Dias Mortos

2: Fantasmas do Passado


Quando ela finalmente pareceu se cansar de “voar” pela sala, eu já estava batucando meus pés de maneira nervosa no chão sujo de madeira. Ela ajeitou o vestido branco e se sentou atrás de uma grande mesa de carvalho, seus olhos desbotados finalmente pareciam perceber minha presença ali.

- Muito bem, acho que você tem algumas perguntas -dizia enquanto segurava de forma elegante uma piteira. Notando melhor agora seu rosto, ela não parecia ter mais de trinta anos. Cabelos claros até a cintura em cachos parafusados e olhos de um azul tão claro que parecia quase brancos com um toque melancólico.

- Há sim, tenho muitas -nem sabia por onde começar, então tirei o meu cabelo do rosto e parti para a qual era de fato a que estava rodando minha cabeça nesse momento -Como sabia onde me encontrar?

- Isso é fácil, um caçador sempre sabe localizar outro -ela fechava os olhos em deleite enquanto sorria ao fumar, então soltou a fumaça e me levantou uma sobrancelha -Sabe que é uma caçadora certo?

- Sim, de alguma forma...eu sei -dizia tentando procurar na escuridão da minha cabeça como eu sabia disso, mas claro que não achei nada, apenas uma dor aguda -Você saberia me responder se me conhece?

Ela largou o cigarro e se aproximou, havia linhas em seu rosto jovial, mas o sorriso triste fez a esperança nem mesmo crescente se quebrar.

- Desculpe querida, só sabia que existia uma outra caçadora de sonhos fora de Egerver agora quem era, bem isso não fazia ideia.

Cerrei meus olhos, havia algo falso em sua pergunta, era um pouco vaga. Mesmo assim não queria focar muito no mesmo assunto, ela poderia se irritar e me deixar a mercê da sorte e isso não seria bom, dado o fato que eu nem mesmo sabia o que fazer aqui.

- Bem, já que me chamou acho que gostaria de falar algo importante comigo.

- Sim...sim, muito por sinal. Mas acho que sua mente deve estar devastada, viver em um sanatório não me parece muito bom -ela soltou um riso assombroso -Vá descansar, terá tempo de colocar a cabeça em ordem, pode ficar aqui em minha casa, apenas eu e Julian é muito solitário.

Por um momento a encarei, havia algo que me deixava deslocada em relação a sua presença, ela emanava ondas de loucura, felicidade e tristeza. Agora mesmo, resmungava baixo, enquanto deixava os olhos vagarem para a vista do horizonte já negro atrás da janela suja.

- Uma última coisa, essa cidade...as pessoas daqui são como nós?

- Algumas, caçadores de sonhos estão um pouco em extinção. Egerver é a última cidade, depois daqui querida Kizzy, existe apenas o submundo, lar dos seres das trevas. Somos um portal, por isso não confie em ninguém, nem mesmo em mim.

Seus olhos se escurecerem por um tempo, então sabendo que não iria chegar a lugar nenhum a deixei sozinha. Olhei para o corredor pouco iluminado, sem saber direito para onde seguir, então Julian apareceu trazendo consigo em mãos um lampião de gás, que fazia seu rosto parecer apenas uma mancha escura.

- Já tem um quarto para você -o segui, olhando de relance para as paredes que projetavam sombras disformes e sorri para Julian, mesmo que ele não conseguisse ver.

- Não tem medo de viver aqui?

- As vezes, mas não ouso dizer isso a Penélope ela me tirou dos ruas então, acho que prefiro ficar aqui do que lá fora.

Seu modo de falar me deixava impressionada, ele era tão pequeno e seu rosto passava inocência, mas nos olhos havia uma sabedoria intensa.

- O que você é afinal? -perguntei enquanto ela me dava passagem para um quarto mal iluminado.

- Ilusionista, posso criar seus maiores pesadelos e deixa-la gritando dias a fil.

Fiz uma careta e ele riu como uma criança deveria fazer, então me deixou sozinha. O quarto era frio e cheirava a mofo, pelas poucas velas em candelabros prateados eu conseguia ver um papel de parede verde desgastado e moveis antigos de aparência quebradiça. Havia uma cama enorme, toda branca e nas paredes mais recortes sobre o espetáculo de um teatro, datado de muito tempo atrás.

Caminhei até a janela, puxando a cortina de veludo para trás e encarando Egerver mergulhada na escuridão. Era impressionante seu silêncio quase musical. Um sino badalou três vezes, fazendo um arrepio passar sobre meu corpo. Eu sentia que essa cidade poderia me ajudar a desvendar muitas coisas, seja ela quais for.

A primeira vez que estive no sanatório eu estava gritando, depois disso fui sedada e me jogaram junto com outros pacientes. Enquanto eles dormiam, eu ficava de olhos arregalados para o teto, então me sentia sendo esticada em duas e lá estava eu.

Em um campo de flores, pescando com pessoas que não conheço ou até mesmo matando passarinhos a filhotes de cachorro. Era horrível e sempre quando eu voltava, vomitava de lado e depois caia na escuridão que eram meus próprios sonhos, na verdade eu nunca sonhei.

Eu roubava as lembranças dos outros, pois não tinha as minhas.

Eu não ficava assustada quando isso acontecia, eu sabia me virar muito bem nessas situações, mas os enfermeiros sádicos me achava uma boa cobaia. Eles me davam banhos gélidos nos tempos frios, as vezes até mesmo me batiam, sessões e mais sessões de choque, certa vez por pouco não me fizeram uma lobotomia.

Nunca soube quando tempo fiquei presa naquela prisão de tortura, se eu perguntava alguma coisa aos médicos eles me mandavam calar a boca. Foram tempos terríveis, e é horrível saber que essas são minhas únicas lembranças para ocupar minha mente, em momentos de solidão.

Eu precisava de respostas rápidos, ou acabaria enlouquecendo de vez.