Eldarya

Capítulo 8 - A História de Eldarya Simplificada.


Kalina

Dormi por quase dois dias seguidos. Se alguém tinha notado, não comentou. Quando eu acordei, Bambi estava irritado — o que me lembrou de conseguir mais moedas para comprar ração para ele. Após o café da manhã, descobri que Miiko estava ocupada demais resolvendo os problemas causados pelo último ataque e as investigações sobre minha ligação com Eldarya ficariam para depois.

Passei na enfermaria para ver Ewelein, que disse estar tudo certo com meus níveis de maana. Além disso, a enfermeira me entregou uns vidros com um conteúdo semelhante a xaropes, dizendo que eram os manipulados para suprir as minhas necessidades humanas. Voltei para meu quarto perto do meio-dia e notei que haviam deixado algo na porta. Uma pequena sacola de moedas!

Por ajudar a recuperar o mascote do Mery. Ezarel. — sussurrei. Arqueei as sobrancelhas, surpresa pelo gesto. Dei de ombros e enfiei-a no bolso, dando meia volta alegremente para ir até o mercado. Decidi voltar e ir até o quarto para levar Bambi junto comigo.

O filhote, parecendo saber o que iríamos fazer, caminhou todo feliz ao meu lado. Com as moedas, além dos potes para água e comida, consegui comprar mais ração para Bambi. O alimentei ali na cidade mesmo, na sombra de uma grande árvore do refúgio. Depois, o enviei para explorar e fui até as duchas para tomar um banho.

E então eu descansei.

O relógio marcava três horas da tarde quando resolvi subir até a biblioteca. Ela estava aberta dessa vez. Kero estava lá e me recebeu animado, me levando até uma mesa com uma pequena pilha de livros e pergaminhos escritos em inglês que ele separou para mim.

— Alguns desses pergaminhos foram manuscritos especialmente pelos Guardiões. — explicou Kero, enquanto eu me sentava numa das cadeiras da mesa. — Uma das tarefas deles é traduzir da língua original para a língua comum. E também a dos humanos, da Terra.

— Uau, que legal! Obrigada, Kero. — agradeci.

— Disponha, vou deixar você ler em paz. — Kero me deu um grande sorriso. Ele me entregou uma bolsa de pano. — Aqui: pode levá-los até seu quarto, se quiser. Mas por favor, se o fizer assine uma das fichinhas no balcão e devolva em menos de uma semana.

Assenti para Kero, que se afastou em passos silenciosos. Suspirei, passando o olho em tudo. Peguei um pergaminho bem antigo.

— Vejamos: lista de raças existentes em Eldarya... — sussurrei. — Aengels, azizas, brownies? — franzi a testa. — Bugbears, dragões, elfos — revirei os olhos ao lembrar de Ezarel. — Eríneas, faeries, fenghuang, gnomos, golems, hamadríades, híbridos, kappas, kitsunes, lobisomens...

Arqueei as sobrancelhas e inclinei a cabeça, me questionando se os irmãos Grimm poderiam de alguma forma saber sobre Eldarya. Pisquei o olho para espairecer e voltei a minha atenção para a lista.

— Lorialets, leprachauns, ninfas, ogros, sátiros, sereias! — arqueei as sobrancelhas. — Nossa. Ok, vampiros e blá blá blá. Depois eu vejo isso com mais calma. — expirei e guardei o pergaminho na cesta.

Meus olhos saltaram para o próximo livro que Kero havia separado e pareceu perfeito. A história de Eldarya simplificada. Então eu abri e li e aprendi.

Os seres humanos e os faeries viviam juntos e em harmonia na Terra com a magia, ou maana, circulando livremente entre eles. Porém, só os faeries tinham a habilidade de manipular o maana. Com o tempo a relação entre as duas espécies se desestabilizou. Primeiro, houve um tipo de apartheid: os seres humanos acharam melhor não haver miscigenação. Qualquer relação entre humanos e faeries era proibida.

— Ok, ok... Então o termo correto é "faeries" e não "faelianos"? — franzi a sobrancelha. — Eu não tô entendendo mais nada.

