Dead Island

Baú de sonhos


“Uma vez eu conheci todos os contos. É hora de voltar no tempo e reaprendê-los”

Quando criança, Joohyun era apaixonada por contos de fadas. Ela gostava de imaginar uma terra distante, mágica, onde o meio não era importante porque no final, tudo acabaria bem.

Quando seus contos favoritos já não eram suficientes, ela criou seu próprio mundo mágico. Ainda hoje, Joohyun se pegava pensando que talvez esse tenha sido o período mais feliz de sua vida. Em sua mente, ela era livre para brincar na terra, para correr descalça pelos jardins. Era abraçada fortemente pelos pais e sempre faziam as refeições juntos, tinham tempo para conversar. Seu pai a colocava para dormir e sua mãe sempre lhe contava uma história diferente até que caísse no sono. Ela era importante e verdadeiramente amada, e sabia amar.

Sozinha em seu quarto, a pequena Joohyun mantinha os olhos fechados e sorria enquanto era livre em sua imaginação.

Mas as pessoas crescem e crescer implica em abandonar as fantasias e se preparar para o mundo real. E Joohyun foi guardando-as, uma a uma, em seu pequeno baú de sonhos. Adolescente, ela deixou que suas novas responsabilidades trancassem esse baú, afinal ela sequer tinha tempo para sonhos. Adulta, ela nem sequer sabe onde está a chave. Os sonhos estão lá, em algum lugar. Mas ela não sabe como libertá-los e tornou-se incapaz de sonhar.

***

Encarava as flores de sakura em seu closet, sem nenhuma expressão em seu rosto. Deveria estar planejando sua viagem com o agora noivo, uma vez que Sehun não teria tempo e a senhora Oh insistira que esse deveria ser o primeiro planejamento dela como uma esposa. Deixou o corpo pender para trás, caindo sobre a cama com um baque surdo. Tudo o que ela queria era não precisar ir nessa viagem.

O ambiente do “casal” sempre fora ruim, mas parecia ter piorado significativamente desde o jantar de noivado. Havia algo deixando Sehun extremamente aborrecido e Joohyun simplesmente não queria estar perto de ninguém. Ela não tinha nada contra Sehun, o conhecia desde a infância e sabia que ele seria um bom marido e que eles eram um casal modelo. Mas naquele momento Joohyun podia sentir claramente as mudanças se formando em sua vida e pela primeira vez em anos, medo e certa angústia se instalaram em seu peito. Sentimentos que sempre estiveram lá, ocultos pelo “vazio”, mas que agora apareciam com tanta frequência que a sufocavam. Apenas os sentimentos que ela conhecia, aqueles que faziam mal. Aqueles que ela queria que não existissem.

Esticou-se sobre a cama para alcançar o celular na cômoda, e suspirou ao desbloquear a tela mais uma vez e não encontrar notificações de Seulgi. Havia lhe contado sobre o jantar na mesma noite em que ele havia ocorrido, assim que voltou para o conforto de seu quarto, e não obtivera resposta da garota desde então. Já fazia uma semana.

E Joohyun odiava admitir, mas precisava da presença de Seulgi mais do que nunca. Queria que ela lhe dissesse que jamais permitiria que se casasse, que a faria conhecer o mundo. Queria que ela lhe abraçasse e lhe dissesse que tudo ficaria bem e que seus pais não poderiam controlá-la, que a levaria embora. Queria ouvir mais uma vez tudo o que já ouvira em diversas outras ocasiões, mesmo sabendo que, apesar de sentir a sinceridade transbordando de Seulgi a cada promessa feita, elas jamais seriam cumpridas. Queria apenas as palavras de conforto que apenas Seulgi lhe dirigia, desde que podia se lembrar.

Batidas pesadas foram ouvidas na porta do quarto, que foi aberta antes que Joohyun pudesse sequer se sentar apropriadamente. Uma Seulgi de rosto fumegante entrou e bateu a porta atrás de si, encarando Joohyun com um olhar mortal. Joohyun sentou-se, mas mostrou-se incapaz de devolver o olhar intenso de Seulgi. Por algum motivo, sentia a vergonha tomando conta de si e seu rosto esquentando, então manteve a cabeça baixa, até sentir Seulgi erguendo seu queixo, obrigando-a a sustentar seu olhar inquisidor. Analisou o rosto corado por alguns segundos antes de fechar os olhos, tentando acalmar-se, e tirar a mão do queixo de Joohyun. Caminhou alguns passos até a cortina negra e abriu uma fresta, olhando o jardim bem cuidado tocado pelos raios de luz natural antes de voltar o olhar para o lustre ornamentado pendendo do teto.

— Estava esperando pelo menos uma ligação sua para me explicar... Porque. - Quebrou o silêncio, ainda olhando para cima.

