Se o dia tinha bastante sol, possuía ainda mais pernilongos e menos paciência. Bem, pelo menos para a menina de sete anos que havia sido acordada na madrugada de um sábado para mais um daqueles programas de pai e filha, com intenção de "formar caráter".

Lety adorava pescar, mas naquele sábado em específico, só queria ficar na cama comendo biscoitos e relendo alguns gibis do Batman, para deleite de seu melhor amigo Thomas e desespero de sua mãe, que considerava o super herói muito violento.

Mesmo assim, se forçou a levantar da cama, tomar banho, passar litros de seu melhor repelente e vestir shorts com camiseta branca e um colete por cima. Olhando-se no espelho, aprovou o visual. Apesar da contrariedade em ir ao passeio, adorava aquela roupa de aventureira.

Cerca de duas horas depois, seu Herasmo estava guiando o barco e lety preparando as iscas. Ao chegar num lugar apropriado lançaram as varas e não tiveram que esperar muito: um peixe estava puxando fortemente o anzol da menina, fazendo ela se desequilibrar e cair um pouco para frente.

–Lety, querida! Seu pai veio imediatamente e na ânsia de ajudar, acabou ele mesmo caindo na água, deixando o peixe escapar e provocando risadas na garota.

–Hihihihihihi!

–Lety, não ria da desgraça alheia! Um acidentezinho pode acontecer a qualquer um!

Ela riu mais ainda e tentou puxá-lo. O efeito foi o contrário: ela também caiu no rio e agora seu Herasmo ria enquanto ela fazia uma pequena careta.

–Ei! Muito nobre, gentil e cavalheiro de sua parte, papai. Alfinetou brincalhona, ao que ele piscou em cumplicidade.

Com um estalo, ela despertou no sonho. Estava em seu quarto, agora recém decorado com a cor azul. Que horas eram? Ela olhou no relógio e viu que passava um pouco de quatro da manhã. Esfregou os olhos com um sorriso, que logo desvaneceu ao sentir o aparelho novo, colocado no dia anterior, enquanto as boas lembranças trazidas pelo sonho eram aos poucos ofuscadas pelas dolorosas recordações do que acabara de passar. Tinha escolhido Fernando, mas então chegou Aldo e...

Espere um pouco...

Ela fechou os olhos, não sabia o porque, mas de repente sentiu uma necessidade enorme de recuperar seu sonho, lembrar de cada detalhe.

Sim! Aquilo realmente aconteceu! O passeio, as risadas, sua cumplicidade com seu pai, o modo que se tratavam como iguais, o jeito como se admirou no espelho, imaginando-se uma personagem de filme...

Levantou-se num pulo e percorreu o quarto em busca de um espelho. Seu cabelo estava desgrenhado e ela usava um aparelho freio de burro horrível. Mas algo mudara. Algo em seus olhos estava ligeiramente diferente, mas ao mesmo tempo familiar. Sentiu uma empolgação por mais memórias. Foi até o baú e começou a revistá-lo. Encontrou um antigo álbum de fotografias, gasto e meio empoeirado. Abriu a primeira página. Parentes distantes, o casamento de seus pais, sua mãe grávida, ela quando era somente um bebe e... Lá estava! Aqueles olhos, estranhos, mas familiares porque eram seus. Possuíam o mesmo brilho e vitalidade dos que vira a pouco no espelho! Lety analisou a foto e ficou pensando no que aquele olhar significava, e por que trazia tantas memórias boas. Seria... determinação? ... alegria? ... não, era mais como uma mistura. Com espanto, ela percebeu que se tratava de autoestima, amor próprio e vontade se viver, coisa esta que ela não sentia a um tempo.

Largando o álbum, ela achou um CD. Tratava-se de um artista do qual ela gostara muito em sua adolescência, e por um motivo que não podia lembrar, parou de escutar. Junto dele, estava um walkman. Por curiosidade se ainda funcionava, pôs o CD e viu que sim, pois ouviu uma calma música assim que colocou os fones de ouvido.

Revirando mais a fundo, encontrou ainda peças teatrais, as quais ela adorava ler, mas tinha desistido de atuar, um jogo de xadrez que ganhara de Thomas e sua coleção de gibis que faziam a alegria deste.

