Eldarya

Capítulo 9 - Inesperado.


Venha aqui, sente-se com a gente.

A voz de Nevra reverberava em minha cabeça enquanto eu tentava me lembrar como mover minhas pernas para ir em direção a eles. Parei em frente à mesa onde estavam, o sangue parecendo congelar com o convite inusual.

— E por que deveria? — ergui uma sobrancelha, inclinando a cabeça para o lado. Alguma coisa naquele convite fez o meu coração bater mais rápido e agora eu estava lutando para acalmá-lo.

— Porque você está sob nossa custódia. — respondeu o vampiro.

— E vem passado muito tempo sozinha nas refeições. — completou Leiftan. — Um pouco de companhia faz bem às vezes.

— Nesse caso, eu aceito. — sorri. Coloquei a minha bandeja em cima da mesa e sentei-me do lado de Nevra. — Gostei do novo visual. — dei um sorriso de canto para o vampiro, finalmente me referindo ao tapa-olho. Ele retribuiu o gesto. — Como conseguiu isto?

— É um charme, eu sei. — Nevra ronronou. Não o respondi, apenas foquei em começar a comer minha refeição. — Encontrei um mascote selvagem durante uma patrulha rotineira. Ewelein achou melhor usar o tapa-olho por algum tempo.

— Isso significa que você vai ficar cegueta? — eu disse sem prestar atenção e me arrependi do uso da palavra meio segundo depois.

Ezarel quase cuspiu a bebida, enquanto Valkyon e Leiftan apenas se limitaram a reprimir uma risada. Nevra pareceu achar graça.

— Felizmente, não. — o vampiro suspirou.

— De qualquer jeito, combinou com você. — dei de ombros e inclinei a cabeça, pegando mais comida com a colher. — Com o cabelo por cima e tudo mais. Um charme, até. Bem criativo da sua parte.

— Por favor, não o elogie desse jeito. — resmungou Ezarel. Ergui o olhar para ele. — Assim Nevra nunca mais vai querer tirar esse bendito tapa-olho.

— Eu disse seria um imã para mulheres bonitas. — Nevra deu um sorriso convencido e se recostou na cadeira, levando um pedaço de carne até a boca.

— Ei, eu não estava te paquerando! — dei um cutucão nele com a mão livre, a que não estava segurando o talher. Então lancei aquele olhar e abri um sorriso de canto. — Ou estava?

Mesmo na Terra eu tinha o hábito de flertar com todo mundo. Era parte da minha personalidade. E divertido. Até alguém realmente começar a levar a sério.... Aí eu saia correndo. Ou fingia demência. Mas bem, era um impulso. E eu certamente não conteria essa vontade aqui, com toda essa gente nova e interessante. Já que eu poderia morrer, fazeria bom proveito dos meus últimos dias.

Nevra sorriu satisfeito.

— Gosto do seu senso de humor, já vi que nos daremos muito bem. — ele ergueu sua taça para mim e tomou um gole. Sorri para ele antes de levar a colher até a boca.

— Boa noite, pessoal! — uma voz disse atrás de nós. Me virei instantaneamente para ver quem era. Tratei de engolir a comida logo para o responder.

— Ah, oi Kero! — eu disse em meio aos cumprimentos dos rapazes.

— Você salvou a noite, Kero! — Ezarel disse, enfiando uma colher cheia de comida na boca. — Kalina está conosco não faz nem cinco minutos e Nevra já está jogando seu charme para cima dela.

— O Nevra, mulherengo? Tá, agora conta uma novidade. — bufou Valkyon. Arqueei as sobrancelhas, surpresa por ele falar algo. — Vou buscar mais cerveja. — ele anunciou e se levantou.

— Olha só, Ezarel se lembra do meu nome. — observei com um meio sorriso e um tom jocoso. — Achei mesmo que "humana inútil" estava ficando fora de moda.

Nevra quase cuspiu sua bebida e eu me segurei para não rir da cena. Leiftan segurou uma tosse, enquanto Kero se permitiu rir chacoalhando os ombros. Ezarel fez cara de tédio e levou sua bebida à boca enquanto estreitava os olhos em minha direção.

— Posso arranjar apelidos mais interessantes, se quiser. — provocou o elfo.

— Então você não poderá reclamar dos apelidos que eu arranjar para você, — eu abri um sorriso e coloquei os cotovelos em cima da mesa. Entrelaçando os dedos das minhas mãos e apoiando o meu queixo nos mesmos, sorri de forma desafiadora. — chefinho.

Nevra gargalhou alto.

— Por que não chamamos ela para se sentar com a gente antes? Ela é tão legal! — o vampiro deu tapinhas em meu ombro. Sorri para ele.

— Ha. Ha. Ha. — Ezarel fingiu uma risada, sarcástico. Aproveitei o momento para voltar a comer. Algumas pessoas começavam a entrar no salão, olhando para nossa mesa com curiosidade.

— O que eu perdi? — Valkyon disse, se sentando novamente na mesa com uma garrafa cheia de cerveja.

