Passaram pelas passagens de neve lamacentas e pararam sobre um monte de pedras, olhando para a rocha escura do Colégio, e para suas muitas janelas, ainda uma ameaça em meio à desolação que se espalhava ao redor. A água tinha baixado quase por completo. Aqui e ali restavam algumas poças escuras, cobertas de destroços e escória; porém a maior parte do amplo círculo estava descoberta de novo, um lugar desolado cheio de limo, água congelante e pedras caídas, perfurado por buracos enegrecidos, e salpicado por casas destruídas. Na borda da vasilha despedaçada jaziam grandes montes de entulho, como o cascalho juntado por uma grande tempestade; além deles o vale nevado e irregular subia o longo precipício por entre os braços escuros das montanhas. Através da devastação eles viram cavaleiros avançando com cautela; vinham da encosta oeste e já se aproximavam do Colégio.

— Lá vêm Savos, Harrald e seus homens! — disse Faendal. — Vamos encontrá-los!

— Ande com cuidado! — disse Ralof. — Há lajes soltas que podem virar e jogá-lo dentro de algum poço, se não for cauteloso!

Seguiram pelo que restava da estrada que vinha da rampa do Colégio, andando devagar, pois as pedras estavam rachadas e cheias de neve escorregadia. Os cavaleiros, ao vê-los se aproximando, pararam sob a sombra da rocha e esperaram. Savos Aren avançou para encontrá-los.

— Bem, Paarthurnax e eu tivemos umas discussões interessantes, e fizemos alguns planos — disse ele —; e tivemos todos o mais que indispensável descanso. Agora precisamos continuar outra vez. Espero que vocês, companheiros, tenham descansado também, e recuperado as energias.

— Descansamos sim — disse Ralof. — Mas nossas discussões começaram e terminaram em fumaça. Nossa disposição em relação a Ancano está um pouco melhor do que estava.

— É mesmo? — disse Savos. — Bem, a minha não. Tenho agora uma última tarefa a desempenhar antes de partir: devo fazer uma visita de despedida a Ancano. Perigosa, e provavelmente inútil; mas isso precisa ser feito. Aqueles dentre vocês que quiserem podem me acompanhar - mas cuidado! E não façam gracejos! Agora não é hora para isso.

— Eu vou — disse Kharjo. — Quero vê-lo para saber se ele realmente se parece com você.

— E como você vai saber isso, Mestre Khajiit? — disse Savos. — Ancano poderia se parecer comigo aos seus olhos, se isso se adequasse aos propósitos dele em relação a você. E será que você já é sábio o suficiente para detectar todos os disfarces dele? Bem, talvez, vamos ver. Pode ser que ele se sinta acanhado em se expor diante de muitos olhos diferentes ao mesmo tempo. Mas ordenei a todos os gigantes que desaparecessem de vista, então talvez consigamos convencê-lo a aparecer.

— Qual é o perigo? — perguntou Ralof. — Ele vai atirar em nós, ou despejar fogo pelas janelas? Ou vai nos lançar um feitiço à distância?

— A última coisa é a mais provável, se você se dirigir à porta dele com o coração desprevenido — disse Savos. — Mas não há como saber o que ele fará, ou o que decidirá tentar. Não é seguro se aproximar de um animal selvagem acuado. E Ancano tem poderes que você nem imagina. Tomem cuidado com a voz dele!

Agora estavam ao pé do Colégio de Winterhold. Eram torres negras, e a rocha brilhava como se estivesse molhada. As muitas facetas da pedra tinham arestas perfeitas, como se tivessem sido recentemente cinzeladas. Algumas estrias e pequenas lascas acumuladas junto da base eram as únicas marcas da fúria dos gigantes. Lá longe, através das várias pontes em zigue-zague, havia um portão de barras de ferro, que dava para um grande poço de energia mágica na frente da majestosa estátua de Shalidor.

Essa era a única entrada para o castelo, mas várias janelas altas haviam sido cortadas em vãos fundos parede acima: lá no alto elas espiavam como pequenos olhos nas faces íngremes dos chifres.

Ao pé da rampa, Savos e o jarl desmontaram. — Vou subir — disse Savos. — Cresci neste Colégio, e conheço o perigo que estou correndo.

— E eu também vou subir — disse o jarl. — Estou mais corajoso, e já não temo perigo nenhum. Quero falar com o inimigo que me fez tanto mal. Meu irmão virá comigo, para cuidar que meus pés machucados não vacilem.

