Eldarya

Capítulo 7 - Se Levantar e Reconstruir.


Ewelein e Leifatn trocaram um olhar, alertas.

— Leiftan, a Miiko quer você na sala do Cristal agora. — Kero continuou, com voz tremula. — Ewelein, se prepare para receber possíveis feridos.

A enfermeira assentiu com um olhar firme. Jurei algo como determinação brilhar ali. Leiftan se despediu com um leve aceno de cabeça antes de sair correndo com Kero. Ewelein contraiu os lábios e voltou sua atenção para mim. Ela deixou o pote com a mistura ao lado da seringa com um líquido cristalino e passou a pressionar uma compressa de água fria no meu peitoral com bastante cuidado. Nenhum sinal de nervosismo. Ela era mesmo muito profissional no que fazia.

— Agora eu me senti mal por perguntar se tinha como piorar. — observei, arqueando as sobrancelhas. — Porque claramente piorou. — sussurrei, nervosa. Meu coração batia acelerado no peito com a possibilidade de morrer ali, longe da minha família e dos meus amigos.

— Não fique assim. — ela disse, neutra.

Ficamos em silêncio por um breve momento. Ewelein finalmente tirou as toalhas que estavam em mim e aplicou a mistura do pote em minha testa, fazendo uma suave massagem. Senti um leve frescor e foi agradável inspirar o cheiro dos ingredientes que eu sequer sabia identificar. Ainda assim, era um aroma muito bom.

— Para que serve isso?

— O bálsamo que preparei — ela corrigiu. — serve para aliviar sua febre.

— Ok, ok, desculpe... Estou acostumada com pílulas manipuladas e soro na veia. — esclareci. — Onde eu moro, geralmente já têm medicamentos prontos esperando os pacientes. Não precisam misturar em uma vasilha igual você fez.

Ewelein gargalhou.

— Nossos... Estilos medicinais são diferentes. Seus resultados ficaram prontos, inclusive. — comentou ela. — Seu sistema imunológico está baixo, o que deixa o nível de maana em seu organismo um pouco instável. Já imaginei isso desde quando me disse que não comeu direito desde que chegou aqui.

“A comida de Eldarya é pouco nutritiva, então pode ser esse o motivo do seu mal estar, além de todo o estresse. Para suprir suas necessidades humanas, preparei uma fórmula e encaminhei para o pessoal da alquimia. Quando ficar pronto, eu irei entregar para você. Com sorte, e com o tratamento adequado, você estará melhor daqui uns dias.”

— Obrigada, Ewelein. De verdade. — sorri. Mas o sorriso não durou muito, porque o chão começou a tremer. Meu coração acelerou. Ótima hora para estar indefesa numa cama de hospital!

— Estamos seguras aqui. — Ewelein afirmou, como se pudesse prever o meu desespero. — Você dormirá em breve, quando a injeção fazer efeito.

Dito isso, ela ergueu a seringa e sorriu gentilmente para mim. Nem senti a picada. Eu estava prestes a perguntar quanto tempo “breve” queria dizer, mas apaguei logo em seguida.

~*~

Acordei com uma luz forte na minha cara. Fiz o sinal da cruz, torcendo para que não fosse uma explosão de bombas ou algo assim. Notei, aliviada, que era somente e nada mais que os raios do sol entrando pelo grande vitral da enfermaria. Prestei atenção no ambiente. Silêncio total. Resmunguei e me virei para o lado, desejando dormir mais um pouco.

— Noite agitada, não?

Meu coração quase parou. Franzi a sobrancelha.

— Kero? — sussurrei. Então me sentei para esticar o braço e puxar a cortina que separava o meu leito com o leito do lado. Visualizei Keroshane sentado em sua maca, com o braço enfaixado e as calças raladas na altura do joelho. — Você está bem?

— Sim, não se preocupe. — ele ajeitou o braço na tipóia. — Foi uma queda boba que poderia ser facilmente evitada se eu não fosse tão desastrado. — ele riu baixinho.

— O QG ainda está sob ataque? — indaguei. — Que horas são?

— Não estamos mais sob ataque, graças ao bom Oráculo. — ele suspirou. — Não houveram muitos feridos. Foi apenas um saqueamento, sem combate armado. São onze da manhã.