–Menina, pare de ler estas coisas, olhe, tem até sangue! – Julieta apontava horrorizada para um quadrinho onde um personagem aparecia com um leve corte no braço.

Lety riu com a lembrança.

A música mudou de calma para agitada, fazendo ela se assustar ligeiramente, mas totalmente deliciada com a melodia que era febre anos atrás. Ela se levantou e começou a dançar desajeitadamente a coreografia que havia decorado há tanto tempo. Ela cantava junto, feliz, e só se deu conta do que estava acontecendo quando esbarrou em seu despertador: quatro e quarenta da manhã e ela, teoricamente uma adulta responsável e séria estava dançando em seu quarto como uma adolescente dos anos 90! Suas bochechas coraram e foi inevitável dar uma gargalhada.

Olhou em sua volta. O quarto antes rosa agora era azul.

Mas eu não estou satisfeita. Agora sei por que. Eu pensava que mudar a aparência de meu quarto mudaria como me sinto dentro dele e me deixaria mais adulta. Mas primeiro EU tinha que mudar. Aliás, mudar não. Voltar a ser eu mesma.

Ela voltou a se olhar no espelho, e teve raiva daquele aparelho. Num impulso, o retirou e jogou em um canto do quarto. Seus olhos estavam mais brilhantes do que nunca e ela se pegou se admirando.

Há quanto tempo eu não me olho no espelho e gosto do que vejo? - Ela se lembrou que quando criança, vestia um vestido longo e se achava uma princesa de contos de fadas - Quando foi que eu deixei de gostar de mim mesma, de ser gentil comigo e passei a me odiar?

Ela fechou os olhos por um momento. Dezenas de recordações lhe vieram à mente. Se viu como uma menina forte e corajosa, que se entristecia com o que as pessoas diziam, mas não se via como feia. Se via inteligente, talentosa e totalmente capaz de falar em público e atuar em uma peça na escola, como uma daquelas que guardava no baú.

–Ela é feia. Se for a personagem principal, as pessoas não vão gostar.

Uma lágrima caiu pela sua bochecha. Começou aí. Depois de se preparar imensamente para o papel, as palavras do diretor cortavam como lâmina seu coração.

A primeira humilhação. Se eu soubesse que haveriam tantas...

O bullying na escola, os vizinhos maldosos, as milhares de propagandas na TV que diziam como ela deveria parecer. Tudo isto foi aos poucos minando sua autoestima, roubando seus sonhos. Ela cantava e atuava tão bem! Por que teve de nascer naquele corpo?

Não! - Ela abriu os olhos encharcados de lágrimas - O meu corpo NÃO é o problema! Ele nunca foi. Eu não existo pra agradar ninguém! Eu existo para ser feliz! E eu de fato era feliz apesar de tudo. Até que... aquilo aconteceu.

Miguel foi quem acabou de vez com o que restava da autoestima dela. Depois dele, ela não era mais a mesma. Andava triste, não queria comer, não saia do quarto. Começou a achar que tinha que se sujeitar a vontade de todos, pois não valia nada e se outros lhe estendessem a mão seria um ato de muita bondade. Por causa dele, perdeu o respeito por si própria e também o respeito do pai, que apesar de já ser protetor antes, a via como igual. Depois como superprotetor, perderam a cumplicidade, deixaram de sair juntos, de se divertir.

Agora que sou adulta, ainda permito que ele me trate de um jeito que não fazia nem quando eu era criança.

Lety enxugou as lágrimas e bateu com a palma da mão na mesa.

Mas agora chega! Nunca mais eu vou ser usada! Nunca mais vou ser objeto de alguém!– Ela se encarou novamente no espelho e sorriu, revelando dentes perfeitos - Agora eu sou uma pessoa, uma mulher, e vou fazer eles me respeitarem.

E então veio a vontade de mudar. Por dentro, ela sentia que já havia mudado e tinha a necessidade de manter a mudança. Por fora, não era necessidade, mas um desejo consciente de refletir e sua essência, aquela menina que fora aprisionada por muito tempo e agora tinha a chance de amadurecer, ficar realmente adulta e respeitar a si mesma e os próprios sentimentos.