— Como quiser — disse Savos. — Vorstag me acompanhará. Que os outros esperem ao pé da escada, Vão ouvir e ver o suficiente, se houver alguma coisa para ouvir e ver.

— Não! — disse Kharjo. — Faendal e eu queremos uma vista mais próxima. Somos os únicos aqui que representamos nossos povos. Também vamos.

— Então venham! — disse Savos Aren.

Com isso subiu os degraus, com Harrald ao seu lado. Os soldados de Riften ficaram inquietos em seus cavalos, dos dois lados da rampa, lançando olhares sombrios para o grande castelo, temendo o que poderia acontecer a seu jarl. Ralof e Meeko se sentaram na frente do portão quando atravessaram as pontes, sentindo-se ao mesmo tempo desimportantes e desprotegidos.

— Meia milha de neve de lá até o portão! — murmurou Ralof. — Gostaria de poder me esgueirar de volta até a casa de guarda sem ser notado! Por que viemos? Não somos desejados.

Savos Aren parou diante do portão do Colégio de Winterhold e bateu nela com seu cajado. A grande esfera turquesa na ponta do cajado, embora parecesse não ter nenhum apoio, não se mexeu, mas luzes azuis dançaram em volta dela. O portão produziu um som agudo.

— Ancano, Ancano! — gritou ele, numa voz alta e imperiosa. — Ancano, apareça!

Por algum tempo não houve qualquer resposta. Finalmente a grande porta de madeira do Salão dos Elementos foi destrancada por trás do portão fechado, mas não se via ninguém através da abertura escura.

— Quem é? — perguntou uma voz. — O que deseja?

Harrald estremeceu. — Conheço essa voz — disse ele — e amaldiçôo o dia em que dei ouvidos a ela pela primeira vez.

— Vá e traga Ancano, já que você se transformou no lacaio dele, Estormo! — disse Savos Aren. — E não nos faça esperar!

A porta se fechou. Eles esperaram. De repente, uma outra voz falou, suave e melodiosa, seu próprio som um encantamento. As pessoas que escutavam aquela voz desavisadamente mal conseguiam depois reportar as palavras que tinham ouvido; e quando conseguiam titubeavam, pois pouca força restava nelas. A maior parte do que conseguiam lembrar era o prazer que sentiram ao ouvir a voz falando, e que tudo o que ela dissera parecera sábio e razoável, despertando neles um desejo de, mediante um acordo rápido, parecerem sábios também. Quando outras vozes falavam, pareciam por contraste rudes e grosseiras; e se se opusessem à voz o ódio se acendia no coração dos que estavam sob o efeito do encanto. Para alguns o encanto durava apenas enquanto a voz lhes falava, e quando ela se dirigia aos outros eles sorriam, como os homens fazem quando percebem o truque de um ilusionista diante do qual os outros ficam pasmos. Para muitos, apenas a voz era o suficiente para mantê-los cativos; mas para aqueles que eram seduzidos por ela o encantamento perdurava mesmo quando estava longe, e eles continuavam escutando a voz suave sussurrando e incitando-os. Mas ninguém ficava impassível; ninguém conseguia recusar seus pedidos e seus comandos sem um esforço de mente e de vontade, enquanto seu mestre tivesse controle dela.

— Então? — disse a voz, agora com gentileza. — Por que precisam perturbar meu descanso? Não vão me deixar em paz de modo algum, dia e noite? — O tom era de um coração gentil machucado por insultos imerecidos.

Eles ergueram os olhos, atônitos, pois não tinham ouvido ninguém se aproximar; e viram uma figura parada perto da grade, olhando para baixo: um velho, vestido num grande manto, cuja cor era difícil de definir, pois mudava se eles mexessem os olhos, ou se ele se movimentasse. O rosto era longo, com uma fronte alta; tinha olhos profundos e amarelos, difíceis de penetrar, embora a expressão que agora tinham fosse grave e benevolente, além de um pouco cansada. Os cabelos eram longos, lisos e platinados.

— Parecido, e ao mesmo tempo diferente — murmurou Kharjo.