— Nada, só a Kalina pleitando o Ezarel. — o vampiro respondeu com um sorrisinho de canto.

— Sempre soube que ela tinha potencial para isso. — Valkyon sorriu satisfeito enquanto servia seu copo. Depois, ele repassou a garrafa para o grupo.

— Fazer vocês rirem... Pelo menos nisso eu sou útil. — bufei.

— Ora, não seja por isso! — comentou Leiftan. — Você fez um ótimo trabalho com o mascote de Mery, pelo que Ezarel nos contou.

— Você contou para eles? — eu juntei as sobrancelhas, indignada. Senti o sangue esquentar em meu rosto.

— Claro! — Ezarel abriu um grande sorriso. — Você acha mesmo que eu perderia uma oportunidade de entreter meus amigos falando sobre humanos e suas humanices?

— Rapazes, por favor não acreditem nas calamidades que ele disse a meu respeito. — eu disse, dramática. — E a palavra "humanices" nem existe.

— Agora existe, pois acabei de inventar. — Ezarel abriu um sorriso sarcástico.

— Kalina, fique tranquila. — Nevra colocou a mão em meu ombro. — A essa altura do campeonato nenhum de nós leva o Ezarel à sério. Sabemos que ele não presta. — Nevra piscou o olho.

Gargalhei. Os rapazes riram também. Olhei para trás e vi que as pessoas do salão ainda lançavam olhares curiosos para nós. Dei de ombros. Bando de fofoqueiro.

— O que Nevra quis dizer, — pigarreou Leiftan. — Foi que sabemos quando Ezarel está falando sério e quando está apenas sendo sarcástico.

— Se o Leiftan diz, eu acredito! — arqueei as sobrancelhas.

— Vou buscar mais cerveja. Ou o que restou dela... Também querem mais? — Valkyon se levantou, um pouco triste. Arregalei os olhos ao perceber que seu copo já estava vazio. Caramba! Eles bebiam cerveja como se fosse água, aqui.

— A última rodada, por favor. — pediu Leiftan. — Amanhã teremos que partir cedo.

Os meninos assentiram em afirmação. E aquela não foi a última rodada.

A noite fora agradável. Ykhar chegou e se juntou ao grupo. Assim como eu, ela não bebeu àlcool — apenas água, mas nos acompanhou nos assuntos. Ficamos amigas facilmente, já que ela adorava tagarelar e aprender coisas sobre a Terra e os humanos. Eu a agradeci pelo cuidado que teve ao preparar o meu quarto e tudo mais, então iniciamos uma conversa infinita e particular, esquecendo até mesmo dos rapazes na mesa — que acabaram entretidos dentro do próprio mundinho deles. Ezarel foi o primeiro a ir embora, deixando o grupo bem cedo.

Eles eram legais.

Foi o que eu concluí enquanto caminhávamos rindo até a sala das portas. Karuto chamou nossa atenção por fazer muito barulho, mas o comentário foi descartado com um desdém de Nevra.

Nosso grupinho se separou ao chegar na sala das portas. Leiftan deu boa noite educadamente, enquanto Ykhar ficou conversando com Valkyon e Kero sobre a viagem que deveria começar logo de manhã. Eu me afastei deles apenas para observar melhor a luz do luar. O salão das portas... Ah, aquele lugar era ainda mais encantador e mágico de noite. Parei ao pé da escadaria e olhei maravilhada para os lados, para cima e para todo lugar que eu pude olhar.

Um cheiro familiar me atingiu.

— Lindo, não é?

— Sim. — assenti com a cabeça.

— O jardim da Cerejeira é ainda mais encantador. É o meu lugar favorito para ir à noite. E a praia! É fantástica para observar as estrelas. — Nevra deu um suspiro nostálgico. — Gosta de olhar as estrelas? Podemos ir qualquer dia desses.

— Seria legal. — concordei, me tocando que era um convite para um encontro somente um segundo depois. Pensei em corrigir o erro, mas lembrei que ser educada não custava nada. Abri um sorriso. — Mas vou logo avisando que sou péssima com constelações.

Nevra sorriu, dispensando o comentário. Então pigarreou, se preparando para lançar a real.

— Posso te acompanhar até seu quarto, se quiser.

— Não, obrigada. — o dispensei com um sorriso educado. Grudei os braços da Ykhar, que para minha sorte estava se dirigindo a nós naquele exato momento. — Mas eu prefiro a companhia da Ykhar.

A brownie arqueou as sobrancelhas, corando. Nevra ergueu uma sobrancelha.

— Tudo bem, então. Boa noite, senhoritas. — ele piscou o olho bom.

— Boa noite! — nós duas respondemos ao mesmo tempo. Depois, trocamos um olhar engraçados e rimos juntas.

— Obrigada, você me salvou. — eu disse, ainda rindo. Começamos a nos dirigir para o corredor.

— Disponha. — a brownie sorriu.

Nós caminhamos risonhas enquanto fazíamos comentários sobre o jantar de mais cedo. Quando chegamos em frente ao meu quarto, olhei para ela sorrindo.