Suspirei e continuei a ler e absorver mais informações.

No estágio mais crítico, os humanos começaram a caçar os faeries pois acreditavam que eram uma ameaça. Esses, mesmo sendo mais fortes, não revidaram, pois eram contra a violência. Os faeries não achavam justo lutar contra uma espécie tão inferior e sem chance de defesa.

Em todo mal há bem e em todo bem há mal. Mesmo que a maioria dos humanos fosse a favor da aniquilação dos faeries, existiam aqueles que defendiam a paz. E mesmo que os faeries quisessem proteger e defender os humanos de si mesmo, havia aqueles faeries que achavam que a violência era a única opção. Por causa de tantas opiniões diferentes, estavam quase entrando em guerras civis. Seria um genocídio.

Para saírem dessa situação, os faeries tiveram uma ideia: criar um outro mundo sob o sacrifício das três grandes raças para exilar os humanos e fazê-los esquecer da existência da magia. As três grandes raças eram os Aengels, Dragões e Fenghuangs. Através de um poderoso feitiço, eles se fundiriam em um só, criando duas realidades: uma com magia — para a permanência dos faeries — e outra sem — para os humanos —, dando origem a um enorme e poderoso Cristal na realidade mágica que concentraria todo o maana.

No entanto, houve um desentendimento. Um Aengel não concordava com o sacrifício e convenceu outros da sua raça a não o fazerem. No dia e na hora do ritual eles fugiram e, por isso, o feitiço não foi finalizado de forma adequada. Faltou poder. O feitiço foi finalizado com certa instabilidade e os mundos foram separados com dificuldade. Dificuldade, essa, que é refletida até hoje na realidade mágica: terras inférteis, pessoas doentes tanto fisicamente quando psiquicamente, tempo desregulado, entre outras coisas.

— Santo Cristo! — arqueei as sobrancelhas. — Que doideira.

E não parava por aí. Após a traição dos Aengels, os faeries ficaram furiosos e o Líder do Q.G. caçou um por um. Foi como uma Inquisição. Uns dizem que todos morreram. Outros dizem que alguns se esconderam. Não se sabe ao certo, mas o Líder do QG naquela época declarou que os Aengels haviam se extinguido da face de Eldarya. Para pagar pela traição.

— Ué... Mas não eram eles a espécie contra a violência? — eu ri de escárnio. Olhei para o alto, pensando. Depois, dei de ombros. — Vai ver a instabilidade de energia deixou ele meio frufru...

Suspirei, voltando a me concentrar na história.

Por causa da instabilidade, os faeries não tinham outra opção a não ser contar com a ajuda dos humanos. Eles precisavam de recursos, afinal de contas. Recursos que eram abundantes na realidade sem magia, já que a mesma não sofria instabilidade. Porém, havia um probleminha: junto com a separação das realidades, o véu do esquecimento caiu sobre os humanos.

Os faeries abriram portais e contataram as famílias humanas que defendiam a ideia de compartilhar o antigo mundo em paz. Juntos, firmaram os Acordos e o grupo de Guardiões foi formado.

— O que está fazendo aqui? — uma voz me distraiu. Ergui os olhos lentamente para fuzilar o chefe da guarda Absinto, que carregava um brilho de pura diversão em seu olhar. Provavelmente estava rindo internamente do comentário sarcástico que planejava fazer.

Suspirei alto e voltei a atenção para o livro, tentando não revirar os olhos. Lá vem.

— Eu não sabia que você conseguia ler. — assobiou Ezarel, indo até as prateleiras buscar algum volume qualquer.

Grunhi, mas apenas virei a página, fingindo ignorar o comentário e aquele sorriso de canto idiota dele. Não muito tempo depois, Ezarel se aproximou o suficiente para ler por cima do meu ombro e decidi entrar no seu jogo.

— Há muitas coisas sobre mim que você ainda não sabe, chefinho. — abri um sorriso sarcástico e encarei-o por cima do ombro. — Pretende ficar aqui por muito tempo?

Ezarel assentiu.

