Eldarya

Capítulo 10 - Responsabilidades.


Quando eu acordei no dia seguinte Ezarel já havia partido com os demais. Não tive a chance de agradecê-lo ou até mesmo de desejar uma boa viagem. Fiquei com aquilo na cabeça: nosso último encontro e tudo que ele me disse. Até senti certa culpa por não ter respondido o seu boa noite. Fiquei com vontade de compartilhar com alguém, mas guardei toda aquela confusão para mim.

Não era como se eu pudesse considerar qualquer um daqui como amigo, afinal de contas. Eu havia acabado de chegar. Não tinha ninguém em que eu realmente pudesse confiar.

O encontro naquela madrugada me fez sentir, de certa forma, estranha. Ezarel não disse "me desculpe por ter sido um babaca" em claro e bom tom, mas todo o seu discurso foi praticamente um pedido de desculpas indireto. Ele não parece alguém que costuma pedir desculpas para as outras pessoas, de qualquer forma. Eu sequer conseguia pensar em alguma hipótese que justificasse ele ter ido até meu quarto e feito um ato gentil.

As duas semanas seguintes pareceram passar voando e Ykhar estava me ajudando a assimilar tudo o que estava acontecendo. Ela e Alajea – uma grande amiga da brownie – eram boas ouvintes, embora eu ainda não confiasse muito na segunda. Eu conheci Alajea numa breve missão que fui designada a fazer na floresta, perto do circulo de cogumelos, e não demorou muito para descobrir que ela e Ykhar tinham uma forte amizade.

A terceira semana se passou de forma mais tranquila. Tive uma aula na pequena escola do refúgio, mas me senti extremamente constrangida com as crianças me encarando de forma curiosa o tempo todo... Além de ter ficado com dor nas costas e quase nem ter se encaixado direito nas carteiras pequenas. Acabei dispensando as aulas e decidi aprender sozinha. Eu estava começando a pensar que talvez os habitantes de Eel estivessem certos em olhar torto para mim, afinal de contas os humanos foram muito, muito babacas no passado.

Rolei na cama com o exemplar de História de Eldarya Simplificada nas mãos. Por cima do olho, observei a penteadeira. Eu ainda não tinha coragem de abrir os livros que Ezarel dera para mim. O material de Kero parecia suficiente para lidar por enquanto.

Eu estava lendo sobre os Guardiões – devorando cada linha como se minha vida dependesse daquilo. Era uma coisa muito profunda, uma missão que parecia impossível demais para uma pessoa comum como eu.

Será que meus pais nunca falariam disso comigo? Ou será que eles estavam esperando eu ter certa idade e maturidade para tratar do assunto?

— Não é como se eles fossem chegar em mim no meu aniversário de 7 anos, estourar um confete e dizer "Parabéns, você é uma Guardiã agora, uhu!" — eu ri, balançando a cabeça.

Pisquei, voltando a atenção para o livro. Resolvi pegar o pequeno bloco de notas que eu havia conseguido com Kero, muito semelhante à um diário, e anotar o que eu havia aprendido até agora.

Os Guardiões, de fato, eram responsáveis por manter toda a história do Exílio em segredo e além disso, proteger os portais de acesso entre as duas realidades. Cada família de Guardiões possuí um líder. Os líderes — e alguns, os mais portes, por eles escolhidos — fazem um ritual de juramento de sangue ao Cristal, logo após passarem pela aprovação do Oráculo.

O juramento faz com que a pessoa crie vínculos com a energia do Cristal e, consequentemente, a deixa mais forte e mais propensa a manipular o maana. O Ritual os conecta com o Cristal e nesse momento lhes é Feito e concedido um totem com parte da fonte de maana dentro de si. A partir daí, é como se fossem uma extensão do próprio Cristal. E também é uma garantia de que o Cristal não seja inteiramente destruído, pois sempre irão existir pedaços deles dentro dos Guardiões.

— Ok, essa parte é complexa demais. Volto depois. — eu folheei o livro até o próximo capítulo.

Os Guardiões também são quem fornecem matéria prima humana e saudável para os habitantes de Eldarya: alimentos, tecidos, minério e tudo mais. Fazem isso através dos portais e podem permanecer algum tempo em Eel se desejarem. Por viagens a negócios serem muito comuns, alguns Guardiões acabaram se apaixonando com faeries. Apesar da pratica não ser mais proibida, ainda é vista com muito preconceito.

Como Miiko disse, ser um Guardião não faz com que você enxergue a magia ou os portais. Somente um Líder consegue enxergá-los. É preciso muito estudo para tal, e geralmente esse conhecimento é passado de geração em geração de líder para líder de cada família.

Fiquei horas tentando entender como e onde a minha família entrava nisso, sem sucesso. Antes de ir almoçar, fiz uma anotação mental de procurar por livros que explicassem mais sobre portais. Não havia só uma espécie de portal, pelo que eu havia entendido. E tentar entender as árvores genealógicas dos Guardiões também me pareceu ser uma boa ideia.

— Fico contente que está se empenhando em aprender mais sobre nossas realidades. — Ykhar comentou, feliz, logo após eu ter feito um resumo do que havia acabado de descobrir. — E descobrir sobre o papel da sua família em nosso mundo.

