A ambulância chegou e rapidamente uma das mulheres, que estava desacordada, cujos sinais vitais indicavam um quadro mais grave, foi encaminhada para a sala de cirurgia. Enquanto eu recebia o relatório dos paramédicos que a trouxeram na ambulância, e corríamos com a maca para o bloco, fui compelido a olhar para o seu rosto, como se ela estivesse querendo me dizer algo ... Mas a sensação passou tão rápido quanto viera.

A sequência de ações a seguir foram tão sincronizadas que não havia condições para devaneios, provavelmente o que senti foi resultado de muitas horas de trabalho e toda a carga de adrenalina para salvar a moça. Assim que todo o aparato cirúrgico estava devidamente arrumado e a equipe paramentada começamos o procedimento.

Eu e toda a equipe do bloco trabalhamos exaustivamente para conter uma hemorragia cerebral, e estabelecer um mínimo de estabilidade aos sinais vitais. Em alguns momentos eu achei que não conseguiria e que perderia a paciente durante a cirurgia, mas a linha tênue que a segurava presa a vida se manteve firme durante todo o tempo, longas 6 horas ...

Quando por fim o quadro se estabilizou, induzi a paciente a um estado de coma controlado, para que o seu organismo tivesse o tempo necessário para se recuperar e dali para a frente contávamos com uma força maior, que eu sempre me esforcei para acreditar que respondia pelo nome de Deus.

Eu estava tão cansado que até para retirar as vestimentas utilizadas na cirurgia e me aprontar para sair do bloco, foi preciso ajuda de um enfermeiro. Foi necessário passar mais algumas horas no hospital, pois o meu colega também cirurgião ainda estava em procedimento e caso a minha paciente necessitasse eu queria estar a postos.

A drEvie, insistiu para que eu fosse para casa e que ela assumiria dali para a frente caso fosse necessário, tendo em vista que a paciente estava já fora de risco de morte. Mas, não consegui ir embora ... Um laço muito forte é criado quando se salva a vida de alguém e como eu não teria para quem voltar mesmo, em meu apartamento, preferi permanecer no hospital e me dei ao luxo apenas de engolir um lanche rápido e fui para o quarto de repouso dos médicos.

Acordo sentindo a pressão de uma pequena mão sobre o meu ombro, me chacoalhando levo um tempo para me recordar da onde eu estava e a quem pertencia àquela voz.
– Lúcio acorda... Mas que homem difícil.
– Humm o que foi? Algum problema com algum de meus pacientes?
– Que paciente que nada, posso saber o que você está fazendo aqui?
– Hummm dormindo?
– Engraçadinho, por acaso não tem cama na sua casa?
– Eu não acredito que você me acordou para me dar uma bronca Vivinha.
– Eu fiquei inconformada quando uma enfermeira me disse que o viu entrando na sala de descanso, vai me dizer que agora evita voltar para casa e irá emendar um plantão ao outro? Eu não te mandei ir para casa descansar Dr. Lúcio?
– Eu queria acompanhar de perto a evolução do quadro de uma das minhas pacientes e depois estava cansado demais para voltar para casa.
– Qual paciente? A das três irmãs?

– Essa mesmo...
– Lúcio você fez o procedimento correto, a paciente está estável agora é só aguardar, não há mais nada que você possa fazer.
– Eu sei disso, mas me vi tentado a esperar, você nunca sentiu como se fosse acontecer alguma coisa? Não sei explicar, mas quando olho para ela parece que ela quer me dizer alguma coisa, como se eu tivesse deixando passar algo.
– Meu amigo você precisa deixar esse hospital um pouco.
– Acha que eu estou ficando louco?
– Talvez .... estou ficando preocupada com você meu amigo! Eu falo sério quando digo que você precisa se desligar um pouco disso daqui, desde que a Denise morreu você mergulhou de cabeça no trabalho, quando não está metido aqui no hospital está enfiado na ONG, o que você vem fazendo por você?
– Uma coisa não tem relação com a outra Vivinha, mas e quanto a paciente, o que você me diz?
– O quadro ainda não evoluiu, mas é cedo pra dizermos alguma coisa... Eu não vi a jovem ainda a mãe dela é que vem me dando dor de cabeça, ela da mais trabalho que as três filhas juntas.
– Então elas são mesmo irmãs?
– É o que consta no cadastro.
– Não tive tempo de conhecê-las ainda.
– Eu não tive contato com as pacientes ainda, conheci os únicos familiares que apareceram até agora, a mãe e a avó uma parece ser uma boa mulher quem não me agradou nem um pouco foi a tal de Eva, a mulher parece desequilibrada.

– Ora, ora doutora Evie fazendo julgamento das pessoas.
– Eu também não sou de ferro Lúcio e você há de concordar comigo que ela não parece muito racional.
– Não deve ser fácil passar pela situação dela Vivinha ela é mãe.
– Nisso eu não discordo, eu também sou mãe Lúcio, se me ligassem no meio da noite dizendo que as minhas filhas...