— Você já sabe. - Joohyun voltou a encarar o adesivo de sakura, lembrando-se do dia em que Seulgi puxou-a bruscamente para dentro da loja de decorações e a fizera comprar aquele adesivo que estivera admirando por dias, ajudando-a a colá-lo cuidadosamente, centímetro por centímetro para garantir que não houvessem bolhas.

— Eu não entendo. Eu realmente não entendo. - Seulgi explodiu, encarando-a novamente. - Tudo o que eu lhe disse, você simplesmente ignorou?

Joohyun suspirou.

— O que você vai fazer, Seulgi? Fugir comigo?

— É sempre uma opção. Eu poderia levar você e Wendy comigo.

Seulgi corou ao perceber a sobrancelha levantada de Joohyun.

— Acho que descobri o nome da dona do seu sorriso.

— É, talvez. Não vem ao caso. O que importa é, porque Joohyun? É a sua vida, você tem o direito de gritar “não” se você quiser!

— E o que eu faria depois de gritar?

— Qualquer coisa que você quiser!

— Não é assustador o conceito de liberdade? “O que eu quiser...” E o que eu quero fazer, Seulgi? Eu não sei o que fazer. Pra que me preocupar em criar coisas para fazer quando é mais confortável simplesmente seguir o caminho que já prepararam para mim?

— Porque o mais fácil nem sempre é o certo, Joohyun. - Seulgi andou até a cama, sentando-se ao lado de Joohyun, porém mantendo o olhar baixo. - Você pode não saber o que fazer agora, mas eu te dou certeza: em algum momento da sua vida, vai existir algo que você vai desejar desesperadamente, e eu tenho medo de que quando isso aconteça, você esteja presa à essa teia que a sua família está tecendo ao seu redor, e aí sim sem possibilidade de fuga. Você não merece isso. Sehun também não. É assustador pensar em seguir sua vida contando apenas com você mesma para tomar as decisões, é verdade. Mas não é muito mais assustador pensar que você está sendo controlada no gigantesco jogo de xadrez que é essa sociedade de Seoul? E pior, nós não somos peças valiosas no tabuleiro. Somos apenas peões de troca.

Joohyun encarava Seulgi com uma expressão vazia.

— Parece verdadeiro quando você afirma que eu sentirei algo bom algum dia, que eu verdadeiramente desejarei algo em algum dia. Mas Seulgi, eu sou uma pessoa diferente de você.

— O que quer dizer?

Joohyun respirou fundo, sua vontade em receber consolo da amiga sendo substituída pela vontade de encerrar logo aquela conversa.

— Você se deixa cativar e você cativa. Você é tão brilhante quanto os raios de sol que tanto ama. Eu sou o oposto. Oh, eu sei que atraio olhares das pessoas. Mas o meu interior não é nada atraente, eu posso garantir. Eu atraio olhares de longe, apenas isso. Eu afasto qualquer um que se atreva a chegar perto. - Seulgi nada disse. Levantou-se e puxou-a pela mão, assustando Joohyun. - O que está fazendo, Kang?

— Te levando para dar uma volta. As pessoas lá fora não mordem, e nem você.

Seulgi puxou Joohyun para fora do quarto e fechou a porta. Olhou-a enquanto ainda segurava sua mão.

— Vai me seguir por vontade própria ou vou ter que carregar você por todo o caminho?

— Pra onde vamos? – Joohyun parecia assustada.

Seulgi sorriu.

— Eu só quero levar você pra ver o mundo. Isso inclui todas as coisas simples que ele tem a oferecer, Joohyun. - Apertou sua mão. - Vamos?

***

— Seulgi...

— Sim?

— Quantos anos você acha que eu tenho?

Joohyun controlou a vontade de atirar seu celular na cabeça da loira, que segurava o riso, enquanto crianças passavam correndo e gritando, por vezes arrastando os pais pelas mãos. Tudo o que Joohyun queria era voltar para casa e cobrir-se até a cabeça, tinha certeza de que aqueles gritos agudos ressoariam em seus ouvidos por pelo menos três dias. É claro que um parque de diversões seria barulhento, mas Joohyun jamais imaginou o quanto.

— Mentais? Deve ter uns 80.

Seulgi finalmente respondeu, apenas rindo do olhar ameaçador que Joohyun lhe lançou.

— Porque me trouxe aqui?

— Há algum lugar melhor para se divertir?

Joohyun revirou os olhos. Seulgi podia ser tão óbvia e tapada às vezes que se perguntava de que buraco surgia aquela loira que falava coisas coerentes e agia de forma madura.

— Como sua namorada se sente em saber que está saindo com outra garota? - Perguntou. Se desviasse o foco, talvez pudesse enrolar Seulgi e sair dali.

— Eu não estou saindo com outra garota, estou saindo com você.

