Se o clima já estava ruim na prisão, com a morte de Lori, tudo ficou quase insuportável. Não por que ela fosse a melhor pessoa do mundo, a mais querida, ou a amiga de todos, mas sim por que era a mãe de Carl e Judith, esposa do líder e, principalmente, um deles.

Perder T-Dog e Lori em tão pouco espaço de tempo teve um impacto gigantesco sobre aquelas pessoas que viveram juntas e se apegaram além do explicável durante nove meses.

Se antes, com o rapto de Glenn e Linn, e a violação desta última, tinham sentido que necessitavam lutar contra o tal Governador e sua Woodbury, agora, com a morte de Lori, a guerra estava declarada.

Escaramuças foram criadas, vigias cuidariam do perímetro durante o dia e à noite, armas e munição estava sendo resguardadas para a ocasião apropriada, mas ainda eram poucas.

Os irmãos Dixon queriam um ataque direto. Merle conhecia a hostil comunidade, sabia sobre sua infraestrutura e seus pontos fracos. Rick, no entanto, compreendia que estar de cabeça quente não ajudaria a vencer nenhuma batalha.

“Não temos munição ou armas suficientes para um confronto direto com eles.” Argumentara. “Além disso, eles estarão esperando e preparados para qualquer vantagem que Merle possa nos dar.”

“Precisamos atacar agora ou partir.” Merle explicara.

“Não vamos a lugar algum.” Rick replicara. “Conquistamos este lugar, sangramos por ele, não vou fugir... Nós não vamos fugir.”

“Temos que ponderar isso com calma, filho.” Hershel se envolveu na discussão por fim. “Veja o que este louco fez mais cedo, e eles eram apenas em cinco.”

“E nós fizemos algo que eles não tiveram coragem... Tomamos este local.” Rick fez um gesto largo apontando para as paredes da prisão. “Passamos o inferno na estrada e sobrevivemos. Somos mais fortes que eles, valemos, cada um de nós, por três desses malditos.” Merle tinha abanado a cabeça em discordância. “Podemos vencer. Vamos vencer.”

Sam encostou a cabeça à parede e suspirou lembrando-se de toda aquela conversa. Percebendo que estavam divididos. Que alguns como Hershel queriam partir e outros como Chase queriam ficar e lutar.

Por fim, a voz do líder soara mais forte. Rick os fizera entender e acreditar na vitória. Sam não se surpreendeu com isso. O xerife não estaria a frente de todos, sendo seguido por Daryl e os demais, se não fosse um comandante forte, destemido e carismático.

Pensou na pobre Lori. Estando em alerta de segurança, com o campo tomado e a iminência de um novo ataque, seria impossível cuidar de um enterro apropriado para esta. Assim, foi necessário que seu corpo fosse conservado em uma das celas da solitária. Não sem que seu filho sofresse com essa situação. Ter a mãe morta diante de seus olhos, já era por si só algo que o tinha impactado, não lhe dar um enterro decente tornava tudo pior.

Sam se perguntou com tristeza em como tanta desgraça poderia acontecer no espaço de menos de um dia?

Afagou o cabelo de Linn, que deitada em seu colo, tinha por fim dormido, e imaginou se não seria mais seguro todos partirem, deixarem aquele lugar de morte para trás. Mas logo a imagem da amiga em desespero, disparando aquela arma, lhe mostrava que não podiam fugir, que deviam arriscar qualquer coisa para acabar com aquele desgraçado.

“Como você consegue?” Linn sussurrou e a mão de Sam estancou a poucos centímetros de seu cabelo.

Tinha achado que ela dormia, mas sua voz, apesar de um pouco quebrada, rouca pelo quase estrangulamento, parecia muito firme e desperta. Mesmo assim, não havia entendido muito bem a pergunta.

“Como consegue conviver com esse tipo de lembrança?” Ela perguntou virando a cabeça em seu colo, lhe encarando na penumbra do quarto.

