As pessoas são o que são, por natureza, mas eu não. Eu não nasci com um ser revoltado no estômago, que se esforçava para sair todos os dias. Ser esse que resolveu despertar quando fiz onze anos. Até esse fatídico dia eu era uma criança relativamente comum, mas logo que acordei na manhã do meu aniversário, ao colocar a mão na maçaneta do quarto, a porta irrompeu em chamas.

O fogo consumiu toda a casa, mas não o meu quarto. O aposento se manteve intacto. Esperei por horas até que homens estranhos – que mais tarde descobri serem bombeiros – vieram me buscar. Me pegaram pela mão, e me ajudaram a descer a escada destruída, falando sobre como eu fora o único sobrevivente do incêndio misterioso.

Sobreviventes são pessoas sortudas, por continuarem vivas quando podiam morrer, mas não me sentia sortudo. Minha mãe e meu pai morreram naquele dia, por minha causa. Como dizem, castigo de Deus vem a cavalo. E veio, com certeza. A partir daquele dia, passei a viver com uma mulher assustadora, e ganhei um novo nome. Antes eu era Credence Walsh, e passei a ser Credence Barebone. A mulher que cuidava de mim se chamava Mary Lou Barebone, e tinha vários outros “filhos”. Era vista como uma boa pessoa pela comunidade local, por cuidar de tantas crianças órfãs, mas eu não pensava assim.

Mary Lou obrigava as crianças a passarem o dia inteiro fazendo tarefas domésticas, a maioria era até mais jovem do que eu, enquanto saia para fazer sei lá o quê. Lutava para controlar o fogo que parecia habitar as pontas dos meus dedos, não queria machucar os garotos e garotas que apesar da maldade massacrante de Mary Lou, formavam uma família, e me receberam de braços abertos.

Tinha um garoto, Abrahan, que tomou conta de mim quando cheguei. Me protegeu de Mary Lou quando eu não varria rápido ou bem o bastante. Ah, se eu soubesse o preço que Abrahan pagou por me encobrir, não lhe pediria ajuda. Mary Lou descontava sua frustração batendo com cinto em quem desobedecia.

Eu não sabia, mas Abrahan tinha várias marcas nas costas, vindas das surras constantes. Fui descobrir quando tinha quinze anos, Abrahan, dezessete. Ele me chamou no meio da noite, acendeu uma vela, colocou na minha mão e contou uma história sobre ir embora no dia seguinte e eu precisar saber de alguma coisa antes que fosse tarde.

Tirou a camisa, expondo para mim a pele marcada das cintadas. Então entendi a conexão entre me mostrar as feridas e contar que estava indo embora. Com Abrahan fora, nada impediria Mary Lou de me bater (quem sabe até compensar o que Abrahan apanhou por mim). Eu estava só.

—Eu volto para te visitar – prometeu quando seu tio Graves chegou, logo depois do café da manhã.

—Não – respondi, mastigando o pão. - Quero que me leve junto.

—Não posso, amigo. Pelo menos não agora.

Partiu, para nunca mais voltar. Embora, o tio Graves tenha aparecido por ali nos meses que se seguiram. Quis perguntar a ele sobre Abrahan, mas sempre que ele vinha, Mary Lou me dava dez tarefas, exigindo que ficassem prontas em meia hora, e então, ele sumia no ar. Se formou uma espécie de padrão, e quando Mary Lou descobriu, me apresentou aos Segundos Salemianos e seus panfletos.

Meus dias foram resumidos a horas sob o sol, sob a chuva, sob a neve, sob o que fosse, entregando os panfletos sobre o grupo liderado por ela. Como as pessoas geralmente me ignoravam, eu ficava sem ter o que fazer, e lia os folhetos, só para o tempo passar mais rápido e descobri que eu me enquadrava na definição deles de “inimigo mortal”, por causa de meu controle sobre o fogo.

Os tais bruxos inimigos mortais eram estranhos, mas, ao mesmo tempo, eram iguais. Iguais a mim. Estranhos como eu.

***

Godric's Hollow, 19 de novembro

Hã, oi. Desculpem por ter sumido, mas precisava mudar de ares com urgência. Sabem o que foi bom nesse tempo? Eu finalmente tenho uma pista! A perseguição começa a mostrar as caras por aqui, não sei se poderei escrever de novo em breve. Amo vocês e espero que possam me perdoar.

—-Bianca Avery.

Não há nada que precise de perdão, Bianca. Entendemos a situação. Cá entre nós, Lily e James estão muito ocupados preparando o casamento – você está na lista, não esquente a cabeça com isso – e me sento sozinho aqui. Estava pensando se… não quer companhia?

—-Remus J. Lupin

Ah, a Cidade Luz, tão romântica… mas também muito fria e solitária, às vezes, fora que não tenho nenhum amigo de verdade aqui. Diga a Lily e James que mando lembranças, felicitações e espero a chegada do meu convite, por favor. E considere esta carta um convite para juntar-se a mim o quanto antes.

