O rei voltou, aquele ordinário me achou no porão onde eu e Joker morávamos.

Guardei escondido, o crânio de meu pai e dormi por dias seguidos tendo pesadelos perturbadores.

Ou era Joker morrendo, ou eu perdendo a cabeça, às vezes a mamãe que nunca conheci e ceras vezes tive sonhos em que o homem deformado cortava a cabeça do rei.

Não sei por quanto tempo dormi, mas ele me tirou do esconderijo à força e me bateu. Bateu tanto que sangrei, berrei, chorei, xinguei.

Mas ele não parou de me olhar com ódio por um só segundo, aquele coração insensível não conhecia clemência ou amor, não conhecia nada além de luxúria, desejo, ganância e loucura.

Chorei e chorei sozinha do escuro.

Mas ninguém apareceu. Eu não tinha mais nada, além de meu desejo de vingança.

Quando finalmente vi a luz do sol, já havia se passado semanas, nos primeiros dias depois da surra nem conseguia sequer me mover e depois não me tiravam de lá. Fiquei atordoada ao sair, senti um pouco de medo de outra surra, mas eu estava só, o rei não apareceu.

Fui ao meu esconderijo secreto, minha casa, meu lar. Tantas lembranças...

Mas eu tinha que partir.

Não descobriram o crânio meio apodrecido de Joker, eu não o deixaria, é meu pai, meu único e querido pai. Eu o amava, mesmo depois de tudo.

Consegui desviar dos guardas e saí do palácio, eu nunca havia saído do palácio.

O sol ardeu em meus olhos acostumados demais com a escuridão, mesmo que fosse um sol fraco de inverno. Corri e corri sem parar apesar de já ter conseguido me embrenhar na floresta. As árvores brilhantes prendiam meus cabelos com os galhos, tropecei várias vezes, mas não parei. Pra onde eu estava indo? Nem isso me fazia parar.

Até que desabei no chão e não consegui mais me levantar. O cansaço era demais, a dor era uma mortalha pesada. Tudo ficou negro e desmaiei.

Seria tão bom se esse fosse o fim do pesadelo.

Congelando, eu estava congelando. Sozinha na floresta, com a neve brilhante cobrindo todo meu corpo.

Seria ótimo se eu morresse ali mesmo...

Mas ao invés disso, um sorriso me acordou.

— Otou-sama – murmurei esperançosa, Joker sorria de modo muito parecido – Otou-sama!

Acordei de imediato, tremendo de frio.

— Não, eu não sou seu pai – riu o garoto, aparentava ter uns dezoito anos, seu sorriso brincalhão lembrava muito o do Otou-sama e suas roupas listradas eram sinceramente estranhas.

O que ele era? Tinha orelhas de gato!

Me afastei rapidamente, com medo, seus olhos esverdeados eram assustadores.

Porém, o garoto se teletransportou numa névoa roxa até mim, deixando-me mais assustada.

— Calma, não vou te machucar! – falei ele rindo.

Como eu poderia acreditar?

— Você está congelando – comentou ao segurar meu rosto.

Me afastei, ainda receosa.

— Qual seu nome? – perguntou me cercando numa árvore.

— Você é muda? O gato comeu a sua língua? – debochou – Há, eu comi sua língua? Por que não diz nada?

Não respondi.

— Ah, poxa. Você podia ter rido um pouco pra fingir que é engraçado – suspirou frustrado.

Do que ele estava falando?

Começou a dizer abobrinhas e encontrei uma brecha pra fugir.

Corri um pouco, mas o garoto louco me segurou em seus ombros e eu não podia sair.

— Ah! Me solta! Seu doido! Eu preciso fugir! – gritei esperneando.

— Não – negou ele – Agora você é minha! Há, há...

Então ele fez algo que nunca pensei que ia sentir novamente.

— Ah! Ah, não! Cócegas! Não! – comecei a rir desesperadamente em seu colo.

Seu toque... suas mãos... era igual a Joker.

Caímos na neve rindo à beça, consegui me esquentar apenas com isso. Como?

— Ei, quem é você? – indaguei já sem vê-lo como uma ameaça.

— Sou Ches, o gato de Cheshire – se apresentou, acariciou minha cabeça e sorriu mais uma vez.

Ele sorria sempre. Como conseguia? Eu tinha a impressão de que por trás desses sorrisos se escondia muita dor e tristeza.

— E você? Como se chama? Ou melhor, como os outros te chamam? Porque você não se chama de nada... chama? – disse.

— Você é estranho – comentei subindo em seu colo quentinho.

— Seu nome é “você é estranho”?? Nossa, que nome estranho! – comentou.

— Não – ri – esse não é meu nome. Sou Scarlett.

— Tipo: Scarlett a filha do rei?! – se chocou desmanchando o sorriso.

— Não sou filha dele! – protestei – O rei é um tirano, traidor, pérfido... Eu odeio ele!

Ches andava lentamente perguntando-me sobre minha vida. Contei a ele sobre minha mãe, mas não mencionei que fugi, disse que fui abandonada e não tinha nada mais. Eu não sabia sobre Ches, se era confiável ou não. E se ele era aliado do rei?

— O rei é mesmo um tirano – Ches suspirou com um olhar profundo.

— Você sabe? Ele já te fez alguma coisa? – questionei intrigada.

— Ah, não – sorriso voltou – Mas acho que todo mundo sabe, né? O que ele faz.

Havia algo por trás disso, com certeza havia.

— Hum, pra onde você está me levando? – resolvi mudar de assunto.

— Pra minha casa!