mulher?

— Huh? Ah, certo, a amnésia. Bem, esta senhora aqui era a senhorita Fiona Frost, ela é sua assistente aqui no hospital Berlint.

— Assistente?

— Mais como uma secretária, na verdade. - Explicou. - Ela cuida de sua papelada e gerencia sua agenda com seus pacientes.

— Entendo...

Ele era realmente tão próximo daquela mulher? Ele teve dificuldade em acreditar, dada a interação que acabaram de ter. Mas não poderia realmente culpá-la, visto o quadro em que se encontrava, sentia que ele era o culpado, talvez como um pai de família seu “papo furado” realmente houvesse se tornado uma conversa banal sobre horti-fruti e formas de poupar dinheiro. Provavelmente ela estivesse perfeitamente bem em seu papel e apenas ainda não tivesse recebido o recente diagnóstico de seu chefe.

— De qualquer forma, aqui está o seu café da manhã. - A enfermeira disse, colocando a bandeja de comida em seu colo. - O médico irá atendê-lo em cerca de duas horas. Se tudo correr bem, poderá ir para casa esta tarde.

— Obrigado.

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Após a conclusão dos testes, Loid foi considerado estável e finalmente autorizado a voltar para casa. Mas é claro que, como não se lembrava onde morava, precisava que alguém viesse buscá-lo.

A direção do hospital contactou Yor, que prometeu vir assim que seu turno na prefeitura terminasse.

Quando ela apareceu, uma hora depois, ele já havia tirado a bata do hospital e colocado um terno verde de três peças. A equipe lhe disse que Yor havia trazido uma troca para ele, já que as roupas em que havia chegado não tinham conserto. Eles também lhe disseram que esse era seu terno favorito, e ele sabia por quê. Ele podia mover os braços livremente, o que significava que era feito sob medida e de altíssima qualidade. Ele deve ter sido um psiquiatra de muito sucesso para pagar algo assim. Era uma pena que talvez jamais pudesse praticar novamente.

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Ele encontrou Yor na entrada e ela o guiou até um carro próximo, onde um homem mais velho estava sentado ao volante. Ela rapidamente o apresentou como seu superior, o diretor McMahon, e então Loid e Yor se acomodaram juntos no banco traseiro.

A viagem durou apenas alguns minutos antes que o carro parasse em frente a uma fileira de conjuntos de apartamentos.

— Aqui estamos, 128 Park Avenue. - Yor declarou, saindo do veículo.

Loid desceu do carro, e em seguida olhou ao redor, esperando reconhecer alguma coisa. Mas, infelizmente, nada parecia familiar. Ah, bem, ele pensou. Talvez ele tenha mais sorte com o interior do apartamento.

Subiram alguns lances de escada antes de pararem em frente a uma porta. Yor deu algumas batidas e uma senhora idosa logo veio abrir.

— Ah, Sra. Forger, é bom ver você. - A mais velha disse. - E vejo que o Sr. Forger finalmente saiu do hospital. Como você está, jovem?

— Sentindo-me melhor do que nunca. - Loid respondeu, utilizando um sorriso inconsciente, que seu corpo parecia sentir ser o correto.

— É bom saber. Sua esposa me contou o que aconteceu. E pensar que um grupo de delinquentes iria se rebaixar a ponto de prejudicar um médico tão gentil como você, espero que a polícia possa pegar esses pequenos arruaceiros em breve.

— Sim, eu espero que sim.

— De qualquer forma, aposto que você está ansioso para ver sua filha novamente, certo?

Sem esperar resposta, a senhora se virou para chamar Anya. A garotinha respondeu rapidamente, correndo para a entrada e agarrando sua perna em um abraço.

— Papai! Anya sentiu sua falta.

— Cuidado Anya. Não queremos que Loid caia e se machuque novamente. - Yor repreendeu a garotinha, visivelmente nervosa, como se aquele pedacinho de gente, com menos de um metro realmente pudesse feri-lo, tal ação gentil de sua esposa lhe fez sorrir.

— Está tudo bem, vou precisar de muito mais do que isso para me derrubar. - Ele riu, acariciando a cabeça da garota.

Então se abaixou e a pegou no braço antes de se despedir de sua gentil vizinha idosa, agradecendo-lhe por cuidar de Anya enquanto ele estava no hospital.

Eles subiram mais um lance de escada antes de finalmente chegarem ao apartamento. Yor destrancou a porta e o deixou entrar primeiro.

— Bem-vindo ao lar, papai. - Anya disse, saltando de seus braços. Ela então agarrou a mão dele puxando-o ainda mais para dentro.

— Já que papai não se lembra de nada, Anya vai fazer com que ele faça um tour completo pela casa. - Ela declarou com orgulho.

— Anya, querida. Lembre-se do que o médico disse, você precisa deixar Loid se acostumar em seu próprio ritmo ou ele pode ficar sobrecarregado. - Yor dizia com certo receio

— Desculpe, papai. - Ela disse, desapontada.

— Que tal seguirmos assim então - Loid dizia enquanto se abaixava para ficar na altura da menininha - Vou andar pela casa e você pode responder qualquer pergunta que eu tiver.