Em certo momento da última semana, passei a almoçar com Ykhar e Kero. Nossas conversas sempre giravam em torno do meu progresso nas leituras ou coisas relacionadas à Terra.

— É... — engoli a comida. — Por falar nisso, eu gostaria de estudar mais sobre os portais. Há pergaminhos que falem sobre isso?

Os dois trocaram um olhar silencioso.

— Oras, para que um pergaminho se você tem a nós dois para tirar suas dúvidas? — perguntou Kero. Ou melhor: desconversou. — Você pode perguntar qualquer coisa. Estamos aqui para te ajudar, você sabe.

— Bom... Eu ainda não entendi muito bem. Quando cheguei aqui, disseram que o portal que eu entrei é sentido único. — afirmei e esperei eles confirmarem.

— Que se você encontrar um círculo de cogumelos aqui não sairá automaticamente na Terra. — pontuou Ykhar.

— Sim. — respondi. — Mas como vocês buscam suprimentos na Terra?

— Os portais que usamos para isso são permanentes e são abertos por meio de feitiços. — Ykhar disse enquanto bebericava um pouco de água. — Exige certos ingredientes que estão em falta, é perigoso e... Você jamais deveria tentar, inclusive — ela arqueou as sobrancelhas e respirou fundo, nervosa.

Suspirei.

— Tudo bem.

Em algum canto do salão, Karuto começou a bater panela. Me virei, alerta.

— Atenção! — o chefe pediu. — A Miiko irá fazer um anúncio após o almoço. Por favor, estejam todos presentes.

Os habitantes ficaram em silêncio, absorvendo a informação por um curto período de tempo. E então voltaram a falar de novo.

— Por falar em Miiko... — eu puxei assunto. — Ela se esqueceu de ficar me azucrinando ou o quê? Pelo que eu me lembre, até uns dias atrás eu precisava fazer um teste misterioso.

— Hah! — Kero riu. — Não, ela só está sobrecarregada. Quando as coisas voltarem a se acalmar, Miiko pedirá para você ir falar com ela.

Se voltarem. — observei.

Os dois concordaram. Voltamos a comer em silêncio, cada um concentrado no seu próprio prato.

— Andei lendo os registros. — comentou a Ykhar, entre uma garfada e outra. — Encontrei sobre sua família, não foi perdido afinal de contas. Os Gardisto são um bom grupo de Guardiões, mas não entram em contato há um bom tempo. Uns 10 anos. Entretanto, não há histórico de miscigenação entre eles. Isto é: nenhum casamento ou união estável oficial entre um Guardião humano e um faery. Quanto mais pensamos nas possibilidades, menos faz sentido. É como andar em círculos!

— Complicado. — eu suspirei, me perguntando se minha mãe tinha pulado cerca. Seria o único jeito! Explicaria meus olhos violetas, de qualquer forma. — Se ao menos eu pudesse encontrar minha mãe, olhar no fundo dos olhos dela e dizer "mas que merda é essa?!" — suspirei.

Kero e Ykhar gargalharam. Nós não trocamos mais palavras até o final da refeição. Nós nos despedimos e fomos em direções diferentes, mas no final de contas estávamos os três lá para o anúncio de Miiko.

O anúncio não foi nada de especial. Evitei ao máximo ficar num lugar onde a líder pudesse me ver. A mensagem consistia em dizer basicamente que os rapazes haviam mandado uma mensagem através de um mascote com atualizações da missão, que estava sendo um sucesso. A carta também dizia que a herdeira dos Fenghuang contemplava a possibilidade de acompanha-los na viagem de volta a Eel e ficaria na cidade por algum tempo para ajudar na proteção do QG. A notícia deixou os moradores animados, e já começava a se falar em uma grande preparação para a recepção da Fenghuang, cujo o nome aparentemente era Huang Hua.

Antes que eu me dispersasse da multidão, alguém tocou meu ombro. Era Jamon.

— Miiko querer falar com Yulien. — disse o Ogro. — Yulien subir até a Sala do Cristal daqui alguns minutos.

— Certo, Jamon. Obrigada por avisar. — eu acenei gentilmente para ele e segui até meu quarto.

Alimentei Bambi e aproveitei para brincar com ele por alguns minutos. Notei que ele estava alguns centímetros maior e isso me assustou um pouquinho. Talvez eu devesse ler alguma coisa sobre os mascotes mais tarde.

Subi até a Sala do Cristal, relutante. Não precisei parar muitas vezes para recuperar o fôlego dessa vez.

— Gostaria de falar comigo? — perguntei.

— Sim. — Miiko respondeu. — Se tudo ocorrer como planejamos, Huang Hua chegará em alguns dias. A notícia de que você chegou correu muito rápido. Há muito tempo que um humano não vem para Eldarya... Desde que o Mascarado quebrou parte do Cristal e...

— E? — ergui as sobrancelhas.