Linn se referia ao incidente no acampamento a quase um ano atrás. Mesmo assim, Sam não sabia bem o que lhe dizer, por que não entendia muito bem o que Linn achava que tinha lhe acontecido.

Nunca tinham conversado sobre o que ocorrera no acampamento entre ela, Jay e Chad naquela barraca, nem mesmo ao seu pai ela contara muito, talvez por essa razão Linn tivesse uma impressão equivocada sobre toda a situação. Por que, mesmo que traumatizante, sua maior angústia nunca tinha sido pelo que os dois homens quase lhe fizeram, mas sim pelo que ela tinha feito a eles.

“Eu me sinto tão idiota por ser tão fraca.” Linn soluçara levando as duas mãos ao rosto e escondendo os olhos, balançado a cabeça e as afastando para encarar Sam. “Queria ser como você... Queria que isso não me afetasse... Queria... Queria ser forte.”

Sam afagou seu rosto e segurou sua mão, procurando encontrar as palavras certas a dizer, mas sempre se achou torpe com elas e isso só tinha piorado com o tempo.

Talvez devassar seu coração a Linn e lhe contar algo que ainda lhe doía, pudesse lhe mostrar que Sam não era mais forte que a ruiva, não quanto a algo tão ruim como o que ocorrera a Linn.

“Quando eles chegaram no acampamento, eu soube que havia algo de errado com os dois.” Sam começou.

Linn tinha virado o rosto, porém, ao perceber sobre o que Sam falava, girou e encarou a amiga.

“Mas meu pai ainda queria ajudar as pessoas, nós queríamos ajudar as pessoas, então deixei minhas desconfianças de lado, envergonhada por que eles pareciam caipiras e minha antipatia podia ser fruto do preconceito.”

Sam fechou os olhos e meneou a cabeça se sentindo estúpida como naquela época.

Quando, dois dias depois, Jay e Chad a agarraram e levaram para a barraca deles, ela sabia que deveria ter seguido seus instintos. Eles a amordaçaram e ameaçaram e Sam era muito jovem, e ainda por demais ingênua, para não estar amedrontada diante de toda a situação: Uma faca em seu pescoço, com dois homens lhe tocando e arrancando suas roupas.

Estava seminua quando Jay empurrara o primo dizendo que seria o primeiro. Ele era maior, mais forte e o outro mais jovem e um pouco idiota. Jay era o alfa, mesmo assim, no afã do desejo, o garoto pareceu tomar coragem e propor que a compartilhassem ao mesmo tempo.

Devassidão e inteligência não pareciam ser coisas que convivessem com equilíbrio naquela dupla, Sam pensou agora, enquanto relatava todo o incidente pela primeira vez para alguém.

Eles tinham enfiado um trapo em sua boca e coberto a mesma com fita adesiva, em três ou quatro voltas. Tinham lhe dito obscenidades, como o quanto desejavam aproveitar de sua boca também, mas não arriscariam que ela gritasse, não com a barraca a borda do acampamento.

"Eles teriam me levado para mais longe se pudessem, mas tinham medo dos errantes." Sam suspirou.

Foi a primeira vez que alguém a tinha tocado com tanta intimidade. Estremeceu a lembrança de uma boca em seu seio, da mão apalpando seu sexo, do corpo de Jay roçando no dela. De certa forma agradecida por eles não terem partido para uma invasão logo no principio, preferindo brincar com seu corpo e atormentá-la; tentando, com perversidade e loucura, excitá-la, quando tudo o que ela desejava era que alguém lhe ajudasse, que eles parassem ou morresse sufocada, com aquele trapo cada vez mais enterrado em sua boca.

Jay se excitou ainda mais com a ideia de tomá-la junto com o primo.

“Mas minhas mãos estavam amarradas para trás e Jay as soltou por que eu ainda lutava e estava lhe atrapalhando.” Sam riu daquele seu jeito triste.