Joohyun ergueu a sobrancelha.

— Eu deveria levar isso como uma ofensa?

Sorry Baechu, mas você é um homem pra mim. - Seulgi deu de ombros.

— Ah, claro. Isso significa que não gosta de mim? - Joohyun revirou os olhos. - E desde quando fala inglês?

Seulgi corou.

— Cale a boca e vamos entrar logo.

***

Naquele dia, Joohyun teve a certeza de que mataria Kang Seulgi. Não bastavam as crianças correndo de um lado para o outro, os esbarrões constantes e os gritos ensurdecedores. Não, Seulgi tinha que fazer questão de arrastá-la a cada um dos brinquedos daquele parque, desde a montanha russa que a deixara sem ar de tanto medo até o carrossel, que a deixara sem fala de tanta vergonha. Agora Seulgi havia deixado-a sozinha porque precisava falar com Wendy e não queria que Joohyun ouvisse, o que a fez revirar os olhos e sentar-se em um dos bancos espalhados pelo parque para esperá-la.

Joohyun observava o movimento, distraída. Já estava escurecendo e a quantidade de crianças no lugar diminuíra consideravelmente, haviam mais casais andando timidamente de mãos dadas. Observou cada casal em seu campo de visão, como se comportavam e sobretudo... Como pareciam felizes. Suspirou.

Desviou o olhar, surpreendendo-se ao notar uma criança sentada ao seu lado, com pernas sobre o banco e abraçando os joelhos. O pequeno corpo tremia, o garotinho chorava. Joohyun travou. O que deveria fazer?

Esticou o braço e tocou no pequeno, tremendo. Viu que ele se assustou e recolheu a mão rapidamente. O menininho ergueu o rosto vermelho, encarando Joohyun com olhos curiosos, que logo se tornaram admirados.

— Noona, você é linda! - Exclamou, a voz rouca pelo choro. - Nunca vi uma moça bonita como você.

— Obrigada... - Joohyun sorriu levemente, mas o sorriso deu lugar a uma expressão preocupada. - Por quê está chorando?

A sombra de tristeza voltou ao rosto da criança, que aparentava não ter mais de seis ou sete anos.

— Eu me perdi do meu hyung... Ele veio resolver umas coisas dele e disse que me traria ao parque quando terminasse. Ele me trouxe e brincou comigo, mas eu queria brincar de esconde-esconde, então saí correndo dele. Mas agora eu não consigo mais encontrá-lo. - Os olhos do menininho encheram-se de água, e Joohyun timidamente estendeu a mão para secá-las.

— Não chore, eu vou te ajudar a encontrá-lo, tudo bem?

— Sério, noona? - Um sorriso feliz surgiu no pequeno rosto e Joohyun só pôde sorrir de volta.

— Sim. Faz muito tempo que se perdeu dele?

— Não sei... - Abaixou a cabeça, envergonhado.

— Hm... Eu vou comprar um algodão-doce pra você e a gente procura o seu hyung então, tudo bem? Podemos perguntar para os seguranças, ele também deve estar te procurando.

Joohyun levantou-se e segurou o menininho pela mão, levando-o à barraca de algodão-doce mais próxima. O pequeno agradeceu, contente, e começou a comer o doce com apenas uma mão, nunca deixando a de Joohyun.

— Noona. Será que se eu dormir e sonhar com o hyung, ele aparece?

Joohyun o olhou, confusa.

— Como isso poderia acontecer?

— Não sei. A minha noona me diz que todos os sonhos podem se tornar realidade, se colocarmos fé o suficiente neles. Poderia funcionar.

Joohyun riu do raciocínio infantil.

— Acho que sua noona não está muito certa. Alguns sonhos não podem se concretizar.

— Aah... Mas podemos vivê-los, mesmo que sejam só sonhos, certo?

Joohyun olhou para baixo.

— Preste atenção ao seu redor, caso o seu hyung apareça. Estamos quase na entrada do parque.

— Você não me respondeu, noona.

O garotinho apertou a mão de Joohyun, que suspirou e parou, ajoelhando-se à sua frente.

— Talvez sim. Mas pequeno, eu acredito que chegue a hora em que todos deixamos de sonhar... Quando crescemos.

— Porque, noona? Você não sonha?

— Acho que não consigo.

Joohyun riu fraco. O garotinho abriu a boca para responder, mas não pronunciou nada ao ouvir o grito que cortou o parque.

— YOOGEUN!

Um homem apareceu correndo e abaixou-se ao lado deles, abraçando o garotinho com desespero. O pequeno retribuiu o abraço apertado.

— Hyung, a gente tava te procurando!

O homem se afastou e Joohyun percebeu a incrível semelhança entre os dois. Poderiam facilmente passar por pai e filho. Joohyun tomou consciência de sua posição e sentiu-se estranha ali ajoelhada, com o parque praticamente todo olhando na direção deles, e levantou-se.

