Kim

Kim nunca estivera tão feliz. Apesar das condições do mundo em que vivia, o restante da população sobrevivente não havia morrido soterrada. Logo depois do resgate, quando chegou ao acampamento, a primeira coisa que fez foi visitar seu pai e sua mãe. Com o contato entre os mundos interrompidos, eles não haviam como se comunicar com a sua irmã Dianna, na Terra.

— As Serpentes me torturaram, queriam saber se eu tinha conhecimento de algo que aquele infeliz do homem-rato não os tivesse passado. Foi horrível, mãe.

Lana, como se chamava a mulher-panda, alisou o rosto do filho com cuidado, beijando sua testa logo em seguida. Seus longos cabelos negros pareciam cortinas e, mesmo cobrindo boa parte do rosto, não escondiam os traços da velhice.

— Ficará tudo bem, eu prometo. Você está seguro. — Seus olhos esverdeados fitavam Kim atenciosamente. — Eu te amo.

— Eu também te amo. — Ele a envolveu em um abraço demorado. Sentia-se tão confortável e seguro ali. Infelizmente, depois que saiu da cabana de sua família, naquela mesma tarde, Werd o motivou a iniciar uma jornada.

— Consegui evacuar todos em tempo suficiente por uma passagem secreta. Nem mesmo o meu amigo mais íntimo sabia da existência dela. — Werd comentou, oferecendo uma bebida para o garoto-panda.

— Então quer dizer que o homem-rato não sabia de tudo! — Uma chama de esperança encheu o peito do garoto. — Senhor, diga-me que os jovens selecionados pelos espíritos não foram levados para Vulner.

— Infelizmente não tive tempo de alterar o plano. Eles realmente foram pra lá! É lógico que, com essa informação, as Serpentes vão marchar até o castelo para tentar destruir os escolhidos e conseguir as joias! — O homem caminhou de um lado para o outro na tenda de reunião. — Precisamos fazer algo com urgência! E eu sei o que será! — Parou por alguns segundos, fitando Kim da cabeça aos pés. — Já que os meios mágicos de comunicação foram interrompidos, teremos que ir para Vulner imediatamente e avisá-los das circunstâncias do ataque iminente. Alertá-los de que precisam se proteger. Essa era a única informação importante que o homem-rato tinha! Nem ele e nem nós temos conhecimento dos rostos dos selecionados, ainda temos chances!

Kim concordou com um gesto rápido, terminou de beber seu chá e levantou-se de forma desconfortável.

— Espere! É aí que você entra.

O garoto deu meia volta, surpreso com a sua inclusão no plano.

— Você vai até o castelo avisá-los do ataque. Precisará ser sigiloso e inteligente! Não podem saber que estamos mandando um mensageiro. Também vai precisar de um companheiro, ou companheira. Arriscarei ao abrir o portal para o mundo humano, mas é por uma boa causa. — Ele sussurrou para o garoto-panda com todas as certezas. — Nos encontramos ao por do sol.

***

Seus pais não haviam gostado da ideia, mas Kim argumentou bastante e eles acabaram cedendo. Voltar a ver a irmã o deixava bastante empolgado. Ao meio dia, ele foi até a cabana onde uma antiga amiga estaria.

A lâmina gelada da Katana beijou o seu ombro desnutrido com leveza. Virou-se com calma, sabendo que encontrara ela. Kitty estava diante dele, segurando uma arma letal, pronto para matá-lo de brincadeirinha. Suas orelhinhas de gata balançavam no topo de sua cabeça, enrolada aos seus cabelos negros curtos. Ela sorriu quando ele afastou a espada e a envolveu em um abraço apertado.

— Eu pensei que nunca mais veria você! Tenho treinado bastante para acertar a cara de uma dessas Serpentes malditas! — A garota-gata agia insanamente, com total sentimentalismo. — Acredite Kim, estou muito mais rápida e vou vingá-lo! É hora delas serem torturadas. — Brincou.

— Eu acredito, mas não temos muito tempo para conversar, preciso que você me ajude em algo. — Ele explicou tudo para ela. Confiava bastante na gata e sabia que não iria o abandonar. Cresceram juntos na época em que Zear estava em paz. Ajudavam os pais de Kim no comércio todas as manhãs e seguiam a colina pela tarde, até os templos dos espíritos elementares. A garota tinha uma história um tanto triste.

Sua família fora dizimada por uma doença quando ela ainda tinha três anos. Kitty foi levada por sequestradores para minas na região norte do reino, onde ficou por bastante tempo servindo como escrava. Conseguiu escapar sozinha, levando consigo todas as outras crianças-animais que também estavam presas lá. Depois de algumas semanas, voltou no lugar e fez vingança com as próprias mãos. Foi depois desse incidente que os dois se conheceram. Ela deixou de ser violenta, mas sabe usar sua Katana quando precisa. Agora, diante do convite de Kim, a garota-gata sabia exatamente que estava na hora de voltar à ação.