— OK! - Anya respondeu em puro êxtase, como se esquecesse que estava triste apenas meio minuto atrás

Com isso Yor sorria, tampando a própria boca e revirando os olhos, um som que Loid achou magnífico.

— Certo, e assim que vocês retornarem o café estará posto. - Yor completou

E assim, ele começou a redescobrir sua casa.

Saindo da entrada, ele logo chegou na sala. Havia dois sofás e uma poltrona, todos voltados para uma pequena TV encostada na parede. E no meio de todos esses assentos, uma grande massa de pelos brancos, expandindo-se lentamente para cima e para baixo, como se respirasse e ocasionalmente emitisse roncos baixos.

— Esse é o Bond! - Anya declarou. - Papai o adotou para Anya porque ela se saiu muito bem na escola.

Ao ouvir seu nome, a grande bola de pêlo começou a se mover e uma cabeça apareceu de repente, revelando que era um cachorro branco gigante o tempo todo. Animado ao ver seu mestre, Bond levantou-se rapidamente e sentou-se bem na frente de Loid, com o rabo batendo ruidosamente no chão.

— Olá, Bond. - Loid cumprimentou, acariciando a cabeça do cachorro.

Bond respondeu com um alto “worf”, a cauda batendo no chão de madeira ainda mais rápido.

Depois disso, ele explorou a cozinha por um tempo antes de se interessar por um corredor que saía da sala. Algumas portas estavam alinhadas em cada lado e porta-retratos pendurados entre cada uma delas. A maioria das fotos mostrava os três, com o cachorro aparecendo em algum momento. Houve apenas uma em que ele estava sozinho com Yor, uma cena brega onde eles estavam fazendo um coração com as mãos.

Uma coisa que ele notou imediatamente foi como todas as fotos pareciam recentes. Pela aparência de Anya na maioria delas, ele presumiu que elas tinham apenas um ano de idade, no máximo. Talvez ele fosse o tipo de pai que gostava de registrar momentos? Ele teria que procurar um álbum mais tarde.

Então chegou a hora de verificar os outros quartos. Ele imediatamente foi atraído por uma porta com uma tábua de madeira pendurada. O nome Anya estava escrito no quadro, dando-lhe uma boa ideia de qual era o propósito deste cômodo.

— Este é o quarto de Anya! - A garota exclamou animada. - Você quer explorá-lo?

— Só se você quiser.

Ela assentiu francamente e foi abrir a porta para ele.

O interior era bastante normal para uma garota da idade dela. Havia uma cama de solteiro com lençóis rosa e uma pequena escrivaninha ao lado. Ela também tinha algumas pelúcias espalhadas, bem como uma caixa de brinquedos no canto. Anya imediatamente pulou na cama para pegar um estranho leão de pelúcia rosa e a apresentou a ele.

— Este é o senhor Chimera. Ele é o amigo mais antigo de Anya. - Ela apresentou.

E então colocou-o de volta na cama e foi pegar um pinguim gigante de pelúcia em seguida. A coisa era tão grande que ele mal conseguia vê-la por trás dele. Também estava muito danificado, com pontos por toda parte.

— Este é o agente Pinguim. Bond tentou matá-lo uma vez, mas papai e mamãe salvaram sua vida.

Loid ficou muito feliz por dentro ao ouvi-la recontar exageradamente o que aconteceu com sua pelúcia, isso confirmou o que ele esperava, ele realmente era um pai atencioso, e sua família parecia ser realmente unida. Reservar um tempo conjuntamente a sua esposa para consertar cada buraquinho em vez de comprar um brinquedo novo para filha, isso deve ter levado horas.

Anya então continuou assim, mostrando-lhe cada um de seus brinquedos e contando-lhe uma pequena história sobre eles. Era muita coisa para absorver, mas a deixou feliz, então ele se sentou na cama dela e a deixou fazer sua pequena apresentação. E depois de meia hora, ela finalmente chegou ao último item de seu quarto, uma série de histórias em quadrinhos com o título 'Guerra de Espiões'.

— Este é Spy Wars, o programa favorito de Anya. O herói é Bondman e ele é um superespião que sempre salva o dia.

Ele pegou um dos livros e rapidamente o folheou. As fotos eram exageradas e cheia de onomatopeias, perfeito para uma criança com uma mente tão criativa como Anya.

Assim que terminou o quarto de Anya, ele voltou para o corredor e escolheu outro quarto para explorar. Mas quando foi abrir a porta, encontrou-a trancada. Um pouco confuso, ele se virou para Anya, que rapidamente lhe deu uma resposta.

— Este é o quarto da mamãe. - Ela o informou.

— Você quer dizer o nosso quarto?

— Não, quarto da mamãe. - Ela repetiu. - O quarto do papai fica ali. - Ela acrescentou, apontando para a porta no final do corredor.

Isso confundiu Loid ainda mais, bagunçando todas as pré suposições que havia desenvolvido de serem uma família normal e feliz. Eles não eram casados? Por que eles tinham quartos separados? Ele se virou para Yor em busca de uma explicação e a encontrou bem atrás dele com uma expressão culpada no rosto.

Loid havia começado o dia achando que sua vida era a mais normal e feliz do mundo, mas como uma granada sendo lançada ela estava prestes a desmoronar?

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.