Engoli em seco. Não bastava estar num mundo totalmente esquisito, tinha que ter o lance de guerra também?

— Então... Guerra, não é? — dei um sorriso sem graça. — Não é por nada não, mas será que você poderia me atualizar um pouquinho sobre isso?

Kero inspirou fundo e suspirou. Em seguida, ele desceu de sua maca e foi até a cômoda ao seu lado que tinha uma jarra de água. Ele serviu um copo de água, entregando-o para mim logo em seguida.

— Na verdade não é bem uma grande guerra. Por exemplo, um país contra o outro... — Kero olhou para o alto, provavelmente buscando maneiras de me explicar a situação. — É mais para uma ameaça eminente. — o rapaz suspirou. — Existe um homem que há algum tempo ameaça destruir o Cristal. Muito se diz sobre ele, mas ninguém sabe o que ele realmente é ou o que ele quer. Nunca viram seu rosto por causa da armadura de dragão que ele usa. Os habitantes os chamam de “Mascarado”.

Levei a mão até a boca, lembrando-me da primeira conversa civilizada que tive com Miiko na dispensa.

— Meu Deus... É... É o mesmo homem que abriu a cela para eu sair, não é? — ergui a sobrancelha. Kero assentiu. — Mas por que ele faria isso? Me libertar, quero dizer.

— Para criar uma distração, talvez? As coisas estavam calmas demais há um bom tempo. Ontem, durante a madrugada, a Miiko estava furiosa. Disse que nos distraímos com a sua chegada. — Kero pigarreou. — Enfim, esse homem já chegou a mandar algumas cartas enigmáticas para a Guarda. Ele conseguiu entrar na sala do Cristal, certa vez, e o quebrou. O que você vê hoje é só metade do tamanho original do Cristal, ele já foi muito maior.

— Oh. — endireitei a postura. — Agora eu compreendo melhor porque a Miiko surtou ao me ver tão perto dele. — sussurrei.

Kero concordou com a cabeça.

— O Cristal é responsável pelo equilíbrio do maana, a magia, de Eldarya. Sem ele, esse mundo não pode existir e os faeries não podem viver. A sua criação foi... Complicada. Já vivíamos em desiquilíbrio por conta de falhas predecessoras. Depois que ele foi quebrado pelo Mascarado... A situação piorou. Mas ainda assim, podemos viver. — Kero suspirou. Uma expressão de desolamento surgiu em seu rosto antes de ele continuar: — A verdade é que a cada dia que passa, a vida de todos está em perigo. Não só a dos faeries, mas também a dos humanos.

— O quê? — me sobressaltei. — Mas o que a Terra e os humanos tem a ver com isso?

— Eldarya está conectada com a Terra pela magia. — Kero explicou. — Éramos um mundo só, vivíamos juntos: os humanos e os faelianos. Então nos separamos. Hoje coexistimos no mesmo espaço, mas um não enxerga o outro. Um não interfere o outro, graças ao Cristal. Onde estamos agora pode ser um lugar no fundo do oceano na Terra. Ou pode ser o mesmo local onde a Torre Eiffel foi construída, sabe...

— Uau. Isso... Isso é.... — sussurrei, incapaz de concluir meus pensamentos. — E o que acontece agora?

— A gente se levanta e reconstrói. — Kero colocou o copo de volta no móvel. Então inspirou fundo. — E se prepara para o próximo ataque. Tenta evitar o pior.

Engoli em seco.

— Posso ler sobre isso quando receber alta? — perguntei, baixinho. — Quero dizer, sobre Eldarya, a Terra, humanos e faelianos, tudo mais...

— Claro, e deve! Ainda mais se você for mesmo uma Guardiã. — Kero sorriu. — Eu vou organizar um horário especial para você poder ficar na biblioteca. Graças ao Oráculo a biblioteca não foi invadida dessa vez! Posso até procurar volumes escritos na sua língua para deixar os estudos mais fácil.

— Ah é, tem isso também. — suspirei fundo, deixando os ombros caírem. — Acho bom, porque colocaram uns livros no meu quarto e eu não entendi nada do que estava escrito! Fiquei com medo de tentar pronunciar algo e invocar alguma entidade maligna. — brinquei.