— Obrigada de novo por tudo, Ykhar. De verdade! Achei muito fofinha a sua carta. — sorri. Ela sussurrou um "owwnt" e me abraçou. Me surpreendi com o gesto. — Boa noite.

— Boa noite, K. — ela sorriu.

Entrei no quarto e tirei a roupa, me lembrando que eu ainda não tinha um pijama ou camisola para usar. Dei de ombros e me joguei na cama usando apenas minhas roupas íntimas.

Não se passaram nem dois minutos e bateram à minha porta. Coloquei o roupão e fui ver quem era. Quase caí dura no chão quando percebi que Ezarel em carne e osso estava plantado na frente da minha porta. Ele piscou calmamente. Eu mal me lembrei como piscar. Seus olhos azuis fizeram uma rápida checagem em meu corpo. Cruzei os braços sob o roupão na esperança de esconder o decote e finalmente desviei o olhar, constrangida.

— O que quer? — revirei os olhos.

Para minha surpresa, o elfo entrou no quarto. Fechei a porta com cuidado e o segui. Ele foi até perto da cama, observando os detalhes e a decoração simples.

— Vim lhe entregar isso. — foi o que ele disse. Então ele me entregou dois livros. — Você disse que queria saber mais sobre nosso mundo. Esses livros são sobre alquimia, todos escritos na língua comum inglesa. Gostaria que lesse, já que está na Absinto agora. O conhecimento guardado neles pode salvar vidas. — Ezarel me fitou nos olhos. Nunca tinha visto ele desse jeito. Era um lado totalmente diferente. Ergui uma sobrancelha. Depois, ele me passou os três livros restantes. — Esses são sobre os Guardiões e o que eles fazem. Achei que ia se interessar. Não precisa os devolver para biblioteca. São de minha coleção pessoal.

Encarei os livros na minha mão.

— Você... — sussurrei. — Está me dando os seus livros?

— Estou. — foi tudo o que ele disse.

Estava escuro, mas eu me empenhei em observar os detalhes da capa, que pareciam reluzir holografia. Quando ergui o olhar para agradecer Ezarel, ele já estava se virando para ir embora. Eu não fui capaz de dizer nada, totalmente em choque com a atitude inesperada dele.

O elfo estendeu a mão até a maçaneta, mas se deteve e recuou. Ele limpou a garganta antes de falar:

— Me desculpe por mais cedo, na biblioteca. O que eu falei... Acredito que foi um pouco pesado demais. — ele fez uma pausa. Deixei meu queixo cair, ainda paralisada com essa postura totalmente diferente do deboche, da arrogância e do sarcasmo a qual eu estava habituada. — Eu não quis ser grosso com você, nem te diminuir. O que eu estava tentando dizer...

Ele fez outra pausa, talvez pensando no que falar. Pisquei lentamente, ainda com os lábios entreabertos. Ezarel, o elfo arrogante, na minha frente, pedindo desculpa e hesitando? Será que havia algum tipo de droga na minha bebida e eu estava delirando? Aquilo era completamente inesperado. É tão difícil reagir a atitudes inesperadas. Eu estava imóvel.

— É só que... — Ezarel suspirou. Eu daria tudo para ver sua expressão agora, mas o bendito continuava de costas para mim. — Eu me importo com as pessoas da minha guarda, é meu dever protege-las e as liderar para que tenham um bom desempenho. Quero as ver bem. E quero o mínimo de perdas possíveis nesta guerra. Você acabou de chegar e é inexperiente, não quero que se machuque caso o pior aconteça. Acabei me expressando mal.

— Tudo bem. — a minha voz não passava de um sussurro.

Ezarel levou a mão até a maçaneta, mas parou.

— Ah, mais uma coisa. — ele flexionou o pescoço de modo que encarasse o próprio ombro. — Aquele dia, quando eu disse que você era inútil, não estava me referindo às suas capacidades cognitivas ou até mesmo à sua força de vontade idiota. — ele sussurrou e ergueu o olhar azul para mim. — Estava me referindo em termos de combate e força. Os faeries são muito mais fortes que os humanos, não importa o quão bem treinado o humano for. Você seria um recurso desperdiçado em um campo de batalha. Você poderia morrer em minutos.

"Era isso o que eu quis dizer quando disse que não teria utilidade. Mas é claro que em outros aspectos você pode contribuir, e de forma significativa, para Eldarya. Você é muito inteligente, Kalina. Não duvide disso, nunca. Eu já havia deduzido isso, apenas confirmei minhas hipóteses na floresta ontem."

Eu deveria falar algo? Aplaudir? Brincar e perguntar onde estava a câmera e elogiar a pegadinha? Foram os pensamentos que tive no breve silencio que se seguiu. Então Ezarel abriu a porta, me desejou boa noite, fechou a porta e simplesmente saiu.

— Mas que diabos acabou de ...? — eu sussurrei.

Lentamente fui até a penteadeira e posicionai os livros recém-adquiridos ali, junto com os outros que havia pegado emprestado da biblioteca.

Depois. Eu lidaria com aquilo depois.