Bem, eu provavelmente deveria começar com um discurso falando sobre como é ruim ser uma de nós e que se você perceber que é um em alguma parte deste livro, feche agora, finja que nada aconteceu e blá blá blá. Mas não, não vou fazer isso. De que adianta? Ninguém ouve meus conselhos mesmo. Mas, eu lhe aviso; ser um de nós não é nada legal, e por isso, quando estiver correndo de um bando de monstros, não jogue a culpa em mim, eu tentei lhe avisar. Eu tentei.


Bem, que falta de educação a minha, meu nome é Isabelle Aguiar.
Tenho 15 anos de idade, e sei que parece quase impossível sobreviver esse tempo todo sem nenhum treinamento, mas como consegui te explico depois. Morava em São Paulo, no Brasil, e até poucos dias, tinha uma vida normal, ou tão normal quanto o possível pra mim. Minha mãe era sócia de uma agência de transportes aéreos, o que quer dizer, passava quase o tempo todo fora.

Eu estava no meio do ano letívo, minha mãe sempre insistia em pagar escolas particulares pra mim, então, como é óbvio que eu já fui expulsas várias vezes de escolas, eu estava acostumada a ver riquinhos mimados me olhando torto quando eu chegava nas escolas. Mas agora era diferente, eu sentia isso.

Minha mãe estava na cozinha da mansão e me olhava com um ar irritado, mas com um pouco de pena. Não entendi o porque da pena, mas visto o que mais eu ia ficar sem entender mais tarde, era melhor eu nem me preocupar em descobrir o porque dessa pena.

- Então, mais um colégio explodido? – Começou minha mãe, Caroline o nome dela, e geralmente, ela era gentil, geralmente, não sempre. – Isabelle, eu tenho um trabalho, uma vida profissional também. Tem ideia de quanto mancha a reputação da empresa e a da nossa família quando faz isso? Não dá mais. Eu não pretendia fazer isso, ao menos, não tão cedo, mas... está me ouvindo?

- Sorry, I don’t speak portuguese. – Falei em um sorriso irônico e voltei a colocar meus fones de ouvido.

- Ha-ha-ha. Piadista você agora? – Ela estava começando a se irritar, percebi isso, estava quase pedindo desculpas. – Pois bem. Já que não fala mais português, que tal nos mudarmos de país?

- Mãe! Espera, é a minha música favorita. –Aí percebi o que ela tinha dito – O quê? Não. Não e não. Não vou me mudar de país. Eu tenho vida social, eu tenho amigos, eu tenho obrigações e então, não.

Mas minha mãe não tinha ouvido nada mais depois do “não”. Ela agora estava entretida no seu tablet procurando sei lá o quê.

- Está decidido. Estou conferindo imóveis para nós e então nos mudaremos dentro de alguns dias.

- Mãe! Não tem como, eu não posso. – Comecei tentando fazer-la mudar de ideia, mas isso seria difícil, minha mãe não era do tipo que mudava de ideia rápido.

- Olha, querida, sei que vai ser difícil, mas é o melhor para nós duas. – O olhar dela tinha se adocicado um pouco, mas logo voltou ao que era antes. – Pense em mim um pouco, tá? Só dessa vez. E além do mais, o Brasil não é mais seguro para nós.

- Pra onde vamos então? E o que significa “o Brasil não é mais seguro para nós”? – Perguntei, não ia conseguir convencer ela.

- Estados Unidos. Nova York.

Então ela saiu. Sem responder a minha segunda pergunta. Me deixando lá, plantada, esperando algo, ou alguém, que me dissesse “Há. Piadinha do malandro” ou então “Sorria, você está na televisão”. Mas eu sabia, isso não ia acontecer.

Começei a ligar pras minhas amigas e me despedir, ia ser difícil, eu sabia. Fui de pessoa em pessoa dos meus contatos e liguei. Até que cheguei ao Tyler. Ah, sim, meu Tyler. Ele tinha se mudado, não tinha mais notícias dele, nunca mais tive. A última vez que o tinha visto foi na minha festa de aniversário. Ele tinha me dado um colar com pingente de raio. Estavamos quase começando a namorar, mas aí ele se mudou. Fim. Fim de uma linda história de amor que poderia ter existido, mas nem começou de verdade. Eramos crianças apaixonadas, e aí fomos separadas.

Fui arrumar minhas malas, coloquei meu fone do iPod. Estava ouvindo The Pretty Reckless – You, o que deixou uma impressão de trilha sonora, algo bem estranho. Deixei os fones cairem sobre a jaqueta preta, precisava descansar. Deitei na minha cama e fiquei olhando a claraboia. Estava um bonito céu hoje. Quando dei por mim e olhei no relógio, já se passava das 01:00 horas.

Precisava dormir. Fiquei vagando pelos corredores da casa. Não fazia isso desde os meus 9 anos. Pode parecer idiotice, mas as sombras escuras começaram a me dar medo.

Escorei no lado de um armário no corredor, ia colocar meus fones de volta, mas aí ouvi vozes. Uma voz conhecida e outra desconhecida.

- Ela já deve ir, Caroline. – Falou a voz desconhecida. Era a voz de um homem, era como se a pessoa que falasse estivesse mesmo abalado, mas a voz era firme.

- Não, Inácio. Ela é muito nova ainda, ela não sabe de nada, ela... – A voz da minha mãe parecia estranha, desgastada, cansada.

-Você sabe, dessa forma é que a maioria de crianças como ela são mortas. – Esse tal de Inácio falou. – Os prazos estão se esgotando. Ela tem que ir.

- Um passo de cada vez. Já estou levando-a para os Estados Unidos. – Ela respirou fundo e continuou.

- E quando chegar lá, ela tem de ir direto para o Acampamento. – Inácio falou. Mas que Acampamento era esse que ele estava falando?

- Só mais um tempo, por favor... Vou levar ela assim que puder. Mas você sabe, o cheiro fica mais forte quando eles descobrem o que são. E quando ela for não vai estar mais protegida. Aqui no Brasil ninguém nunca a descobriria. – Do que ela estava falando? Protegida no Brasil? Como assim?

- Caroline, o Brasil não é mais seguro para crianças como ela. Sempre foi seguro para eles, mas agora não é mais. – “o Brasil não é mais para crianças como ela”? Ele falou quase a mesma coisa que minha mãe. O que quer dizer? Eu era uma garota normal. Com alguns problemas de aprendizagem em português e inglês. Mas normal.

Deixei minhas mãos caírem de lado, só então percebi que as tinha batido com força no armário. Tampei minha boca com as mãos num gesto de silêncio. Fui descoberta.

- Que barulho foi esse? – Ouvi minha mãe falar, a voz agora mais alarmada do que abalada. - Isa?

Isso foi tudo que ouvi antes de correr. Corri, sabia que meus passos deveriam ser ouvidos no silêncio da noite, mas o vento pareceu me ajudar, era como se eu estivesse voando, vi tudo como um vulto, e quando acordei no outro dia estava deitada sobre a minha cama. O sol brilhando atrás do vidro transparente da claraboia.

Na melhor das hipóteses, eu havia tido um horrível pesadelo. Mas eu sabia que não. Melhores hipóteses nunca aconteciam comigo.