— EU estava te procurando! Nunca mais faça isso! Já lhe disse centenas de vezes para nunca soltar a minha mão quando estivermos na rua!

— Desculpe. - O pequeno abaixou a cabeça. - A noona estava me ajudando a te procurar! - Olhou para Joohyun, sorrindo, só então o homem pareceu notar sua presença ali e levantou-se, envergonhado.

— Obrigado, eu nem tenho como te agradecer por ter cuidado dele. - Desviou o olhar para o algodão-doce na mão do garotinho e os cantos da boca, levantados em um sorriso, sujos do doce.

— Eu não fiz nada demais. - Joohyun desviou o olhar, constrangida.

— É claro que fez. Sabe Deus o que poderia ter acontecido com ele...

O homem abaixou-se e pegou o garotinho no colo, abraçando-o novamente.

— Não foi nada...

Antes que pudesse completar a frase, Joohyun foi interrompida por outro grito, dessa vez enfurecido.

— YAH, BAE JOOHYUN!

Quis se enterrar nesse momento. Como se já não tivessem chamado atenção o suficiente, Seulgi agora caminhava a passos rápidos e pesados até ela, claramente furiosa.

— Seulgi-ah... - Encolheu-se quando ela chegou perto.

— Que ideia maluca é essa de sumir? Eu só fui atender o telefone!

— Tem explicação...

— É bom que tenha mesmo!

O homem riu e a Joohyun lembrou-se de que tinha plateia, corando ainda mais intensamente.

— Aparentemente era uma criança perdida guiando a outra. - Colocou o irmãozinho no chão, segurando firme em sua mão, enquanto conferia o relógio. Arregalou os olhos. - Yoogeun, nós estamos terrivelmente atrasados.

O menininho também pareceu assustado.

— Noona vai nos matar.

— Sim, ela vai.

O homem voltou a pegá-lo no colo e começou a andar rapidamente, esquecendo-se até mesmo de despedir-se de Joohyun, mas Yoogeun o parou e pediu para descer. Chegando perto de Joohyun, puxou a barra de sua blusa para que ela se abaixasse e sussurrou algo em seu ouvido. Afastou-se e deixou um beijo na bochecha de Joohyun, e sorrindo correu em direção ao irmão, que apenas acenou. Joohyun fez um aceno de concordância com a cabeça para o pequeno Yoogeun.

Joohyun levantou-se, mantendo a mão sobre o local em que recebera o pequeno beijo. Seulgi a encarou, curiosa.

— E então? Quem eram e porque você sumiu?

— Eu cuidei de uma criança.

— Você?!

Joohyun sorriu fracamente e caminhou em direção à saída do parque, deixando uma Seulgi surpresa para trás.

— Ei, volte aqui! Você tem muito o que explicar!

Ouviu mesmo de longe a risada rouca de Joohyun, e sorriu.

***

Joohyun entrou no quarto novamente, arremessando-se exausta na cama. Francamente, ainda não entendia porque seguia as ideias de Seulgi. Deitou a cabeça sobre os braços e fechou os olhos, pretendendo dormir um pouco antes de ser chamada para o jantar. O brilho intenso no quarto escuro, no entanto, chamou sua atenção. Seu notebook estava aberto e pelo que podia ver da posição baixa em que se encontrava, era uma página específica. Levantou-se e dirigiu-se à escrivaninha. Duas tiras de papéis estavam ao lado do aparelho, Joohyun pegou-as e examinou-as. Eram passagens de avião. Seu estômago deu um solavanco. Eram para dali a apenas três dias. Voltou o olhar para a tela do notebook, observando lindas paisagens e um pequeno texto descritivo. Praia de Muchangpo.

Bom, pelo menos sua mãe se dera ao trabalho de deixá-la saber para onde ia. Deu uma risada seca, sem humor.

“A noiva deve planejar isso, Joohyun. Deixarei em suas mãos.”

É claro que sim.

A imagem do menininho do parque surgiu em sua mente, seu sorriso fofo e os olhos brilhantes pelas lágrimas que havia derramado antes que seu irmão os encontrasse.

“Noona, todos nós sonhamos. Minha irmã me diz que eu vou saber que cresci quando mudar meus sonhos para a vida real e não a fantasia, mas mantendo a essência deles. Eu não entendo o que ela quer dizer, mas ela diz que quando eu crescer eu vou entender... E que eu não vou querer entender as coisas de adultos agora. Ela deve estar certa, ela sempre está. Mas você é tão bonita e legal, seria muito triste se nunca realizasse um sonho seu. Me promete que vai encontrar um e ir atrás dele?”

Joohyun prometeu. E essa era uma promessa que ela estava disposta a cumprir. Aprenderia a sonhar novamente.

***