Elementar

Voo noturno


Jimmy

Enquanto a ruiva corria em sua direção, uma sensação de tontura tomou conta do corpo de Jimmy. Sua visão o levou para um lugar diferente, muito mais escuro que a salinha do homem-tartaruga. Dois grandes olhos avermelhados surgiram na escuridão, depois se ergueram ameaçadoramente. Reconheceu que era uma Serpente, porém muito diferente daquela na clareira. Tinha o corpo amarelo escuro, largo e muito, muito grande. Um par de chifres ondulados se encontravam no topo da cabeça gigantesca.

“Todos esses estarão mortos, Jimmy. Isso é uma promessa. Acredite, Hyu, o rei das Serpentes, nunca quebra suas promessas.”

No momento seguinte, o cheiro de infância já havia invadido e apagado todo tipo de horror provocado pela rápida visão.

Jimmy passou mais de dez minutos abraçando e beijando a bochecha corada de Madeline. Ambos estavam bastante confusos com toda a situação. Como sua melhor amiga havia parado ali também?

Sterphy entrou logo depois na salinha, vestida com sua capa negra. Dudi ofereceu chá e a líder recusou com uma careta hilária.

— Isso tudo é tão incrível! Eu ainda não acredito que você está bem, vivinho! — Ela apalpou o rosto do garoto, como se não estivesse acreditando que ele estava ali.

—Tinha certeza que vocês se conheciam. É realmente muita coincidência morarem perto um do outro. —Ela comentou a respeito de Madeline e de Jimmy. —Essa garota é uma humana com dons mágicos. Tive que correr para resgatá-la antes que as Serpentes a levassem para o time errado.

— Não sabia que Jimmy tinha uma namorada. — Sam caçoou, fazendo todos rirem.

— Esse clima de reencontro tá ótimo, eu sei, eu sei, mas precisamos discutir o que acabou de acontecer agorinha! — Carl apontou para Fred nas sombras. — As coisas que ele disse.

Dudi sapateou até o patrão, defendendo-o do dedo agressivo de Carl.

— O Carl tá certo. É um prazer conhecer uma amiga do Jimmy, mas não podemos ignorar o que a tartaruguita disse. — Sam bravejou e Dudi pareceu se ofender com o “tartaruguita”.

— Esses são assuntos sérios que eu irei debater com a Sterphy agora. Acredito que uma força de Hear esteja agindo negativamente sobre essa sala. Ela acabou de usar o meu corpo para passar uma mensagem. —Fred acompanhou Sterphy para fora da sala e os outros também se afastaram.

Jimmy passou o resto do dia conversando com Madeline. Ela contou a ele sobre o seu poder de ver fantasmas e ele precisou se conter para não perguntar se ela podia ou não ver o espírito de sua mãe. Rachel, a gótica estressada do treinamento, levou Gina para o quarto em que o Time Elementar, como Carl intitulou, iria ficar.

Era um ambiente agradável, com sete camas, decoração antiga inútil e uma janela com vista para um vasto campo, onde a coruja branca gigante que havia trazido eles estava. Jimmy escolheu sua cama e ficou deitado nela por alguns minutos, processando todas as informações.

***

Sam

Dois grandes blocos de terra se desgrudaram do solo e voaram contra Jimmy. Sam separou as mãos e girou o corpo, fazendo cada bloco se dividir em mais dois. As quatro pedras atingiram o garoto com tamanha força, lançando-o para longe. A garota cessou os movimentos e se abaixou, tentando esconder o peito que subia e descia, sinal da respiração ofegante.

Seus cabelos curtos agora estavam totalmente bagunçados. Aquela era a segunda semana de treinamento que eles tinham em Vulner. Sem sombra de dúvidas, o mais interessante até agora tinha sido com os gêmeos da última torre. Tyg e Try, como se chamavam. Os dois garotos eram manifestações espirituais da Lua e do Sol dentro de corpos humanoides. Conseguiam ler pensamentos e transportar o corpo físico para dentro de um local imaginário, onde a criatividade podia criar qualquer tipo de coisa, inclusive armas, como os anéis dos lanternas verdes.

Rachel os ensinou a usar as armas elementares com sucesso, mas não tinha conhecimento o suficiente a respeito das técnicas de controle. Para isso, a própria Sterphy estava os ajudando.

— Isso aí! Arrasa a cara do Jimmy! — Carl gritou do outro lado do campo, balançando as mãos euforicamente.

