Juliana

16 de agosto de 1979, Londres.

Newt e eu passamos as próximas semanas grudados, cuidando de suas criaturas ou simplesmente fazendo nada. Bebemos muito café e chá e rimos como nunca.

Um dia, em sua mala, sob a árvore da toca do pelúcio, com xícaras de chá fumegantes, falando de qualquer coisa, Newt me fez uma pergunta:

—Se eu te pedisse e fosse para salvar a minha vida, você casaria comigo?

Havia muitas respostas para essa pergunta. Sim, yes, oui, si, claro, óbvio, com certeza, vamos nessa e por que não me disse antes?, eram apenas algumas delas, mas a que saiu foi:

—Isso é um pedido?

Ele baixou a cabeça, encarando os botões dourados do casaco que eu achava particularmente atraente. Pareceu chateado por cinco segundos mas logo sorriu, como se tivesse tomado uma injeção de coragem.

—Casa comigo. De verdade.

—Sério?

—Com certeza – ele sorriu mais.

Assenti e nos beijamos como se não houvesse amanhã. Sua língua na minha língua

—Não vamos contar a ninguém ainda – pedi, seu rosto ainda perto do meu.

—Como queira.

Meu noivo e eu guardamos segredo por um tempo, até decidirmos contar aos meus pais, no exato dia em que Serafina Picquery declarou Bianca morta. Meu pai tinha em si um pouco da ideologia puro sangue, muito comum nas famílias do Sagrados 28, mas se controlava para não transparecer o tempo todo.

—Scamander? O mestiço? - indagou, erguendo a sobrancelha.

Para ele, Newt nada mais era do que “O mestiço, mencionado sempre com desprezo. Bufei. Robert nunca foi compreensivo em relação a minhas amizades em Hogwarts, já que muitos dos meus colegas eram mestiços ou nascidos trouxas, enquanto que na Sonserina, Bianca tinha contato com bruxos de sangue mais puro. Apesar de que, se fosse casar, ela se casaria com um traidor de sangue.

Brinquei com meu anel, trocando-o de dedo sem parar. Era uma joia de família, com vários diamantes e um A gravado no interior.

—Mas eu o amo.

Ele rolou os olhos, grunhindo.

—Como se casamento fosse sobre amor – rosnou. - Casamento é sobre dinheiro, e os Scamander não têm nenhum. Como espera viver com alguém assim?

—Vivendo. Newt tem um emprego, eu também posso ter.

—Que emprego, se passou a vida toda às minhas custas? Você não sabe trabalhar com nada. E fora isso, não permitirei que manche o nome da família.

—Dane-se o nome. Me casarei por amor, não por nome, ou por dinheiro.

Ele sorriu com escárnio, como dizendo: “É o que veremos”. Tinha certeza de minha escolha, me casaria com Newt com ou sem aprovação de meu pai. Fui para o quarto, havia algumas coisas que queria levar, sabendo que não havia nada programado dali para frente. Peguei roupas e objetos valiosos. Levei horas para garantir que estava satisfeita com o que tinha, e adormeci profundamente na poltrona.

***

Despertei de madrugada, graças a Merlim. Newt estava pendurado na janela, batendo com os dedos no vidro, sem som. Abri, dando passagem a ele e ao vento quente. Ajudei-o a entrar, abraçando-o e gritando de felicidade. A discussão com Robert me desgastou ao extremo, e estar com ele, apenas no mesmo cômodo, me trazia de volta ao estado normal. Ele usava camiseta branca e jeans, mochila no ombro e os cabelos meio bagunçados, com o sorrisinho carinhoso de sempre.

—Onde você estava? - perguntei, bem baixo.

—Pensei em te chamar para jantar depois que contasse aos seus pais, mas aí os gritos começaram… vamos embora? Não há tempo a perder.

Passei o braço pela mochila, e descemos pela árvore do quintal. Newt não quis aparatar – muito barulhento -, mas precisávamos ir logo, antes que meu pai viesse atrás de mim para me arrastar de volta ao quarto e arranjar um casamento com qualquer babaca.

Sem hesitar, Newt sacou a varinha e destrancou o carro cuja chave estava sobre o porta-luvas. Assumi a direção e saí a toda velocidade, cortando outros carros e evitando os sinais vermelhos, enquanto ele me dava instruções para ir à casa de seus pais.

—Uh-oh – fez Newt – competidor logo atrás.

—Competidor? - questionei, sem desacelerar ou tirar os olhos da estrada.

—Por aqui, os trouxas disputam corridas de rua. Parece muito com o que estamos fazendo. Devem achar que somos participantes.

—O que fazemos agora?

—Corre!

Acelerei mais ainda, perto do limite do automóvel. Cedo ou tarde, sairíamos da rota da corrida. A estrada para a área rural onde os pais de Newt moravam ficava há pouco mais de um quilômetro e o rachador continuava na nossa cola. Tive vontade de descer e lançar um Obliviate no motorista, mas Newt não deixou.

