E num mundo não tão distante, mas ao mesmo tempo inalcançável, havia uma família. Eles eram de uma família muito rica, um rei e uma rainha poderosa que sustentavam um país de grandeza.

O rei era forte e ganancioso. Ganhava guerras, mulheres, dinheiro. Mas ainda assim queria mais.

A rainha era bonita como um anjo perto daquele tirano mentiroso, ela sofria em silencio, com o coração quebrando na tristeza e desgosto. Tinha de sorrir tristemente pra aquele povo, mas aquela agonia nunca acabava.

De que adianta ser a rainha de um lugar vazio? Ela não podia suportar.

Então deu seu último suspiro no parto de sua filha, Scalett.

Mas havia um sério problema.

— Sua bastarda detestável! – urrava o rei.

O olhar de ódio é inesquecível, com aquelas pedras azuis como um diamante brilhante, a aura insana de cólera. Ele me odiava, odiava minha mãe por ter me gerado. Eu não era filha dele de sangue.

— Tirem esse verme da minha frente, mate essa coisa! – ordenou destruindo os quadros da minha mãe.

Gritava loucamente enquanto quebrava tudo.

— Ruby, sua vadia! Por que você fez isso?! Por que você fez isso?!

— Majestade, acalme-se, majestade! – pediam as servas em prantos.

— Não me peçam calma! Ela me traiu! Aquela ordinária...

— Vossa majestade – um homem se aproximou, um homem de cabelos negros e olhos penetrantes demais mesmo para um mundo de loucos – Permita-me dizer: se a rainha estava grávida, todos já sabem, não acha mais prudente deixar a menina viva pra não levantar suspeitas? Se souberem que ela o traiu...

— Joke, cuide dela você então – disse o rei secamente pensando – Não quero ver essa criança bastarda na minha frente de novo! Se precisar de ajuda, peça aos empregados. Se eu vê-la novamente, não terei piedade.

— Como quiser senhor...

O olhar profundo de Joker não estava somente cheio de compaixão, ele estava cheio de ódio. Ódio do rei.

~//~

Joker cuidou de mim num pequeno quarto longe de tudo, me fez rir, me ensinou a andar e falar, aprendi tudo com ele. Até mesmo a odiar o rei

Ele era como se fosse meu pai, o espaço era pequeno, eu não podia sair, mas era feliz.

Porém, essa alegria durou pouco.

Joker me contou sobre minha verdadeira família, sobre o tirano do rei e minha pobre e triste mãe. Ele me incitou a odiar o rei desde cedo, falava sobre as atrocidades que ele fez, falava que ele machucava minha mãe e desprezava todos.

Isso não deixa de ser verdade, mas eu era apenas uma criança.

Fiquei com raiva, uma raiva cáustica e insana. Aquele homem matou minha mãe, mentiu para o povo e ainda por cima me abandonou.

Eu precisava ver quem era esse monstro.

Certo dia, quando Joker saiu pra fazer sei lá o quê, olhei profundamente para a porta e girei a maçaneta. O ar gélido do inverno encheu meus pulmões acostumados demais com o calor do pequeno quarto. Nunca havia saído daquele porão escuro, mas eu precisava.

Comecei a andar cautelosamente pelos corredores infinitos do palácio, escondendo-me pra que não me vissem. Andei curiosa por vários locais, um castelo bem vazio e solitário aquele. Onde estariam todos?

Então eu vi, no meio daquela mesa, rindo como um porco com aquela gente maluca.

Cortando um frango como um bárbaro, lá estava o rei.

— Nojo – meu rosto se retorceu numa careta, minha voz fina e infantil cortou o silêncio – Nojento.

Ele se levantou em choque, encarando a menina pálida e ingênua que o fitava com tanto desprezo.

— O que você está fazendo aqui? – indagou cheio de raiva – Onde está Joker?

— Deixe ele em paz! – falei insolente – Seu assunto é comigo! Seu monstro!

As palavras atingiram todos na mesa. Quem essa garotinha pensava que era? Como pôde falar com o rei dessa forma? E perguntavam se eu não era filha dele. Me enchiam de mais nojo.

— Sua... bastarda!

O rei levantou-se da mesa e o chão pareceu tremer, ele segurou meu braço tão forte que doía tudo, gritei dando-lhe tapas e chutes, mas era mais forte que eu.

— Você me envergonha, sua filha da mãe! Bastarda! Criatura do Diabo! Vou mandá-la pro Inferno! – dizia me enchendo de mais ódio.

— Ah! Me solta! Seu homem sujo! – eu berrava sendo arrastada pra sabe se lá onde – Matou minha mãe! Eu te odeio! Eu te odeio!

E ele me trancou no escuro.

O escuro não era o problema exatamente, já estive muito no escuro e já era costume. Mas era frio, muito frio, eu estava quase congelando. Então me tiraram de lá.

Meus dentes batiam e minhas pernas tremelicavam, não entendi o que estava acontecendo. Até chegar ao local.

Os homens me seguraram firme, as pessoas em volta urravam. Por que faziam isso? Parece que as pessoas do País das Maravilhas são bastante insanas e sádicas, pra gostar de ver execuções seja lá de quem for.

Do outro lado do palco de madeira traziam Joker. Meu coração palpitou.

— Otou-sama! – gritei querendo correr e abraçar meu querido pai de criação, mas não deixaram.

Colocaram-no com o pescoço pra baixo e seguraram sua nuca, observei tudo atentamente, confusa. O que aconteceria?

Joker se virou pra mim e pronunciou algo que não pude ouvir, mas na leitura labial entendi “Sorria Scarlett, para o sangue. Não esqueça de viver, não esqueça dos mortos... e do culpado”.

Um homem desfigurado e horrendo ergueu uma lâmina e num milésimo de segundo presenciei a morte da única pessoa que me amou e amaria. Pra sempre.

Suas últimas palavras inaudíveis flutuaram em minha mente com todo aquele sangue.

Começou a chover, todos foram embora, mas continuei ali. Ajoelhada no chão acariciando o rosto sem cor e sem vida do coringa. Imaginando a cabeça do rei no lugar dele.

O rei ainda me pagaria.

Meu pai, minha mãe, ninguém seria esquecido.

— Cortem... a cabeça... do rei – ri imaginando a cena grotesca.