Kero explodiu numa gargalhada.

— Deve ser a língua original. Não é tão difícil de se aprender. Eu estou cheio de compromissos agora, mas poderia te ensinar caso surja uma hora vaga. — ele coçou a cabeça, constrangido. — Ou você poderia pedir para a Miiko te autorizar a aparecer nas aulas do refúgio.

— Aceito. — murmurei, me sentando na maca e me sentindo surpreendentemente bem. — Onde está a Ewelein?

— Reunião com a Miiko. Ah, ela provavelmente já está chegando para nos dar alta. Miiko tem um anuncio para fazer em breve e todos precisam comparecer.

— Espero que Ewelein venha logo me dar alta. — sussurrei. — Preciso ver Bambi. — inspirei fundo e olhei para o teto, desejando que o bichinho estivesse bem. Kero me encarou com uma expressão de interrogação. — O meu mascote. — acrescentei. Kero sorriu, sendo essa sua deixa para encerrarmos a conversa.

~*~

Ewelein, que eu havia descoberto ser a enfermeira-chefe do QG, não demorou muito para aparecer. Felizmente, ela me trouxe uma porção de comida que deduzi ser o almoço. Enquanto eu comia, Ewelein me atualizou sobre o que aconteceu enquanto eu dormia e depois me deu alta. Não sem me dar um puxão de orelha por não ter descansado, claro.

— Pode deixar. — afirmei quando desci da maca. — Agora que eu sei das probabilidades de virar uma Aberração caso meus níveis de maana se tornem instáveis e meu corpo recuse-o, eu ficarei em repouso. — sorri ironicamente para Ewelein.

— Desculpe não ter lhe contado antes. — a dona dos fios azulados curvou os ombros, pesarosa. — Eu não queria assustar você sem necessidade. E achei que a senhorita faria o repouso! — ela me beliscou. Gargalhei. Eu havia contado para ela as aventuras de ontem e juntas chegamos à conclusão de que ficar batendo perna por aí foi o que me levou ainda mais à exaustão.

— Eu sou teimosa, lide com isso. Melhor eu sair daqui antes que você resolva me amarrar nessa cama, não é? — ergui uma sobrancelha. Os olhos da jovem brilharam com um ar jocoso e ela me deu um sorriso de canto.

— Venha, eu te acompanho até a saída. — foi tudo o que ela respondeu. — Volte caso precisar, está bem? Qualquer irregularidade que sentir ou notar, venha me ver. Mesmo.

— Ok, tudo bem. E obrigada mais uma vez. — acenei e deixei a enfermaria.

Pelo que Ewelein me contou, o ataque durou cerca de três horas. Nenhum habitante do refúgio foi gravemente machucado, mas alguns comerciantes tiveram escoriações na cabeça ao tentar defender suas lojas.

Suspirei de alívio ao descer as escadas e notar que o QG não estava diferente da última vez que o vi. Ninguém perdeu a vida durante o ataque, mas aparentemente várias coisas haviam sumido da sala de alquimia, da despensa e da forja. Enquanto ia até meu quarto, ouvi comentarem sobre o estrago causado nas lojas do mercado e pensei ir até lá mais tarde, para ver se precisavam de ajuda para arrumar a bagunça, assim que eu estivesse descansada o suficiente.

O ataque foi, pela primeira vez, feito em grupo. E parece que isso estava assustando os moradores, que começavam a sussurrar sobre deixar o Q.G. O líder era o tal do Mascarado, que as pessoas afirmaram ter visto em locais diferentes ao mesmo tempo e isso não facilitava na investigação.

— Bambi? — foi a primeira coisa que eu disse ao entrar no quarto. O pequeno sabali estava dormindo. Suspirei de alívio. Ele ergueu as orelhas e abriu os olhos prontamente assim que fechei a porta. Depois, fez um barulho animado e desceu da cama, correndo em minha direção. Sorri para ele. — Ah, você está aqui, garoto!

O peguei no colo e dei um forte abraço, ganhando lambidas ásperas na cara. Gargalhei.