— Vocês precisam admitir que as garotas estão humilhando vocês. — Tyler comentou. Ele estivera no topo de uma pedra desde o começo da batalha, balançando seus braços com asas de águias toda hora.

Sam estava se sentindo realmente cansada. Apesar de lutar bastante no ringue do seu pai, levitar rochas pesadas era muito pior. Sterphy a elogiou bastante, entregando mais um caderno antigo com indicações de movimento.

— Essas técnicas são bem antigas. Os espíritos Elementares sempre usavam esses ataques. Acredito que originalidade da parte de vocês não vai bastar. Precisam manter algumas tradições. — Ela tirou mais três cadernos e distribuiu para os outros. — Terminamos por hoje. Preciso desvendar o desaparecimento de uma garota-coelho.

— Obrigado. — Gina disse quando pegou o seu, depois se virou para Sam. — Você é a melhor, na boa.

Sam buscou alguma resposta, mas as palavras sumiram de sua boca. Ela ergueu o punho e socou o ombro da outra garota, que recuou depressa, proclamando xingamentos por conta da dor. O sol de fim da tarde trouxe uma coloração esmeralda para o céu de muitas nuvens, ameaçando desabar um pé d’água. Voltaram para dentro do Castelo e passaram o resto do dia dentro do quarto, enquanto grandes gotas de chuva surripiavam as janelas.

Madeline era a atração do momento. Ela olhava para os cantos da sala todos os instantes, anunciando a presença de algum fantasma furtivo. Sam não falou muito com ela, mas Jimmy passava boa parte do seu tempo livre batendo papo com a garota. Será que alimentavam alguma paixão um pelo outro?

Gina estava sentada em sua cama, o livro de técnicas aberto em seu colo. Um filete de água subiu de uma jarra de água e serpenteou firmemente até as suas mãos. Ela comprimiu os dedos e, em questões de segundos, todos viram a água congelar e se espalhar por todo o quarto em forma de espinho.

— Isso foi um pouco arriscado. — Madeline comentou quando a ponta do espinho atingiu seu braço de raspão.

— Irado! Não gosto muito de ler, mas esse livro parece ser bem bacana. — Ele arqueou as sobrancelhas, jogando o corpo para o canto, onde se encontrava os seus cadernos de treino.

Sam olhou para Jimmy de relance. O garoto estivera calado todo esse tempo, encolhido em um canto. Lia algo com tamanho entusiasmo, passando as folhas bem rapidamente. A garota percebeu que não se tratava do caderno dado por Sterphy, aquilo era um diário.

“Quer ver estrelas?” A voz de Tyler surgiu de súbito em sua cabeça. Se jogou para trás com o susto, deixando escapar um “o quê?’’ para os outros quatro. “Eu disse: Quer ver as estrelas? Ahm, corredor sete, perto dos gêmeos.”

— Você tá bem? — Jimmy perguntou, finamente deixando o diário de lado.

— Eu só preciso pegar um ar fresco. — Ela se levantou cautelosamente, seguindo em direção a porta, depois para o corredor. Deveria mesmo seguir a voz em sua mente? Não sabia que o garoto-águia tinha a capacidade de se comunicar telepaticamente. E se não fosse ele? Uma Serpente tentando enganá-la, talvez.

— Sou eu mesmo, relaxa. — A sombra do garoto surgiu na beirada do sexto corredor. Ele estava vestindo seu traje de voo totalmente encharcado, assim como os seus cabelos loiros.

— O que houve? — Sam perguntou.

— Sei lá. Parou de chover agora pouco, as nuvens saíram e... Bem, o céu tá cheio de estrelas lindas. — Tyler começou a se atrapalhar e embolar as palavras. Suas bochechas coraram levemente. — Não é nada romântico!

— Eu sei que não é, cabeção! — Sam passou por ele e o puxou pelo braço. Recuou alguns dedos quando sentiu o movimento de suas grandes e elegantes asas.

Foram para a torre mais alta, onde havia uma varandinha. O céu parecia mais um buraco negro, um abismo gigantesco, prestes a sugá-los para outra dimensão. As estrelas também estavam lindas. Sam nunca tinha visto tantas antes. Era um espetáculo de belezura.

Sam ficou pendurada no muro por um tempo. Chegou a ver Sterphy na torre da frente, seguindo Bree atentamente por um corredor iluminado de archotes. Ela e Tyler se entreolharam, tentando decifrar o que aquilo significava.

