Dias Mortos

1: A cidade do fim do mundo


Não fazia ideia de quantos dias estava andando, mesmo assim não me sentia cansada. Em toda aquela imensidão enevoada, meus passos sobre as pedras gastas eram os únicos sons audíveis que tive durante toda minha viagem, agora ouvir outros sons era desconcertante.

Parei encarando a placa escondida por limbo e musgo, apesar da aparência velha e as letras estarem apagadas, consegui ler muito bem o que estava escrito nela “Bem vindos a Egerver, a cidade do fim do mundo” meu destino final.

Reparei melhor nos muros de pedra enegrecido que cercava toda a cidadezinha, era um muro alto que parecia estar ali desde do inicio dos tempos, com rachaduras e erva daninha cheia de espinhos fazendo uma dança contorcida. A névoa pairava sobre ele, como uma cortina protetora.

Para ser bem franca, não fazia ideia do porque eu estava aqui. Desde que me lembro, eu vivia trancafiada em um sanatório de aparência duvidosa em um lugar muito distante, é fato de que estava planejando fugir, mas nem fui necessário já que me liberaram. Tudo por causa de uma carta, com o remetente de Madame Penélope.

Agora estava aqui, sem saber direito o que fazer. Passei pelos portões de ferro enferrujado, sentindo os olhos das gárgulas perfurarem minhas costas, enquanto adentrava para dentro da cidade de aparência decadente. As ruas eram de pedras sinuosas, cheias de lanternas a gás nas esquinas, com suas chamas tremendo na brisa fria do entardecer pálido, que cobria o céu de Egerver em uma cor púrpura em tanto doentio.

Todas as casas pareciam iguais para mim, dois andares de madeira escura com persianas brancas e telhado cor de azeviche. As poucas pessoas que estavam na rua, me encararam com olhos curiosos, formulando fofocas sobre o que uma desconhecida fazia nessas bandas tão remotas. Dei ombros, fingindo estar sozinha na rua comprida e cheia de pequenas barracas vendendo desde a amuletos a frascos com bebidas fluorescentes.

Eu sabia que essa cidade assim como eu não era normal, na carta da Madame Penélope mesmo havia uma breve referência de “ Gostaria que se juntasse a nós, convivendo junto com seu povo de sangue especial” eu era uma caçadora de sonhos, posso entrar no subconsciente de quem estiver perto ou capturar almas que não deveriam vagar pela terra.

Agora porque sou assim eu não sei, na verdade minha cabeça é enegrecida. Me lembro apenas de sempre viver naquele buraco frio de pessoas assustadoras, mas Madame. Penélope parecia saber desse “meu dom” e não me considerava maluca, então eu tinha algumas perguntas para fazer a ela, estava ansiosa para encontrar sua casa.

- Olá, poderia me dizer onde Madame. Penélope vive?-perguntei a um senhor de olhos distantes e aparência idosa. Ele me encarou um tempo, com um sorriso tremulo e sem dentes.

- Hó sim, a dama de branco -ele disse coçando a cabeça, como se estranhando sua própria voz -Ela é estranha...

- Na mansão decadente no fim da rua -cortou uma mulher energética, enquanto dava um olhar ansioso ao senhor ao seu lado -Ele está ficando gaga, não se pode fazer nada quando a morte se aproxima.

Apenas acenti em silêncio, enquanto seguia para o fim da rua. As barracas ficaram para trás por completo, agora tudo que se via era árvores secas e uma monstruosa mansão vitoriana, parecendo estar caindo aos pedaços. Passei pela grama, que parecia querer me sugar para baixo e subi até a varanda, batendo na porta horas e mais horas, até alguém resolver abrir.

- Sim?-perguntou uma voz fraca, tentei espiar o rosto da pessoa, mas tudo que via pelo vão da porta era escuridão.

- Sou Kizzy, acho que Madame Penélope gostaria de falar comigo.

A porta se abriu com um rangido dolorido, entrei estranhando a completa escuridão, os únicos pontos de luz era a fraca luz do sol, que se espalhava por uma sala em completa desordem. Rodei sobre meus pés, querendo achar a pessoa que me atendeu e fiz uma careta ao ver um garotinho.

- Siga-me, Madame Penélope gosta de ficar no andar de cima -ele era pequeno, talvez tivesse seus 10 anos. O segui por uma escada de madeira toda quebrada que rangia sobre nosso peso, ao chegar no corredor me impressionei com todas as foto antigas e fantasias grudadas na parede, junto a velas vermelhas.

- Então, o que ela faz? -perguntei a garotinho, enquanto sua sombra silenciosa me guiava pelos corredores, que mais pareciam um labirinto sombreado.

- Antigamente era uma cantora de ópera sensacional! Mas agora, apenas canta o que pode no circo da cidade.

- Tem um circo na cidade?

- Há sim, o melhor! Tem de tudo lá dentro, coisas vivas...coisas mortas -ele se virou, com seus olhos grandes e marrons cheios de emoção contida -É um lugar bizarro.

Sorrio de forma descontraída, enquanto ele abria uma porta de aparência pesada.

- Parece muito bom.

A sala era grande e ainda mais desorganizada. Cheia de prateleira com objetos estranhos, fotos nas paredes, tocos de vela pelo chão, pilhas perigosas de livros ficavam perto da janela....era uma mistura de biblioteca e sala de musica, com um grande e envelhecido piano de cauda perto de um sofá gasto.

- Madame Penélope -gritou o garotinho rodando pela sala -Madame, Kizzy está aqui! -foi o silêncio funesto da casa que lhe respondeu, ele se voltou para mim dando de ombros -Ela sempre some as vezes, nunca sei por onde se mete, acho que sua cabeça...

- Julian o que disse sobre fofocas -a voz parecia vir das paredes, era suave e rouca ao mesmo tempo, bela e triste devo confirmar. O garoto Julian apenas acenou e ficou em silêncio -Hó Kizzy, fico feliz em saber que conseguiu chegar.

- Sim, agradeço pelo passaporte de saída daquele lugar -comentei, tentando saber onde ela estava. Então algo caiu na minha frente, saltei para trás com o que seria Madame Penélope amarrada em uma fita de cetim, enquanto rodava pelo ar.

- Foi uma honra, sabe precisamos de você aqui. Temos muitas coisas para resolver , coisas perigosas e proféticas.

Fiz uma careta, enquanto ela sorria loucamente para mim. Madame Penélope não parecia muito bem da cabeça, olhei para Julian que deu de ombros e saiu da sala rapidamente, voltei meus olhos para mulher cantarolando e flutuando no ar. Bem, ela era minha única chance de entender quem sou e porque estou aqui.