— Ei! Credo, vamos impor um pouco de limites aqui, okay? Você comeu sua ração? — encarei-o, depois rodei de modo que conseguisse visualizar o canto em que havia deixado o alimento. — Certo. Preciso arrumar um potinho para te alimentar e te dar água. Mas antes sua linda dona aqui precisa tomar um banho.

Coloquei Bambi no chão e passei a conversar com ele, esperando que aquilo funcionasse. Kero e Ezarel haviam me dito que os mascotes possuem uma conexão com os donos, então eu me sentia menos idiota por isso. Mesmo na Terra, eu costumava falar com meus animaizinhos de estimação. Após analisar as fofocas obtidas com sucesso nos corredores, deixei meu quarto com toalhas e roupas limpas em mão para ir tomar um banho.

— Ei! Achei você. — Nevra pulou na minha frente antes mesmo de eu dar meia volta para o corredor após fechar a porta do quarto, fazendo eu prender a respiração e retesar de susto. Lembrei do nosso primeiro encontro. O vampiro riu com a minha reação. Depois franziu o nariz. — Não é por nada não, mas você está fedendo. Eca!

— Oh! — eu arregalei os olhos, finalmente relaxando e recobrando a razão. Farejei perto de meu ombro para analisar a situação. — Desculpe. Eu... É, eu preciso mesmo de um banho. Inclusive, estava indo fazer isso agora. Então, se me dá licença... — eu sorri de forma educada e desviei dele, começando a caminhar em direção ao final do corredor.

Quase que no mesmo instante eu quis me bater mentalmente por ter dito aquilo. Esperei Nevra ir em frente e fazer o flerte dele, mas em momento algum diminui os passos. Já até estava prevendo o que ele iria falar.

“Podemos tomar um banho junto se quiser.”

“Quer ajuda com isso, bebê?”

Pisquei os cílios pacientemente e dei um sorriso de canto. Parte de mim desejou que ele fizesse isso, mas... Nada. Nenhuma provocaçãozinha. Ele sequer me seguiu. Eu estava quase prestes a me virar e perguntar se ele estava bem, mas não foi preciso porque num piscar de olhos ele estava do meu lado. E depois na minha frente, dando passos para trás enquanto eu avançava para frente.

— Ah, não se preocupe. É o meu olfato aguçado de vampiro, os outros provavelmente não percebem. — Nevra sorriu e piscou um olho para mim. Inclusive, o único olho visível. Notei, pasma, que agora ele carregava um tapa-olho em seu olho direito. — Enfim: a Miiko irá fazer um anúncio agora e quer você por perto. Venha comigo, por favor.

— M-mas... Eu preciso tomar um banho.

— Você não está entendendo. Você precisa vir comigo agora. — Nevra me lançou um olhar de aviso, parou de andar e eu quase trombei nele. O vampiro fez uma careta. — Ok, você realmente precisa de um banho. Mas isso pode esperar.

Arqueei as sobrancelhas para ele. O vampiro devolveu o gesto.

— E então? Você vem ou vou ter que te pendurar nas costas e sair te arrastando igual o Jamon faz com as pessoas desobedientes? — ele abriu um grande sorriso.

— Duvido mesmo que você seja capaz. — dei um sorriso sem mostrar os dentes e cruzei os braços.

— Não me desafie. — ele curvou ainda mais o canto dos lábios e me olhou de cima a baixo. Segurei a respiração, ruborizando.

— Tudo bem. — concordei só para quebrar aquela tensão. Depois dei um riso debochado, o preparando para o comentário que viria logo em seguida. — Primeiro as damas. — ainda curvando o canto dos lábios, inclinei o queixo indicando para ele ir na frente.

Uma expressão de surpresa surgiu em seu rosto, mas foi rapidamente substituída por um sorriso de canto.

— Ah, eu vou. — Nevra riu soltando arzinho pelo nariz. Ele deu um passo para bem perto de mim e me encarou com um brilho no olhar. — Mas que fique claro que isso... Irá ter volta.

— Estou pagando para ver. — sorri maliciosamente.

— E eu irei fazer você pagar por essa sua língua afiada em algum momento, espere por isso. — ele piscou o olho para mim e depois avançou para seguir em frente, bagunçando meu cabelo no processo.