— Bom, então eu vou indo. — abri um sorriso forçado, fechei o livro e deixei-o de lado. Em seguida, coloquei os outros na sacola encaixei a alça em meus ombros. Me levantei, fazendo menção de pegar o livro que abandonei para lidar com as picuinhas de Ezarel.

— "A História de Eldarya Simplificada", hein? — o elfo esticou o pescoço para ler o nome do livro.

— Já que caí de paraquedas aqui, achei que seria melhor estudar um pouco sobre esse lugar. — sorri sem mostrar os dentes. — Me tornar menos inútil, sabe?

— Deveria pegar uns manuais de defesa pessoal também, sabe. — ele cruzou os braços. — Ou sobre como ganhar músculos. Com seu porte físico, aposto que não durará nem cinco minutos caso haja combate corpo a corpo.

Empalideci. Prendi a respiração, o medo tomando conta dos meus instintos. Decidi que não tinha saco para lidar com isso. Apenas passei por ele sem dizer nada. Ezarel segurou meu braço. E eu o encarei nos olhos.

— Não é um insulto dessa vez, não se sinta ofendida. É apenas uma observação. — ele engoliu em seco. — Todos nós treinamos aqui, precisamos estar prontos para defender o Quartel. Peça para Valkyon ou Jamon treinarem com você. Combate corpo a corpo ou com espadas, o que achar melhor. Ganhará alguns músculos. Não é uma má ideia, sabe? Estamos meio que em guerra aqui. — Ezarel soltou meu braço.

— Tudo bem. — assenti para ele e desviei o olhar, encolhendo os ombros. — Eu... Vou para meu quarto agora. Com licença.

Ajeitei a sacola em meus ombros e me preparei para ir até o balcão. Assinei uma das listas como Kero pediu, sem me importar em olhar para o lado quando Ezarel parou do meu lado e colocou uma pilha de livros de forma silenciosa, passando a assinar uma lista também.

~*~

Passei o restante da tarde lendo sobre as raças no meu quarto, com certeza daria uma pausa em História de Eldarya Simplificada por enquanto. Nas pausas da leitura, eu parava para pensar sobre o que Ezarel me disse mais cedo. Uma sensação de angústia começou a me corroer. Eu realmente estava em desvantagem e desprotegida nesse lugar. Tanta coisa estava acontecendo, tanta...

— E eu ainda tenho tanto a aprender. — grunhi, deixando o pergaminho de lado e rolando na cama.

O dia em Eldarya possuía 24 horas, assim como na Terra, mas as horas pareciam passar muito mais devagar aqui. Talvez fosse devido ao tempo irregular, afinal de contas. Comecei a sentir falta do meu celular, da internet e de trocar figurinhas engraçadas com meus amigos pelos aplicativos de conversa.

Resolvi ir tomar um banho às seis horas da tarde e fui jantar mais cedo. Para minha surpresa o refeitório estava vazio. Somente os rapazes estavam ali: Leiftan, Ezarel, Valkyon e Nevra. Fui até o balcão pegar minha refeição e me surpreendi com a quantidade generosa de comida que Karuto colocou no meu prato. Franzi a testa, pensando em questionar sobre aquilo e o chefe pareceu ler minha mente.

— A Ewelein me pediu para dobrar sua porção de comida. — explicou ele. — No entanto, não vejo como isso pode fazer diferença, já que nossos alimentos são pouco nutritivos.

— Oh. — arqueei as sobrancelhas. — Obrigada de qualquer forma, Karuto.

Me afastei do balcão para ir em direção às mesas mais afastada do salão, como sempre. Eu estava encarando o prato com as sobrancelhas franzidas tentando identificar qual seria a gororoba da vez, mas acabei erguendo o olhar quando alguém chamou meu nome na metade do caminho.

— Ei, Kalina! — era Nevra. Eu me virei para trás, o corpo direcionado no rumo onde os rapazes estavam. Ele havia cortado o cabelo de modo que uma franja charmosa e grande fosse jogada para o lado direito para cobrir parcialmente um tapa-olho que fora colocado em seu rosto. — Venha aqui, sente-se com a gente.