— É claro que eu te ajudo! Nunca fui ao mundo humano, seria uma honra. — Ela ergueu sua Katana, simulando um golpe horizontal.

— Ótimo! Arrume suas coisas, leve todo o tipo de arma, partiremos logo.

— Você mudou mesmo... — Kitty foi interrompida por um estrondo vindo da tenda vizinha. Ao saírem, depararam com um acampamento totalmente desorganizado. Todos estavam correndo para a tenda maior de todas, onde Kim tivera a conversa com Werd. O garoto-panda e garota-gata fizeram o mesmo. Na metade do caminho, seus pés já haviam cansado. Aquele acampamento era bastante grande. O coração estava quase pulando para fora da garganta. Do que estavam correndo?

Ficaram todos abarrotados lá, em total silêncio. Alguém sussurrou que Serpentes estavam vagando por aquele lado e que Werd havia usado um encantamento em todo o lugar. O nome da magia era Ocultumun e era capaz de esconder qualquer tipo de coisa e até de diminuir a potência mágica das pessoas do lugar ou do próprio ambiente. As Serpentes não podiam vê-los. Estavam invisíveis.

Kim a viu através da cortina da tenda. Ela resmungava sozinha, tentando farejar algo. Só de lembrar-se dos dias que passou na toca daquelas criaturas, um arrepio tomava o seu corpo. Outra surgiu, era maior e mais atenciosa que a primeira. O monstro ergueu seu corpo azulado ferozmente. A entrada de pano esvoaçou com o vento e ele achou que elas tinham visto eles, mas olhavam para a cabana como se ali não tivesse nada.

— Yurt disse que não encontraram corpos. É por isso que estamos procurando sobreviventes.

— Aposto que o babaca do Ledber acabou explodindo dinamites em um castelo deserto. — A Serpente azul debochou.

— Espero não ter sentido um pingo de ironia em sua fala. Ledber é extremamente poderosa, é uma das únicas que consegue se transformar em um humano-animal. — A Serpente menor acabou se empolgando e também ergueu o corpo reptiliano, fitando a irmã com tamanha tensão.

— A presença de devoção nas coisas que você está falando... Argh! Se gosta tanto de Ledber, sugiro que deixe de seguir o nosso único e poderoso mestre. Hyu está muito bravo com o fracasso de Ledber. Foi ele quem deixou aquele garoto-panda escapar! E se tiver encontrado com os humanos-animais que deveriam estar mortos? Ele contará sobre o plano de invasão e eles vão arranjar uma forma de se comunicar com Vulner.

Aquilo realmente já tinha acontecido.

— Não se preocupe, avisando ou não, aposto que Vulner não conseguirá se preparar para um ataque em menos de um mês.

Aquela era uma informação nova. Agora, tinham um prazo. Kim tinha que partir imediatamente.

***

O portal do mundo humano só foi aberto por Werd quando a Serpente já tinha voltado para a toca, no centro. Kitty carregava uma mochila maior que a de Kim, guardando todas as armas. Eles se despediram de suas respectivas famílias e Kim deixou uma promessa que esperava poder comprimir.

— Eu vou trazer minha irmã, juro!

E, quando foi se despedir de Werd, o mago acabou lhe dando um saco com materiais leves que o garoto não soube deduzir ao certo do que se tratava.

— Tenho certeza que isso vai ser útil. — O mago sussurrou. À medida que o tempo passava, sua figura se tornava cada vez mais distante, engolidas pelo barulho de buzinas de carro em uma estrada bastante movimentada, depois navegaram na imagem de um silencioso e calmo lugar.

***

Caíram sobre um montão de feno. Quando Kim se levantou, Kitty já estava atravessando a porta do celeiro. Ele a seguiu atentamente até o lado de fora, onde havia um milharal enorme bastante convidativo para um esconderijo.

— Werd fez um portal fraco para não chamar a atenção das Serpentes. — Ela andava com cautela, segurando sua Katana firmemente. — Nos trouxe para um lugar que, provavelmente, é bastante perto de Vulner.

Atravessaram a plantação em silêncio, engolidos pelas trevas do anoitecer. Espantaram-se ao ver uma casa ao longe. Três mulheres estavam sentadas na varanda, bebendo em garrafas e conversando alegremente. Kim contou sua ideia para Kitty e nos minutos seguintes já estavam fingindo ser crianças pobres.

— Nos ajude, por favor. — Eles atravessaram a orla da fazenda as pressas, dramatizando.

— Essas crianças precisam de ajuda. — A primeira mulher se levantou e acabou conscientizando a dona da casa, que os deixou entrar.