Prendi a respiração antes de o seguir, tentando evitar que calafrios percorressem minha espinha ao imaginar o que diabos ele quis dizer com aquela última frase.

Paramos em meu quarto para deixar minhas coisas e evitei revirar os olhos conforme Nevra assobiava alegremente ao meu lado. Antes de chegarmos até o grande salão central, notei que o portal que dava acesso à sala do Cristal estava selado com uma barreira invisível permeada por símbolos azuis claros. Eram bem translúcidos, quase invisíveis à olho nu. Ergui a sobrancelha, me questionando desde quando aquilo estava ali.

— É uma proteção que Miiko colocou hoje de manhã após o ataque. — Nevra esclareceu ao perceber meu olhar curioso. — Somente as pessoas que ela autoriza podem passar.

Me aproximei para enxergar melhor, curiosa. Os símbolos não pareciam amigáveis. Antes que eu pudesse erguer minha mão para tocar na barreira, Nevra segurou meu ombro, puxando-me para perto dele.

— Não queira chegar perto disso. — ele disse, a voz alarmada. — A não ser que queira virar churrasquinho. Ou cinzas... Acredite, não queira ver o que essa coisa faz com quem tenta passar por ela.

Ruborizei. Claro! Que decisão estúpida a minha. Colocar a mão em um objeto suspeito em uma terra mágica. Onde eu estava com a cabeça?

— É claro que eu não ia tocar nisso. — cruzei os braços, me afastando da porta.

Nevra explodiu numa gargalhada.

— Eu tenho cara de quem nasceu ontem? Tudo na sua linguagem corporal indicava que você ia tocar. — ele arqueou uma sobrancelha e depois abriu um sorriso de canto. — Sorte sua que esse belo e forte e inteligente vampiro estava ao seu lado para lhe impedir de fazer tamanha estupidez.

— Patético. — revirei os olhos.

— Agora é sério. — ele parou e me fez o olhar com atenção. — Dica útil de sobrevivência em Eldarya: não toque, coma e sequer se aproxime de nada que você não saiba o que é. Ou que não pareça confiável.

— Realmente, mesmo que eu não entenda nada do que está escrito ali, os símbolos me pareceram... Não amigáveis. — observei, olhando brevemente para o portal. — Como se dissessem “fique longe” ou “não se aproxime”.

— E mesmo assim, a senhorita é curiosa o suficiente para ver o que acontece, não é mesmo?

Eu ri cruzando os braços.

— Você é bom em ler as pessoas. — afirmei.

— Não é à toa que sou o Chefe da Guarda Sombra. — ele piscou o olho. Concordei com um breve aceno de cabeça. Ele deveria ser um espião muito bom. — Agora vamos, temos que ir logo. Se nos atrasarmos mais, é a Miiko que vai fazer churrasquinho da gente.

Estremeci e me pus a andar pelo corredor logo em seguida.

Para a minha surpresa o salão, ou “Sala das Portas” como Nevra disse ser conhecido pelos habitantes, estava cheio de pessoas. O chefe da guarda Sombra segurou minha mão e me guiou entre eles, abrindo espaço para chegarmos até a parte mais alta da escadaria, que era onde Miiko estava.

Nós a cumprimentamos com um aceno de cabeça e ficamos atrás. Jamon, Ezarel, Valkyon, Ykhar, Kero e Ewelein também estavam ali do nosso lado. As pessoas sussurravam baixinho, mas um passo firme da Líder da Guarda Reluzente foi o suficiente para fazer os murmúrios pararem.

— Olá, habitantes do QG e da cidade de Eel. — começou Miiko. Sua voz era firme e alta o suficiente para ecoar por todo o salão. Tudo estava quieto. Até o vento parecia se calar perante a postura de Miiko. — Obrigada pela presença. Sei que nem todos podem vir, então peço para que espalhem o que será dito aqui. Muitas coisas aconteceram nessa semana, e ela mal começou. Chamei-os aqui para esclarecer a situação e desmentir os boatos. — a líder suspirou. — Pois bem: primeiro eu gostaria de anunciar a nossa nova membro, Kalina. Por favor, venha cá.

