Samantha já estava cansada daquela figura esverdeada seguindo-a para todos os cantos. O pior era quando a mesma ficava a observando lutar no ringue. Tentou explicar para o seu pai que as últimas derrotas dela estavam ligadas as estranhas aparição da áurea, mas ele sempre a taxava como doida.

— Você está perdendo a concentração. Era uma das melhores do campeonato e agora está lutando para não sair dele! Não vem com essa sua desculpa tola de espírito ou sei lá o quê!

Odiava o pai por não acreditar nela. Eram nesses momentos que a garota sentia mais falta da mãe. A mulher havia desaparecido logo depois do seu nascimento, sem deixar rastros nenhum. As investigações nunca terminaram, mas Sam já havia perdido as esperanças.

— Hoje é o dia da última luta, não quero mais papos furados.

O homem saiu do quarto abafado de treinamento e a garota se perdeu na própria imagem, refletida no espelho. O cabelo curto não chegava a tocar o ombro, liso e negro, um corte desarrumando acima dos seus olhos castanhos, o corpo moreno e definido se contraindo a cada pensamento raivoso que brotava na cabeça dela. O espírito, como o seu pai o chamara, não aparecia desde a noite anterior. Sam sabia que ele só voltaria essa noite, para fazê-la perder a luta final, para uma última festa.

***

A plateia não gritou quando Sam subiu ao ringue, a única coisa que ela escutou foram vais intermináveis, como resposta a péssima campanha que ela tinha feito nas últimas lutas. Sinceramente, ela não se importava, só queria vencer e não decepcionar o seu pai. Sua rival já estava do outro lado, ambas partindo para o ataque.

A mão de Sam atingiu o rosto da outra garota, fazendo-a recuar. Ela comemorou em pensamento e foram os segundos de distração que fizeram com que ela fosse atingida. O peso da mão da rival descendo na direção da sua boca foi indescritível.

Ela cambaleou, abaixou a cabeça quando outro golpe tentou ser efetivado e socou o braço da outra com grande força. Algo fisgou o seu pé e, sem perceber, já tinha todo o corpo estatelado no chão da arena. A dor de receber vários socos no rosto era horrível. Cores dançavam em sua frente, enquanto a expressão de vitória da rival a possuía. Quando seu nariz foi atingido, teve quase certeza que fora quebrado. Estava prestes a perder, tudo fora tão rápido dessa vez. E foi aí que o espírito apareceu.

A fagulha esverdeada estava do seu lado, encarando a situação. Parecia se divertir vendo Sam perder. Pelo canto do olho, a garota rastreou e espírito e ergueu a mão para ele. Tentava se comunicar com a coisa, mas sempre era interrompida por mais socos.

Então, como se estivesse esperando a hora certa desde o começo, o espírito apertou a mão da garota e desapareceu. No instante seguinte, a rival já estava caída do outro lado da arena. Sam estava em pé, a mão ainda erguida para as garotas. A plateia gritava como nunca.

Como eu fiz isso? Ela se perguntava.

Agora caminhava até a rival, seus passos destemidos e firmes. Havia algo de diferentes em sua essência, mas só foi quando os socos começaram que ela percebeu que não estava fazendo aquilo. Alguém estava a usando como fantoche, como se linhas estivessem presas aos seus braços, ligadas a dedos que brincavam com ela.

Fez de tudo para parar, mas o controle não estava em suas mãos. Sam ficou desesperada, olhava para a garota, para o seu rosto deformado, o sangue escorrendo dos seus lábios. Sam se lembrou de ter afastado alguém, talvez o juiz. Depois de mais alguns minutos de pancadaria, finalmente apagou. Havia matado a rival?

***

Quando acordou, viu a mão áspera de um homem abrindo o zíper de sua calça. Ela estava em uma posição desconfortável e sabia o que ele estava prestes a fazer. Sua primeira reação foi de afastá-lo, arremessá-lo para longe. Ao receber o baque, o rapaz caiu no chão de concreto do terraço em que estavam.

Ele usava uma farda de policial e Sam não entendia o que estava acontecendo de verdade. O horror havia se instalado em seu peito, mas ela não estava perdida, sabia o que tinha que fazer, na verdade, nunca se sentiu tão livre para isso. A garota agarrou a gola da camisa do homem e, com uma força que não pertencia a ela, levou-o até a ponta do prédio, ameaçando-o jogá-lo lá embaixo.

— O que você estava fazendo? — Perguntou com um tom brutal.

— Uau, você acha que eu tenho medo? Gosto de garotas assim, violentas...

Sam apertou o seu pescoço e só parou quando o rosto do policial começou a ficar vermelho.

— Eles mandaram eu te tirar do ringue e te levar até um hospital, mas... Você acha que estamos em um hospital?

Samantha se lembrou da luta e de como havia deformado o rosto daquela garota. Não queria ter que voltar lá, não queria voltar para o seu pai e suas demandas para vencer o campeonato. Queria dar um fim naquele homem.

— Chega! — A voz saiu da boca de Sam, mas não pertencia a ela. Tinha um teor muito mais grosso do que o normal, potente, assustadora. Ela largou a gola da farda e o homem despencou para baixo, agora com uma expressão de horror substituindo a de sarcasmo.

Não tenho muita paciência para quem está começando. Tsc.

A voz que brotou em sua mente não a incomodou dessa vez. Sabia que era o espírito esverdeado e não contestou aquilo. Na verdade, a garota apenas respondeu mentalmente: É, eu também não. Consegue me escutar? Precisa me explicar algumas coisas...

O baque não aconteceu. Sam olhou pela extremidade do prédio e viu um corpo imóvel, como se estivesse deitado em um chão transparente, no meio do ar.

Eu consigo ouvi-la. Não podemos matar esse rapaz, mesmo que ele seja podre por dentro e por fora. Não se preocupe, você não tirou a vida daquela garota, eu só estava me divertindo um pouquinho. Agora que fiz algumas coisas para você, preciso que faça algumas para mim.

Sam não pensou em mais nada, apenas deixou que tudo fluísse. Diante de todos aqueles prédios imersos na escuridão, ela nunca se sentiu tão ligada à natureza que sustentava aquelas invenções, ao chão que pisava todos os dias, a terra. A última coisa que ouviu antes de apagar foram gritos vindos do comunicador do policial que estava no chão. As palavras diziam: “Precisamos de reforços no Golden! Um adolescente baleado desapareceu e estamos enfrentando uma ventania terrível! PRECISAMOS DE AJUDA AGORA!”.