Com a golada de água fria em sua garganta, Will suspirou pela décima vez naquela noite. Alguma coisa parecia que estava o seguindo nas trevas.

Não era paranóia. Aquele, ou aquela, era bastante furtivo, notou que temia isso, estava lá: dentre as sombras acabrunhadas, e entre os sons dos animais noturnos. Chutou esse temor. Era só a desconfiança de um aprendiz.

Uma coruja piava em algum lugar, os grilos também faziam seus sons deixando aquela sensação de que experimentava o desconhecido.

Sentia-se úmido, e o abafado colar à sua pele era ruim. Já os pernilongos insistentes começava devorá-lo aos poucos: mesmo que puxasse o longo capuz, não impedia-os de sugar o seu sangue.

Aguçando os sentidos, acabou ouvindo um rio, talvez, um riacho, mas o que estivesse o perseguindo acabou ficando para trás. Foi o que queria acreditar. Esgueirou-se abaixado, seu campo de visão bem ajustado viu um cervo de forte galhadas bebendo água, o animal levantou a cabeça assustado, moveu as orelhas para os lados, fungou o ar, e saltitou para bem longe.

Sentiu uma pontadinha incômoda em sua mão, o ferimento parecia que sagrava novamente. Lembrando de que havia algumas ervas perdidas pela região, pensou em achá-las, entretanto, estava muito escuro, e o cansaço do dia começou a pesar.

Havia esquecido do seu quite de medicamentos. Erro imperdoável.

Escondeu-se entre inúmeras vegetações rasteiras, fechou brevemente os olhos, logo, adormecendo sem perceber.

Will... Will, menino, vamos, já está tardando.

A voz disse em seu ouvido, e uma mão acariciou seus fios puxando carinhosamente as bochechas. Sentiu uma respiração muito próximo.

Quem era?

Abrindo os olhos lentamente tentou ajustar a visão embaçada, imaginava que fosse Halt despertando-o, riu amargo, Halt nunca fizera algo assim. Ele era sempre sério, imperturbável.

Pássaros cantavam em uma sinfonia barulhenta, mas a única visão que teve foi do focinho de Puxão em sua frente que mexia a boca inquieto, e seus olhos inteligentes; pareciam um pedido mudo que despertasse logo, o mais breve possível.

As fortes patas moveram, ora para direita, ora para esquerda. Will estava com as costas doloridas pela posição desconfortável; havia algumas formigas que passeavam pelo seu braço.

À princípio, não lembrava do motivo desta empreitada, nem do como Puxão estava ali. Até que cenas do dia anterior povoaram sua mente, o animal teve a audácia de sair de seu esconderijo, e procurar pelo seu dono.

Sem se importar com suas dores, ele montou em Puxão, às presas seguiu o caminho da suas lembranças, não havia muitos vestígios, a garoa bagunçou a trilha.

Odiou-se por ter adormecido tão fácil. Puxão em seu trote marcado subiu um amontoado de pedras. Algumas menores, outros nem tanto. O pequeno cavalo com seus músculos fortes fazia um excelente trabalho. Conseguia ver uma clareira desbarrancada, o solo macio fez com que Puxão afunda-se as patas naquela lama toda, tampando os olhos com a claridade chata, sentia-se mais cansado e com tanta fome.

Assim, do alto daquele lugar, o jovem aprendiz via uma casinha bem distante de tudo, no meio do nada.

Poderia Halt ter passado pela pequena choupana?

Parecia que ninguém a habitava, pois, não houve entrada em nenhum dos lados. Ficou observando-a por algum tempo, ninguém entrou na casa e de lá saiu. Will estava com uma sensação de que havia alguém lhe observando.

Todavia, não via ninguém. Nem uma trilha. Nem uma centelha de um perseguidor.

Estava numa árvore bem alta atento à movimentação, com folhagens grandes, ocultava-o por completo, o arco no ombro direito. Ainda sentia dor que perturbava-o. Desviando um pouco a atenção, ele foi retirando com cuidado o pano encharcado com sangue.

Um embrulho formou-se em seu estômago vazio. O ferimento não estava bonito; suas bordas estavam quentes, avermelhados, estavam inflamando cada vez mais.

Halt havia lhe mostrado como cuidar de algo assim em uma de suas aulas.

"Uma rápida pausa é necessária à nossa recuperação". Halt dissera uma vez. Precisava de Calêndulas; anti-inflamatórias, amarelas e redondas. Se infecciona-se não poderia usar o arco.

Com cansaço ele desceu da árvore e caminhou à procura delas, até que parou, quando uma flecha passou voando bem próximo a orelha esquerda. A mesma fincou com força em uma árvore próxima, não estava mais montado em Puxão, caiu se protegendo de seu agressor fantasma, controlava a respiração como conseguiu, seu com o arco e flecha à postos, não rogou de tolo mais uma vez.

A dor fazia sua cabeça ficar lenta.

Isso é algum jogo às ordens dele...ele está me cansando, ao ponto deu baixar minha guarda. Will seu tolo!”

Pensou. Seguidamente tentou escutar algum som; algum passo, ou um respirar mais rápido. Podia saber que o “estranho” estava à leste, sentia sua presença bem forte agora, que seus poucos pelos gelaram-se com a ideia de ter um homem em seu enlaço. Instinto de caçador.

Era alguém deveras experiente, cuidadoso e meticuloso. Levantou-se espiando-o, poderia correr para o outro lado, e conseguir uma visão melhor, se fosse rápido o bastante, talvez, o outro arqueiro não acertá-lo-ia.

Não escutou nada, não conseguia, apenas sentiu uma aura dominante. À chegada do meio-dia forçou Will a pensar numa saída rápida, mentalmente ele marcou os pontos que ficavam fora da visão do perseguidor; havia quatro árvores opostas a ele, teria que usar o sol como um grande aliado.

"A natureza tem suas armas, apenas seja inteligente Will", como queria que Halt estivesse ao seu lado naquele momento. Com sua presença cuidadosa, seus olhares, mesmo que em pouco tempo, seu orgulho. Will lambeu os lábios ressecados, lutando com as emoções que instalava-se em segundos em cada membro do seu corpo. Estava sozinho. Com medo mortal da morte. Sem a âncora que ensinou ainda do pouco do mundo dos adultos, e acima de tudo, do trabalho do Arqueiro do Rei.

Correndo até uma das árvores mais próximas escutou com precisão o arco sendo esticado e o movimento do corpo pesado do homem. O menino escalou como nunca antes, seus movimentos rápidos e jovem facilitou a empreitada, seus músculos poucos desenvolvido, e seu corpo magro fez com que salta-se como um verdadeira "macaco", ele acharia graça em outros momentos, mas agora, seu coração saltava mais que seus movimentos.

Antes que o estranho tivesse oportunidade, o jovem arqueiro acabou vendo a silhueta maciça do homem. Ele estava abaixo, atrás, tentando ao máximo se camuflar naquele emaranhado de mato, o menino abriu os olhos em espanto.

Era um arqueiro!

Um arqueiro como ele. Usava as mesmas roupas, por isso que era tão bom em se esconder. Will puxou o arco gemendo baixinho pela dor, tão rápido quanto sua subida, sua flecha dançou até o estranho, que, admirado, não teve muita ação, a não ser correr. O estranho sumiu de suas vistas, mas uma forte dor foi deixada para trás.

Will olhou para baixo, mais assustado ainda, quando percebeu que havia uma ponta de uma flecha em sua perna.

Seu dia estava sendo realmente muito produtivo em encontrar Halt.