— Esquece isso, deve ser alguma besteira que ele aprontou. — A garota sussurrou.

Tyler subiu no muro da varandinha e ergueu as mãos para a garota subitamente.

— Quanto mais perto delas. — E olhou para o céu estrelado vorazmente. — Melhor.

Sam apertou a mão do garoto-águia e, juntos, jogaram-se em um eletrizante mergulho para a escuridão. Ela sentiu a barriga embrulhar e um desejo enorme de gritar, quebrar o silêncio. Quando estavam prestes a se chocar contra o chão, Tyler colou seu corpo ardente no dela e jogou-a para suas costas, abrindo os braços e esticando as asas. O solavanco fez Sam se segurar em seus ombros, como se estivesse montada em um cavalo.

Voavam cada vez mais alto, afastando-se de Vulner sem nem notar. O vento soprava a alma dos dois, unindo-os como um só. Se tinha a certeza de alguma coisa, era que aquele momento foi um dos mais felizes de sua vida.

— Eu estou voando! — Sam gritou quando desceram repentinamente, como um jato.

Tyler pousou no topo de uma árvore e a garota recostou o corpo trêmulo no tronco úmido. Tinham uma visão perfeita das montanhas ao longe e da lua brilhante.

— Isso foi ótimo! — Ele disse, jogando os braços para cima, animado.

— Claro que foi! Eu quero muito aprender a fazer isso. — Ela agarrou os braços do garoto e colou o seu nariz no dele, arregalando os olhos e falando coisas aceleradamente.

— Acho que não tem como. — Ele riu um pouco, exibindo pequenas covinhas ao lado dos lábios.

Desfrutaram da visão enquanto comiam algumas frutinhas roxas que Sam não reconhecera. Conversaram a noite inteirinha, quebrando o gelo da recém-amizade. Quando finalmente o assunto pareceu acabar, Sam lhe fez uma pergunta.

— Qual a sua história? Digo, todos sabem a minha, mas e você?

— A minha história de vida? Não tem carros em alta velocidade e tiras atirando para todos os lados. — Ele sorriu para ela.

— Conte agora! — Disse depois de socar o seu ombro.

— Tudo bem. — Ele mordeu os lábios e abaixou os olhos, receoso. — Posso? — Ele levantou as duas mãos avermelhadas para a garota.

— Claro. — Foi então que ela sentiu os seus dedos a tocarem, provocando pequenas ondas de prazer em sua pele. Ele foi dedilhando o seu nariz, depois olhos, ouvidos, até chegar à boca. Poderia parecer estranho, mas não foi. Ele continuou a tateando, até que manchas esbranquiçadas surgiram e transportaram Sam para uma visão conturbada do passado de uma criança.

Estavam em um ninho enorme de pássaros. Bebês com asas rolavam de um lado para o outro no material recolhido pela mãe-águia. Sam esticou-se para a lateral e espiou a altura do lugar onde estavam. Era o topo de uma árvore gigantesca. A maior que ela tinha visto em toda a sua vida. E não era apenas uma. Várias árvores do mesmo porte seguiam em fileiras, com mais ninhos nos galhos, ligados por pontes de madeira. Era uma vila dos humanos-águias em Zear, explicou Tyler mais tarde.

A lembrança do garoto adiantou o tempo e passou a mostrá-lo com treze anos, equilibrando-se nos cipós, como se fosse um Tarzan. Depois ele aprendendo a voar com mais uma turma de garotos da sua idade, instruídos por um professor. Até que parou em uma noite onde chamas destruíam os ninhos, onde rinocerontes enormes de três chifres descascavam as árvores, derrubando-as.

O jovem Tyler não sabia o que fazer, voava de um lado para o outro, esquivando-se do mar de flechas que partiam do chão. Sua mãe-águia foi atingida por uma delas e escorregou do tronco, espatifando-se em um dos chifres dos animais na terra. E assim também ocorreu aos irmãos, o pai e a toda a vila. Com a sua exceção.

“Fui um dos poucos sobreviventes do ataque. Apenas quatro humanos-águias sobreviveram e, felizmente, eu estou entre eles. Logo em seguida, Sterphy me encontrou, ela disse que sentia uma forte energia em mim e falou que poderia me tirar das ruas para me levar até o mundo humano e me tornar um guerreiro de verdade. E essa, Sam, é a minha história.”