Arregalei os olhos. Nevra me empurrou gentilmente até perto de Miiko.

— Oi. — eu sussurrei para ela. Em seguida, virei de frente para a multidão e dei um sorriso amarelo. Acenei de forma tímida.

— Kalina é agora uma habitante do Q.G e pertence à guarda Absinto. Sim, Kalina é humana. — Miiko voltou a falar e eu abaixei a mão. Evitei olhar diretamente para os eldaryanos e deixei meu olhar focar na parede lá atrás. — Ela foi teletransportada para cá por meio de um dos portais mágicos da Terra, que no momento, devido à instabilidade crescente do Cristal, está funcionando apenas em sentido único. Sim, a Kalina apareceu diretamente na sala do Cristal, mas ela não está, de forma alguma, envolvida com o homem que vem nos fazendo mal há algum tempo. Caso contrário, ela estaria muito bem vigiada na Prisão. Então por favor, tratem-na bem.

Arqueei as sobrancelhas, me perguntando se era por isso que todo mundo me encarava de forma torta quando eu passava por qualquer lugar do QG ou da cidade, aldeia, refúgio ou o que quer que seja.

— Como espera que acreditemos nisso? — gritou um dos cidadãos.

Jamon vociferou para que ficassem em silencio. Miiko bateu o cajado firmemente no chão. Até eu me encolhi com o estrondo.

— Os questionamentos vêm depois do meu discurso, por favor. — pediu Miiko. Depois de inspirar fundo, ela continuou: — Suspeitamos que Kalina faça parte do grupo de Guardiões, já que em nossa primeira conversa ficamos cientes que sua família carrega o sobrenome Gardisto, um dos clãs de humanos mais antigos a honrarem seu compromisso com Eldarya. Talvez um dos primeiros a fazerem o juramento de sangue ao Cristal e receberem a benção do Oráculo para protege-lo até o fim de suas vidas. Custe o que custar.

A chefe da Reluzente pausou a sua fala, esperando a reação do grupo à essa nova informação. Um burburinho começou instantaneamente, mas logo foi cessado pelo bater do cajado de Miiko, que continuou a falar.

— O teste ainda não foi feito, mas suspeitamos que ela também tenha descendência faery, já que algumas famílias de Guardiões tinham casais híbridos. — Miiko fez outra pausa. Arqueei a sobrancelha, surpresa por ela ser tão honesta e franca com os habitantes. Também surpresa pela nova informação. Ela se virou para mim. — Quer falar algo? — Minha garganta secou. Rapidamente fiz que não com a cabeça. A líder da Guarda Reluzente abriu um grande sorriso. — Ótimo. Vamos para o segundo tópico: o ataque desta madrugada.

Voltei para meu lugar ao lado de Nevra, ainda absorvendo tudo aquilo. Miiko falava sobre tudo o que eu já sabia, então permiti encarar o nada e parar de escutar. Nevra colocou a mão em meu ombro, me lançando um olhar tranquilizador. Assenti em agradecimento. Encarei Miiko por um instante, percebendo o quanto sua postura estava reta, impecável até demais. Ela era uma boa Líder, aparentemente.

— [...] Nossos estoques foram muito prejudicados, vocês devem ter percebido isso no café da manhã e no almoço. Pedi para Karuto racionar ainda mais os alimentos. Enquanto nossos estoques não forem abastecidos, será assim. — Miiko fez outra pausa dramática. — Felizmente, os rapazes sairão em missão até as terras Fenghuang e Kappa para buscar suprimentos. Começaremos a preparação para a viagem hoje mesmo e pretendemos partir até esse final de semana. Os nomes dos guardas que foram selecionados para acompanhar a missão estarão no quadro de missões até hoje à tarde. Por ora, é isso. Dúvidas?

Duas dezenas de pessoas levantaram a mão. Lancei um olhar suplicante para Miiko. Sem dizer nada, movi meus lábios “posso ir?”. A líder assentiu. Eu fiz o mesmo gesto em agradecimento.