Ela se interrompe ao falar nas meninas e fecha os olhos por um segundo afastando os pensamentos.
– Eu enlouqueceria pode ter certeza, mas segundo relatos das enfermeiras essa Eva pergunta a cada pouco sobre o estado de saúde da Ana, e em nenhuma vez pede pelas outras filhas.
– É estranho mesmo! As mães geralmente tendem a se preocupar mais com os mais novos, que não conseguem se defender sozinhos, mas talvez seja porque ela sabe que as outras estão fora de perigo.
– Mesmo assim Lúcio a caçula tem seis meses e ela sequer entrou no berçário para vê-la, ela pode estar fora de perigo, mas está bem machucada e precisando de cuidados e só os está recebendo da irmã e das enfermeiras... isso sem falar no estresse que é estar em um hospital, esse não é o melhor ambiente para uma criança.
– Eu não sei o que pensar.
– Se fosse sua filha como você reagiria?
– Eu sinceramente não sei, você sabe que ser pai sempre foi o meu maior sonho, mas que nunca aconteceu... Eu iria ficar atento a qualquer mudança no quadro da minha filha, mas não iria me esquecer das outras, a final todas estiveram expostas ao mesmo risco...

– É isso que estou dizendo Lucio, a algo de muito errado nessa historia, eu só não sei o que é.

– É impressão minha ou seu lado detetive esta estrando em ação.

– É impressão sua eu não vou investigar nada, não tem nada com a vida particular dos pacientes, mas enquanto essa mulher estiver aqui no hospital eu vou ficar de olho, ela não me inspira confiança.

– Bom eu não terei como evita-la, é a mãe da minha paciente eu vou ter que conviver com ela enquanto a sua filha estiver sobre a minha responsabilidade.

– Boa sorte então...

Ela se levanta da beirada da cama e caminha até a porta, leva a sua mão a maçaneta mais antes de abrir a porta e deixar o quarto ela volta a sua atenção a mim.

– Lucio você sabe que não me importo que você fique aqui no hospital, por mim você fica o tempo que desejar... mas eu me preocupo com você o suficiente para perceber que você não esta bem... se cuida ok?

– Eu vou me cuidar Vivinha obrigado por se preocupar.

...

Consegui dormir quase 4 horas seguidas, o que para mim já era um recorde! Dificilmente conseguia dormir horas seguidas, sempre acordava e não havia meios de conciliar novamente o sono. Provavelmente teria dormido mais se Vivinha não viesse me acordar ...

Assim que fiz uma toalete básica, levando-se em conta que a bolsa de emergências que eu mantinha no hospital já estava desfalcada de vários itens, dirigi-me para bloco onde havia deixado a paciente.

Após examiná-la, constatei que o quadro se mantinha sem alteração, alterei alguns medicamentos e se tudo continuasse a correr bem, logo ela poderia ir para a outra ala. Ela estava com o semblante sereno e parte da cor já voltara a sua face,  fiquei alguns minutos a olhar novamente para o seu rosto.  Em mim apenas um sentimento de dever cumprido, fiz o meu melhor, novamente e a vida parecia que daria uma nova chance a ela. Esse sentimento me preenchia e me esvaziava ao mesmo tempo ...  a certeza de que a vida tão rica mas também tão frágil pode ser perdida de repente e deixar uma ausência  tão grande !  

Agora, era o momento de falar com a família. Após a cirurgia a DraEvie se encarregou de deixá-los a par de como fora a cirurgia e o que era esperado nas próximas horas, mas eu gostaria de conhecê-los e se possível levar mais algum alento, principalmente, porque a moça reagia muito bem.

Assim que cheguei á sala de espera próxima ao bloco cirúrgico, uma mulher, que pelo tom de voz estava descompensada veio em minha direção exigindo saber quando poderia ver a filha, tão logo ela começou a falar comigo eu me lembrei do que a Vivinha havia me dito ao seu respeito.

– Bom, minha senhora. É preciso esperar um pouco mais para que tenhamos certeza de que a sua filha vai continuar a reagir bem no pós cirúrgico.

– Mas eu sou a mãe dela e exijo que me deixe vê-la imediatamente.

– Infelizmente isso não será possível agora, mas assim que puder eu mesmo venho para leva-la para ver sua filha. Agora se me der licença ...

Aquela senhora, não apresentava a menor condição de entabular uma conversa com ninguém, e eu realmente não estava com paciência para aquele tipo de chilique. Vi que uma outra senhora, de mais idade estava segurando-a na esperança de contê-la para que não cometesse mais nenhum desatino, provavelmente... olhar para ela me fez reportar a minha vó, não sei porque mais ela tinha cara de avó, daquelas bem doces que recebe os netos em casa com a mesa cheia e uma vontade enorme de agradar.

No posto de enfermagem, fui informado pela enfermeira de plantão que a outra moça, que agora eu sabia, era irmã de minha paciente e a criança que estava no carro, não estavam em estado grave e foram atendidas prontamente e já se restabeleciam no quarto.

Ana Fonseca, Manuela Fonseca e a bebê Julia Fonseca. Seriam as três irmãs? Se a mãe era realmente aquela senhora da sala de espera, ele já se compadecia das três! Segundo o que a enfermeira lhe disse, durante a cirurgia, a senhora, que atendia pelo nome de Eva, tivera que ser contida com um sedativo leve, pois causou muito tumulto no hospital e assim que a senhora que a acompanhava autorizou, ela foi sedada, só despertando algumas horas depois. Por enquanto pelo que eu virá e ouvira a Vivinha parecia certa em seu julgamento quanto a tal Eva, o que não me saia da cabeça agora era quem mais faltava eu conhecer dessa família, talvez o pai, algum tio ou tia, quem sabe um namorado... Não sei dizer porque esses pensamentos me vieram a cabeça, mas me peguei interessado em saber mais sobre o que envolvia a minha paciente.