— Olhe só... — Miiko expirou, provavelmente desistindo do que iria falar antes e explicando de outra forma: — Huang Hua é muito supersticiosa. Ela acredita que isso... Você e a sua chegada,é um sinal e... Enfim, ela escreveu uma carta em especial e particular para mim, dizendo que está ansiosa para te conhecer.

Arqueei as sobrancelhas, surpresa com a novidade. Miiko respirou fundo para falar novamente e eu esperei.

— Ela pediu para que você fosse sua dama de companhia enquanto estivesse aqui. — Miiko me encarou, depois soltou um suspiro suplicante. Eu fiquei meio tonta com o termo "dama de companhia". — Por favor, não estrague tudo.

— Só me diga como me comportar, o que vestir ou falar, o que preciso fazer e eu o farei. — eu disse firme e sem hesitar.

Eu ainda estava tentando assimilar o fato de alguém me querer como dama de companhia quando Miiko começou a falar:

— Você não irá precisar ficar vinte e quatro horas grudadas nela. Apenas deve a acompanhar durante o dia após os hábitos matinais, até a hora do jantar, mais ou menos. A rotina provavelmente será mostrar o Q.G... Fazer o que ela pedir e ir onde ela quer ir. E falar com sabedoria. Ser educada e... — Miiko inclinou a cabeça para o lado e depois deu de ombros. — É basicamente isso.

— Tudo bem. — concordei. — Não parece difícil.

— Não é com Huang Hua que você precisa se preocupar. — Miiko respondeu, os olhos ficando sombrios de repente. — É com Feng Zifu, o mentor e conselheiro dela. Se ele não te aprovar, você estará em maus lençóis.

— Entendi. — foi tudo o que eu disse.

— Huang Hua é muito importante. — Miiko afirmou. Pensei em estar derilando ao escutar certo tremor em sua voz. Ela estava nervosa? — É uma responsabilidade muito grande. Ela irá entender caso você recuse e...

— Tudo bem... — cortei Miiko. — Vou tentar "não estragar tudo". Agora se me dá licença, preciso ir. — eu fiz uma breve reverencia antes de começar a me dirigir até a saída.

— Eu sei que ainda temos muita coisa pendente para resolver. — Miiko segurou meu ombro de forma gentil. Me virei para encará-la. — Desculpe-me por isso. É que... Desde que você chegou, aconteceu tanta coisa tão... rápido. — a líder continuou. — Prometo que lidaremos com isso mais tarde.

— Sim. — concordei. — Quando os rapazes chegam?

— Em sete dias ou mais. — ela respondeu. — A vinda de Huang atrasou um pouquinho nossas datas. Ela está passando por alguns... Problemas pessoais. Mas para nossa sorte certamente ela chegará logo para nos ajudar.

— Certo, eu vou indo então.

— Até logo, Kalina.

— Até logo, Miiko.

Saí da sala do Cristal ainda atônita. Enquanto eu descia as escadas, um peso pareceu cair sobre meus ombros. E quanto mais eu descia, mais pesado meu corpo ficava. Deveria ser cansaço. Eu deveria ir pedir mais poções à Ewelein, afinal de contas. Fazia alguns dias que estava sem, e eu também não verificava meus níveis de maana há um bom tempinho.

A possibilidade de se tornar uma Aberração me fez estremecer.

Tratei logo de ir tomar uma ducha para afastar os pensamentos e me livrar daquela sensação ruim. Não comi naquela noite, meu estômago parecia embrulhado demais para isso. Quando me joguei na cama para dormir, a voz de Miiko me veio à cabeça.

"Há muito tempo que um humano não vem para Eldarya... Desde que o Mascarado quebrou parte do Cristal e... Huang Hua é muito supersticiosa. Ela acredita que isso... Você e a sua chegada, é um sinal"

Inspirei fundo.

Eu havia lido sobre os Fenghuangs. Eram seres muitos sábios e espiritualizados.

Segurei a respiração.

E se o fato da Huang Hua sentir uma intuição sobre mim realmente significasse algo?

Expirei.

E se eu estupidamente não tiver vindo parar aqui do nada? Se eu puder fazer alguma coisa para ajudá-los... Se for uma peça importante para algo que não faço ideia? Como nos livros onde a mocinha é tirada do mundo em que conhece, descobre o sobrenatural e começa sua jornada do herói...

— Puta que pariu. — eu ri. — Eu tecnicamente estou vivendo um conto de fadas? Sou um tremendo clichê? Eu li tantos livros de ficção, e agora que estou vivendo uma, não faço a mínima ideia do meu papel nessa história.

Eu havia me livrado das responsabilidades que tinha na Terra, mas agora eu parecia ter responsabilidades ainda mais sérias e coisas bem piores para se preocupar. Estudar sobre Eldarya, tentar descobrir o que a minha família tem a ver com este lugar, arranjar uma maneira de voltar para casa, ser membro de uma Guarda e ter que fazer missões, cumprir meu papel como membro de uma família de Guardiões... Tentar não enlouquecer, treinar e ficar forte para uma possível guerra, aprender e desenvolver habilidades em alquimia... Ser dama de companhia de uma líder desse mundo. Meu Deus. Eram responsabilidades demais.

E parte de mim temia não dar conta delas.