Eu praticamente corri para meu quarto. Fui para as duchas, dando graças a um bom Deus quando encontrei o lugar vazio. Todos deveriam estar concentrados do anuncio da Miiko. O lugar era grande e muito semelhante à de um vestiário das escolas de Washington. Escolhi o primeiro chuveiro, ficando feliz ao notar que tinha sabonete e shampoo ali.

— Olha, senhor Mascarado... — eu disse, baixinho e entrei na cabine, fechando a cortina. — Sei que você é do mal e eu não deveria estar te elogiando... Mas muito, muito obrigada por não se importar em roubar produtos de higiene pessoal.

Felizmente, a água saiu quente e com vapor quando girei o registro. Quase gemi de prazer quando fiquei de costas para o chuveiro e a água caiu com uma pressão maravilhosa em meus músculos, relaxando-os quase que imediatamente.

Não tinha percebido o quão tensa estava até aquele momento. Peguei o sabonete e comecei a me ensaboar, apreciando o cheiro de lavanda e o toque macio e deslizante do produto.

Nos Estados Unidos, é normal passar dois ou três dias sem tomar banho. Mas eu, particularmente não abria mão desse momento sagrado e o realizava ao menos uma vez no dia. Principalmente depois de passar três meses no Brasil... Ah! Eu não conseguia ficar sem um bom banho.

Banhos são relaxantes. E relaxamento era uma coisa que eu estava precisando muito nesse momento. Inspirei fundo, morrendo de saudade. Será que algum dia eu os veria de novo? A minha família. Meu país. Meu mundo...

Expirei.

— Eu vou dar um jeito de sair daqui. — sussurrei enquanto entrelaçava os dedos atrás do pescoço. — Ah se eu vou!

Abri os olhos, encarando a parede de cor perolada.

Descansar. Eu precisava seguir o maravilhoso conselho de Ewelein e ir descansar. Mas encher meu cérebro de informações sobre esse lugar parecia tão mais atrativo.

— Eu que lute para lidar com o surto mais tarde. — suspirei, esfregando meu cabelo.

Eu tinha esse costume de guardar muitas informações, deixar para processar mais tarde e depois sofrer um sobrecarregamento mental com tanta coisa para assimilar. Quem não gosta de adiar todos os seus problemas, não é mesmo?

O ruim é que quanto mais ignoro, mais informações acumulam. Tudo se mistura e se torna uma bomba que explode sem dó nem piedade. Na hora de sentar e colocar no papel, são tantas coisas que... Só de pensar fica difícil respirar.

Inspirei fundo, sentindo falta dos meus amigos. E da minha terapeuta. Será que eles tinham esse tipo de profissional aqui? Honestamente, comecei a rezar para que sim. Caso contrário, não faço a mínima ideia de o que vai ser de mim aqui.

Aberração.

— Ameaça de guerra iminente... Ataques... E ainda tem esse lance de Aberração! — resmunguei, massageando meu pescoço. — E eu achando que o menino só estava me chamando daquele jeito porque eu sou diferente deles. — ri de escárnio.

Desliguei o chuveiro e tratei de pegar minha toalha que pendurei num gancho do lado de fora. Me enxuguei e coloquei as roupas que Miiko me deu. Elas serviram como uma luva! Nem muito grande, nem muito apertado. Estranhei o excesso de cores e detalhes, mas dei de ombros. Pelo menos estavam limpas e cheirosas. Parei na frente de um dos grandes espelhos que havia ali e deixei a toalha e minhas roupas sujas num balcão. Na frente do espelho, ajeitei o meu cabelo e franzi as sobrancelhas para meu reflexo.

Eu estava estranhamente pálida, mas meus lábios estavam corados. Meus olhos violetas estavam com um tom frio e meio acinzentado. Não obstante, olheiras ameaçavam aparecer logo abaixo dos meus olhos. Pisquei lentamente, checando a roupa eldaryana uma última vez antes de sair.

Ridícula. Eu me sentia ridícula naquela roupa. E elas não me faziam me sentir mais parte desse mundo, como achei que seria. Muito pelo contrário... Usar aquelas peças só me fez pensar o quanto aquilo não era para mim e o quanto eu não me encaixava ali. Peguei as minhas roupas sujas e, controlando minha respiração, saí dali.

Fui até meu quarto e me joguei na cama sem pensar duas vezes.