—--Bianca Avery.

O coração de Remus deu um salto ao ler a carta. Ela estava bem, graças a Deus. Ele não suportaria perder outro amigo. Naquela mesma tarde, fez as malas e limpou o quarto na casa dos futuros sr. e sra. Potter. Despediu-se dos amigos, recebendo deles um sermão.

—Das duas últimas vezes em que nos despedimos de alguém, Sirius e Bianca se perderam por aí. Não se perca Remus – disse James.

—Quero todos os Marotos no meu casamento – falou Lily, abraçando-o.

—Sim, senhora – ele sorriu, deixando a casa. - Mando notícias assim que chegar.

Quando a porta se fechou às suas costas, Remus conjurou seu patrono, um lobo e lhe ordenou: “Vá até Bianca Avery e me traga seu endereço”. O animal prateado obedeceu, e Remus se sentou no meio-fio para esperá-lo, pensando. Na época em que se conheceram, Bianca escrevia todos os planos e estratégias em um bloco de notas, sentada na sala, as pernas cruzadas, uma mecha da franja fora do coque desleixado.

Ele passava o tempo admirando-a, ouvindo as engrenagens de sua mente a trabalhar, bolando planos para salvar Sirius. Claro que, quando suas ideias falhavam, ele se dedicava a secar suas lágrimas, se entregando por completo ao abraço, aos afagos nos cabelos.

Ouvi-la chorando por Sirius por um lado era bom, pois ela extravasava uma frustração que ele compartilhava, mas com os meses, ao carinho juntou-se um pouco de dó, porque nem James e Remus, os amigos mais antigos de Black acreditavam que ele estivesse vivo, e no entanto, ela seguia sua busca.

Aos poucos, Remus percebeu um rascunho de paixão morando em seu peito, mas como Bianca continuava obcecada por Sirius, ele decidiu dar o tempo que fosse preciso, apoiá-la e lutar para reprimir o amor pela namorada do seu melhor amigo.

O lobo retornou e lhe mostrou a imagem do apartamento de Bianca. Remus fechou os olhos e realizou a aparatação, chegando ao hall dela.

—Mi casa és su casa – Bianca o saudou com um beijo no rosto. - Com fome? Quer algo para beber?

—Água, por favor.

Ela o guiou para a cozinha, onde apanhou dois copos e uma garrafa gelada. Enquanto bebia a refrescante água francesa, ele observava a decoração, simples, mas muito pessoal. Cada parede tinha uma cena diferente grafitada, mas todas eram a cara de Bianca.

—Gostou? - a dona da casa juntou-se a ele. - Olhe o teto.

Remus olhou, e viu a si mesmo, Lily, James, um jovem casal desconhecido e Sirius grafitados, sorrindo levemente para quem olhava.

—Adoro seu teto. Quem são? - ele apontou as figuras que não conhecia.

—Minha irmã e o namorado – respondeu, com saudade.

—Devia escrever para eles, contar que está bem.

—É, eu devia, mas eles pensam que morri.

—A reportagem sobre Serafina – lembrou ele, colocando o copo no balcão. Aquilo fora há tanto tempo, mas ainda lhes trazia problemas.

—A própria, mas, quem sabe, um dia, eu crie coragem e mande uma carta.

—É – ele disse, absorto em sua fala – um dia, quem sabe?

Remus dormiu no sofá, depois de Bianca prometer que reformaria um quarto para ele. Não conseguiu adormecer, pois sua mente estava presa à conversa de horas antes. Bianca precisava criar coragem para escrever à irmã, e ele precisava criar coragem para abrir o jogo com ela, antes que fosse tarde. Antes que a obsessão voltasse e ele a perdesse de novo.

Remus quis dar um soco em seu próprio rosto. Ela não era um objeto dele para que a perdesse. Seu lobo queria tê-la como namorada. Queria protegê-la daquele mundo horrível, da incapacitante dor que parecia rodeá-la, da saudade que era seu único combustível.

Ele vira grande parte do mundo, seus pais o levaram em várias viagens em busca de uma cura para a licantropia. Por mais que não tenham encontrado nada, ele se divertira um pouco. Bianca também vira o mundo, passeando por lazer.

Bianca não dormiu, se debatia na cama, pensando em seu hóspede – ela esperava que ele ficasse por mais tempo, se tornasse um colega de apartamento. Lupin fora um bom amigo quando ela passava cada segundo de seus dias planejando como reaver Sirius, e agora ele estava ali, logo ali, no sofá dela, enquanto Sirius estava preso em só Deus sabe onde.

Não pararia de procurá-lo, mas talvez, quem sabe, ele não ocupasse mais o lugar em seu coração. Talvez fosse hora de liberar espaço para outra pessoa. Alguém mais acessível.