As tocas que os garotos usavam não deixavam que suas orelhas animalescas aparecessem. A mais velha das mulheres, chamada Marieta, os alimentou com água e biscoito, mas Kitty achou uma lata de sardinha mais atrativa. Eles conseguiram o máximo de informações possíveis e descobriram que a localização não era muito distante do castelo. Algum na Europa. Que nome estranho, pensou.

Na cozinha, uma torrada pulou para fora da torradeira e pousou diretamente no colo de Kim. O garoto-panda gritou assustado, arremessando a fatia quente de pão para Marieta, que conseguiu agarrá-la rápido demais, levando em conta a sua idade.

— Estamos indo para uma casa de acolho no sul, mas a fome atacou, pensei que morreríamos. Somos gratos pela ajuda que você nos deu.

— São crianças inteligentes. Deveriam ficar. — Ela disse maldosamente e não demorou para que as outras duas surgissem a porta. Kitty encarou Kim, tentando avisá-lo do que estava prestes a acontecer.

Uma faca de cozinha perfurou a mesa ao lado do garoto-panda. Ele se virou depressa e teve tempo para se abaixar no instante que uma segunda lâmina se prendeu a madeira da mesa. Kitty miou ferozmente e puxou a Katana da mochila, erguendo a arma na direção do braço da mulher mais jovem.

Marieta subiu na mesa sem esforços, um sorriso selvagem marcando seu rosto de uma ponta a outra. Os olhos das três estavam enegrecidos e o corpo cheio de veias alteradas. A espada de Kitty não conseguia acertar nenhuma delas, pareciam mais habilidosas que a gata. Kim se levantou decididamente e, aproveitando a distração de uma delas, agarrou a faca presa na mesa e a lançou contra as costas da mulher. Fincada ali, o objeto rasgou a pele do ser possuído e o reduziu a cinzas.

Kitty manobrou a Katana verticalmente no momento que Marieta socou o rosto de Kim. A mulher também foi ao chão, transformando-se em pó. A última garota encarou os dois com um olhar desafiador.

— Pode ir correndo avisar que estamos chegando. Preparados ou não, a derrota espera por vocês. — Escancarou a boca medonhamente. Uma fina linha de poeira saiu dali, dançando pelo ar do cômodo como uma Serpente, depois saiu pela janela.

— Precisamos ir. — Ela puxou Kim pelo braço, agarrou algumas latas de sardinha e saiu da casa.

***

Andaram por horas pelos campos desertos da região até verem as primeiras torres do castelo. Kitty segurava o mapa e marcava com lambidas felinas.

— Pronto para ver sua irmã? — Ela perguntou sorrateiramente, depois passou o braço pelo ombro de Kim e o beijou da bochecha.

O garoto retribuiu com um abraço apertado.

— Não teria conseguido sem você.

Um tornado de fumaça negra se formou diante deles, impedindo a passagem para o castelo. Aquela massa tomou forma e transformou-se em uma Serpente enorme. Ela sibilou de animadamente, encarando os dois como se fossem duas coxas de frango.

— Estão comemorando a vitória um pouquinho antes, não é? — Ela investiu violentamente. Suas presas de fumaça acertaram o chão gramíneo ao lado de Kitty e ela caiu violentamente na mira do animal. Kim tentou se afastar, mas o rabo áspero da criatura o jogou para o lado, para perto de Kitty. — Não costumo comer porcaria.

Ela levantou o rabo esfumaçado para ataca-los, mas uma rajada amarelada vinda do castelo fez o monstro desaparecer em um mar de penumbra. Do topo da maior torre, uma mulher alta e forte observava eles. Apareceu alguns minutos depois, junto com mais três humanos-animais que levaram Kim e Kitty.

Os garotos ficaram no que parecia uma enfermaria por mais ou menos trinta minutos.

— Garoto, meu nome é Sterphy. Você pode confiar em mim. — Ela disse.

Kim pigarreou, sentindo a garganta secar bastante.

— Trago uma mensagem de Werd para você, lá de Zear. — Uma forte dor de cabeça o atingiu, depois todo o corpo enfraqueceu subitamente. A Serpente ainda o aterrorizava, mesmo ali dentro. — As Serpentes tem conhecimento do paradeiro dos jovens selecionados pelos espíritos. Eles sabem que estão nesse castelo e pretendem atacar o mais rápido possível. Você precisa se preparar antes que seja tarde.

Ele viu a líder mordiscar os próprios lábios com cautela. Estava prestes a dizer mais alguma coisa. Foi quando uma explosão partiu do lado de fora da sala. Sterphy parecia saber exatamente do que se tratava. Em meio a mais barulhos estrondosos, Kim ouviu-a falar um único nome.

E era Bree.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.