Foi quando suas mãos estavam livres, por alguns breves segundos, que ela soube, aquela seria sua única chance.

Havia empurrado Jay e se jogado contra Chad, por ser ele mais baixo que ela, franzino e idiota. De algum jeito, que ainda não compreendia, tinha conseguido pegar a faca que ele levava a cintura, atingindo seu peito duas vezes e se erguendo para lidar com o Jay.

Ele hesitara ao vê-la com a faca em sua direção, a mão tateando a fita adesiva em sua boca, um pouco trêmula e assustada. Jay era um predador, ele sabia que Sam estaria em desvantagem só, e apenas, enquanto estivesse impossibilitada de gritar.

Sam conseguiu tirar por fim a fita e tentou cuspir o trapo sujo que ele enfiara em sua boca, estava ofegante e mal conseguia respirar direito, foi nesse instante que ele a atacou. A derrubou sobre o corpo de Chad, com Sam sentindo todo o peso dele, enfiando a faca em ombro, com ele urrando por entre dentes e lhe dando um tapa.

Estaria perdida se tentasse lutar com ele no corpo a corpo, algo que só aprenderia muito depois com a ajuda de Chase, por isso apertou a faca em seu ombro, enfiando a lâmina um pouco mais em sua carne, a dor o fez recuar o bastante para que o atingisse com o joelho bem entre as pernas. Ele rolou e ela correu em direção a seu facão, jogado em um dos cantos, junto a sacola de primeiros socorros. Gritou e girou o atingindo com a lâmina no pescoço quando o sentiu lhe agarrar pela sua longa trança.

“Ele caiu e eu o atingi novamente, não lembro quantas vezes.” Sam estremeceu e Linn nada dizia. “O sangue dele estava por toda a parte e sobre mim.” Sam engoliu em seco. “Foi a primeira vez que matei uma pessoa. Alguém vivo."

Sam estava olhando para o vazio à frente, devagar baixou os olhos e encarou Linn.

“Então, como pode ver, não sou mais forte que qualquer outra pessoa e não sei o que faria se eles tivessem conseguido fazer... fazer tudo comigo... Tive apenas...” Sam calou.

Não pode falar novamente, não conseguia concluir a frase, pois a amiga não tivera sorte alguma, há não ser sair com vida daquilo. Mas entendia que Linn não encarava aquele fato como sorte.

“Eu pensei...” Linn ficou calada, fechou os olhos e meneou a cabeça. “Minhas mãos estavam presas por correntes.” Disse e algumas lágrimas deslizaram pelos cantos de seus olhos.

“Ele não teria conseguido de outra forma.” Sam afastou o cabelo da testa de Linn e deixou a mão descansar ali por um momento.

“Eu lutei, Sam... Eu lutei o que pude.” Linn explicou. "Eu gritei muito, mas não tinha ninguém para me ajudar."

“Eu sei.” Respondeu muito baixo. “Sei também que você é a pessoa mais forte que conheço e não vai deixar que o lhe aconteceu, o que aquele homem te fez, te defina.”

“Não sei se posso viver com isso.”

“Você poderia, mas não vai viver com nada, você vai superar.” Sam fez um esgar. Linn pode notar o ódio em seus olhos, mesmo na escuridão do quarto. “Vamos vencer aquele desgraçado, você vai matá-lo e nunca mais, nunca mesmo, pensará nele novamente.” Sam puxou a coberta sobre seus ombros. “Mas preciso que me prometa que, até que isso aconteça, você não vai tentar algo novamente.”

Linn ficou calada por um bom tempo, se encolheu sob a coberta e virou o rosto.

“Linn?” Sam chamou quando os segundos se passaram, angustiantes.

“Prometo.” Sussurrou um pouco mais determinada.

Sam suspirou mais aliviada, nunca tinham feito promessas uma a outra que não estivessem dispostas a cumprir.

“Sam... Sobre Rick...” Linn começou.