Segui firme por uma hora até ver a propriedade dos Scamander. Puxei o freio, os pneus cantaram.

—Terra firme! - disse Newt, ajoelhando-se na grama.

Ri de seu exagero, procurando por quem nos seguira, acho que ele se perdeu em alguma esquina. Agora que estávamos seguros, podia pensar racionalmente. Tínhamos em nossa posse um automóvel roubado. Por instinto, desiludi o carro e me apressei para a varanda.

Newt destrancou a porta com três giros de chave. A casa era um sobrado charmoso, feito de madeira, paredes brancas e azuis, móveis antigos, a escada que levava ao andar dos quartos, estantes cheias de livros e a cozinha simples.

—Seus pais não estão dormindo? - murmurei.

—Estão, então… por que não fazemos o café da manhã? - propôs.

Fizemos uma refeição sem mágica. Passamos café, esquentamos o leite e pusemos a mesa.

—Newton Ártemis Fido Scamander! Eu pensei que fosse jantar fora, e não dormir fora! - disse uma mulher, gritando com as mãos na cintura. - Oh, quem é você, querida? - olhou para mim, com doçura.

—Sou Juliana Avery, senhora – respondi, ao passo que Newt encarava o azulejo.

—Hã… Julie, esta é minha mãe. Mamãe, esta é Juliana, minha namorada.

Noiva, corrigi mentalmente, mas continuei quieta. Eles não sabiam que casaríamos. A senhora Scamander era negra, de olhos acastanhados, cabelos cacheados comportados, maçãs do rosto altas. Newt herdara seus olhos e jeito protetor.

—Fizemos o café – ele gesticulou para a mesa.

—Obrigada, filho. Seu pai está descendo, então sentem-se.

Coloquei chá para mim e Newt e o senhor Scamander se juntou a nós.

—Bom dia – falou, bocejando.

—Bom dia – respondeu a sra. Scamander. - O seu filho passou a noite fora, em Londres!

—Você nem perguntou o que eu fui fazer – Newt a interrompeu, calmo. - Contamos agora?

Assenti. Quanto menos brigas de família causássemos, melhor. Coloquei a mão sobre a dele e suspirei, os ombros chacoalhando um pouquinho.

—Vão se casar! - disse a sra. Scamander, maravilhada. - Oh meu Deus, Newt! Por que não contou antes?

—Não deu tempo – ele protestou, rindo. - Pai, esta é Juliana, minha noiva – ele sorriu com a última palavra e eu retribui.

—Encantado – beijou minha mão.

Meus sogros foram as pessoas mais adoráveis do mundo comigo. Contaram várias histórias que fizeram Newt corar e eu falei sobre como lutamos por suas criaturas mágicas. O dia foi ótimo, passou devagar, um efeito do campo, dissera sra. Scamander. Uma vez em casa, Newt deixou alguns animais passearem fora da maleta, contra a vontade de seu pai.

—É a primeira vez que saem desde que voltei!

—Está bem, mas mantenha o ornitorrinco cleptomaníaco fora de casa.

Abaixei-me para apanhar o pelúcio, esvaziando a bolsa em que ele guardava objetos valiosos. Surrupiara uma colher brilhante e outros talheres.

—Hey, você não pode pegar as coisas da casa assim – ralhei, mas ele mirou-me com grandes olhos meigos, amolecendo ainda mais meu coração de manteiga. - Não me olhe assim. Sabe que… ah, está bem. Só não roube mais nada.

Ele moveu a cabeça, parecia concordar, então deixei-o ir. Fui para o lago com Newt, matar um tempo, mas nosso descanso a sós durou pouco, uma garota da nossa idade saiu dentre as árvores, mascando chilete e me encarando. Meus músculos travaram por um segundo quando a vi. Ela era ligeiramente assustadora, com suas roupas pretas manchadas e botas sujas.

—E aí, caras? - disse, estourando uma bola de chilete cor-de-rosa entre os lábios com um poc!— Meu nome é Thalia. Estava no carro de trás ontem à noite. Fizeram uma ótima corrida, pena que largaram tudo no final. Esqueceram de calibrar o GPS ou o quê? Sabiam que podiam ter três mil libras nas mãos a essa hora?

Nós não estávamos na competição— rosnei.

—Então o que diabos faziam na rota?

—Cruzou o nosso caminho – disse Newt, balançando os ombros – então o que podíamos fazer?

Thalia também deu de ombros. Pelo visto, as três mil libras não estavam em seu bolso agora.

—Podiam trabalhar comigo. Pilotam muito bem – disse em elogio, mas indiferente.

—Obrigada, mas não estamos interessados.