“Não precisamos tratar disso agora.” Sam cortou se sentindo incomodada por pensar em Rick de qualquer maneira nesse momento, com a morte de sua mulher tão recente.

“Eu fui tão idiota sobre isso.” Linn continuou sem fazer caso. “E nem me importa mais.”

“Importa sim.” A morena discordou.

“Não agora.” Linn foi enfática.

Ela se sentia tão diferente depois de tudo aquilo, que tudo o que sentia por Rick parecia um pouco sujo e pequeno, como se amá-lo e desejá-lo pudesse ser um pecado pelo qual estava pagando.

“Deveria ter te contado desde o início.” Sam deixou escapar. “Mas, não queria machucar você, não queria que me encarasse como uma rival, quando só desejo ser sua amiga.”

“Você é minha amiga.” Linn se sentou e abraçou Sam. “Me odiei por estar tratando você mal, mas não conseguia controlar meu gênio.”

“Você nunca consegue.”

Linn sorriu engasgado contra o ombro de Sam.

“Eu te amo Linn. Não quero perder você.” Sam apertou Linn sem se preocupar com a leve dor em sua mão. “Não me assuste assim nunca mais.”

Linn ficou em silêncio, mas balançou a cabeça confirmando, a voz embargada demais para dizer qualquer coisa.

“Não quero que vá amanhã.” Linn disse por fim.

Sam pensou na viagem que faria com Rick, Maggie e Michonne. Iriam a Cynthiana em busca de armamento e munição, e no caminho passariam pelos arredores de Millersburg, o antigo lar de Sam, com a mesma intenção.

“Há muita munição na cabana de meu pai, até armas que não podíamos carregar quando voltamos à cidade e não tivemos oportunidade de resgatar nada depois de salvar as crianças do orfanato.” Sam explicou. “Pensamos em tentar ir lá uma vez, lembra?”

“Sim, mas era muito arriscado, muitos errantes.” Linn pontuou.

“Pelo tempo, acredito que tenhamos chances de conseguir chegar lá agora.” Sam se afastou de Linn. “Não iria se não precisasse.” Quis explicar.

“Sei disso.”

“Chase estará aqui com você.” Sam prometeu.

“Eu o assustei como o inferno, não foi?” Linn falou triste.

“Ele te ama, você sabe, não suportaria te perder... Ainda mais assim.”

“Kelly?” Linn suspirou triste.

“Kelly.” Sam confirmou.

Que pena que Linn encarava o amor de Chase como o de um amigo, Sam pensava. Quis lhe dizer que aquele homem a amava com uma paixão que mal conseguia esconder. Contudo, o entendimento que tinham chegado sobre Rick, e os sentimentos de cada uma por ele, seguia muito recente, frágil e sem rumo, para que lhe revelasse algo sobre Chase. Linn poderia achar que tinha segundas intenções ao lhe contar isso agora.

“Você precisa descansar.” Linn disse olhando para o rosto da amiga e esta meneou a cabeça em um sim cansado.

O rosto de Sam estava arranhado a altura do queixo, seu braço esquerdo estava com uma atadura nova e dois dedos da mão direita estavam fortemente enfaixados, com a gaze subindo até o pulso.

“Por que sempre nos machucamos?” Linn perguntou apoiando-se à parede, encolhendo as pernas, abraçando-as e encostando o queixo nos joelhos.

“Por que estamos vivas.” Sam deu de ombros.

Linn enxergou algo sobre Sam, que já tinha percebido antes, mas que só nesse instante pudera compreender com clareza.

Sam queria viver mais que tudo. Ela sempre lutaria para estar viva, principalmente enquanto tivesse alguém para cuidar. Sam não teria tentado se matar se Jay e Chad tivessem conseguido tirar sua inocência. Ela era uma sobrevivente.

Enxergar isso, mesmo que amiga tenha procurado amenizar a sua fraqueza, foi o ponto de partida para Linn entender que não podia ser menos do que a amiga. E isso a tornou muito mais do que disposta a manter sua promessa.