—Uma pena, novamente. Com uma corrida ou duas, poderiam regularizar o carro que roubaram sem ninguém dar falta.

—Como você sabe?

—Rastreei a placa. É normal quando alguém que supostamente está competindo, desaparece.

—Quanto quer para manter a boca calada? - quanto quer que fosse, não tínhamos a grana.

—Não vou dizer nada, prometo, mas precisam dar um jeito nesse carro, né?

Precisávamos, e como.

—Conseguiremos competindo, certo? - Newt ergueu a sobrancelha.

—Perfeitamente, mas não precisam se manter dentro, se não quiserem. Se forem tão bons assim o tempo todo, em uma semana, ganham o que precisam.

—Supondo que tenhamos o dinheiro. O que devemos fazer? Onde devemos ir?

—Vão descobrir com o tempo no mundo noturno da cidade. Topam? - ela abriu um sorrisinho, mas não pareceu mais confiável.

Encarei Newt. Aquela era a única forma de resolver sem – muita – mágica e sem ser pega pelo ministério – isso considerando que meu pai podia me declarar desaparecida a qualquer momento. Vamos ter de viver como trouxas por um tempo. Combinamos que a encontraríamos na rave que ela frequentava essa noite. Thalia desapareceu, tão discreta quanto antes. Desabei nos braços de Newt, as pernas bambas.

—Pode ser uma boa ideia. Compramos o carro, corremos o bastante para pagar o casamento e depois desaparecemos. Que tal? - ele fez carinho em meus cabelos.

—É uma opção, considerando que estamos quebrados. Quer dizer, tenho algumas joias para vender, mas não vai durar para sempre.

—Daremos um jeito – ele beijou o topo de minha cabeça.

Fomos cuidar dos Occamis e bezerros aquáticos apaixonados. Cada vez que descíamos à mala, Newt me contava uma história nova sobre suas criaturas, as pesquisas que fazia e aventuras que viveu.

—Sem dúvida, a maior delas foi quando embarquei com o propósito de estudar habitats de pufosos. Não estudei nada, mas voltei mudado. Aprendi a lidar com seres humanos, fiz amigos, e amei.

—Onde foi isso? Qual era seu destino? - perguntei, estendendo a mão com ração a um bezerrinho.

—Nova York – ele disse, com ar distante e sonhador. - Não trocaria o que vivemos por nada.

Nem eu. Acho que fomos os únicos que tiraram algo de bom disso, mas nunca diria em voz alta. Não quando Bianca e Sirius se perderam e perderam um ao outro.

***

A rave de Thalia estava abarrotada. Ela vestia as mesmas roupas, em um banco alto no bar, com um copo meio vazio entre os dedos. Quando nos viu, chamou-nos com a mão.

—E aí? Topam?

Topamos. Os primeiros dias foram os mais difíceis, já que precisávamos ganhar o primeiro lugar e ser invisíveis à polícia, mas depois de dois meses, o carro já estava quitado e o casamento, pago. A Sociedade Britânica de Criaturas Mágicas cedeu uma chácara para a cerimônia, então, eu cuidava do casamento e Newt escrevia trabalhos para serem publicados, e à noite, corríamos. Eu era a piloto e ele, o mecânico.

Thalia se aposentou, disse que seu tempo nas pistas noturnas acabara. Eu gostava de ser piloto. Reencontrei algo que perdi quando terminei Hogwarts: a sensação de velocidade. Uma vassoura e um carro não eram tão diferentes, afinal.

Enfim chegou o “Grande Dia”. Robert e Michelle recusaram o convite, então tentei não pensar muito neles. Thalia se ofereceu para me levar ao altar e ser minha dama de honra. Aceitei, sem pensar em como estava sozinha no dia mais feliz da minha vida.

O vestido coube perfeitamente, os sapatos de grife – cortesia de Thalia – calçados, o véu ajeitado sobre a cabeça, o buquê à minha espera, e eu, estava pronta. Dei o braço para Thalia e peguei as flores.

O caminho de alguns metros até o altar foi a melhor viagem que já fiz, porque meu destino era Newt. Ele me olhava e sorria. Thalia colocou minha mão sobre a dele e foi para seu lugar. O juíz de paz disse seu texto, chegou a hora dos votos.

—Não sei o que dizer – Newt admitiu, fazendo os convidados rirem. - Mas quem é que sabe, não é? Você nem me conhecia e ajudou a resolver meu problema, e assim mudou o jeito como eu te via. A garota bonita e popular se tornou minha amiga, e aos poucos, o amor da minha vida.

Era a minha vez.

—Cada sorriso, cada brilho nos seus olhos que surge quando fala de seus animais, quando fica envergonhado ao falar com estranhos… esses pequenos detalhes fizeram com que eu te amasse, cada vez mais e mais.

Ele beijou meu dedo ao passar a aliança. Estávamos oficialmente casados.