— Vamos lá, agora — disse a voz suave. — Pelo menos dois de vocês eu conheço de nome. A Savos Aren conheço bem demais para ter muitas esperanças de que ele procure auxílio ou conselhos aqui. Mas você, Harrald, Jarl da Terra do Estado do Rift, declara-se através de seu nobre brasão, e ainda mais pelo belo semblante da Casa de Riften, ó, valoroso filho de Laila, a Triplamente Renomada! Por que não veio antes, e como amigo? Desejava muito vê-lo, poderosíssimo jarl das terras do sudeste, especialmente nestes últimos dias, para salvá-lo dos conselhos ignorantes e maldosos que o cercam, Já será tarde demais? Apesar dos danos que me foram causados, nos quais os homens de Riften, infelizmente, têm uma parcela de culpa, eu ainda o salvaria, e o livraria da ruína que se aproxima inevitavelmente, se você prosseguir por esta estrada que ora tomou. Na verdade, só eu posso ajudá-lo agora.

Harrald abriu a boca, como se fosse falar, mas não disse nada. Ergueu os olhos até o rosto de Ancano, que tinha seu olhar claro e solene inclinado sobre ele, e depois para Savos ao seu lado; parecia hesitar; Savos não fez sinal algum, mas ficou quieto como uma pedra, como alguém que espera pacientemente algum chamado que ainda não chegou. Os soldados se agitaram a princípio, murmurando exclamações de aprovação às palavras de Ancano; depois eles também ficaram em silêncio, como se estivessem sob o domínio de um encantamento. Tinham a impressão de que Savos nunca tinha dito palavras tão belas e adequadas ao seu senhor. Todas as suas conversas com Harrald pareciam agora rudes e arrogantes. Sobre seus corações pairava uma sombra, o medo de um grande perigo: o fim da Terra de Riften numa escuridão para a qual Savos os estivera conduzindo, enquanto Ancano estava ao lado de uma porta de saída, segurando-a semi-aberta de modo que um raio de luz entrava. Fez-se um silêncio pesado.

Foi Kharjo, o khajiit, quem o cortou subitamente. — As palavras desse mago estão de cabeça para baixo — rosnou ele, agarrando o cabo da maça. — Na língua de Winterhold, ajuda significa ruína, e salvar significa matar, isto está claro. Mas não viemos aqui para implorar nada.

— Paz! — disse Ancano, e por um momento fugaz sua voz ficou menos suave, e uma luz faiscou em seus olhos para depois desaparecer. — Não estou falando com você ainda, Kharjo, associado de Ri’saad — disse ele. — Sua terra fica longe daqui, e você tem pouco a ver com os problemas desta região. Mas não foi por vontade própria que você foi envolvido neles, então não vou culpá-lo pela parte que desempenhou - corajosa, não duvido. Mas, eu lhe peço, permita-me primeiro falar ao Jarl de Riften, meu vizinho, que já foi meu amigo. Que tem a dizer, Jarl Harrald? Vai ficar com minha paz e com toda a ajuda que meu conhecimento, fundado em longos anos, pode trazer? Faremos juntos nossos planos contra dias maléficos, e repararemos nossas ofensas com tamanha boa vontade que nossos estados poderão florescer com mais beleza do que nunca?

Harrald ainda não respondeu. Se lutava contra o ódio ou a dúvida ninguém sabia dizer. Saerlund falou.

— Irmão, escute-me! — disse ele. — Agora estamos sentindo o perigo sobre o qual fomos alertados. Será que avançamos para a vitória apenas para no fim pararmos estupefatos diante de um elfo mentiroso que tem mel em sua língua bifurcada? É dessa forma que um lobo aprisionado falaria aos cães de caça, se pudesse. Que ajuda pode ele lhe oferecer, na verdade? Tudo o que ele deseja é escapar desta situação. Mas o senhor vai negociar com esse perito em traição e assassinato? Lembre-se de nossa mãe nas fronteiras, e do túmulo de Unmid no Forte da Vigília da Névoa.

— Se estamos falando de línguas envenenadas, que dizer da sua, jovem serpente? — disse Ancano, e o clarão de seu ódio agora ficava visível aos olhos de todos. — Mas então, Saerlund, filho de Laila! — continuou ele com sua voz suave outra vez. — Cada homem com sua função. Seu valor está nas armas, e você aproveita de muita honra por meio dele. Mate aqueles que seu senhor apontar como inimigos, e fique satisfeito. Não se intrometa nas políticas que não consegue entender. Talvez, se chegar a ser jarl, você descubra que um jarl deve escolher seus amigos com cautela. A amizade de Ancano e o poder do Colégio não podem ser descartados sem mais nem menos, não importa quantos ressentimentos, verdadeiros ou imaginados, possam no fundo existir. Vocês venceram uma batalha e não uma guerra - e, mesmo assim, auxiliados por uma força com a qual não poderão contar outra vez. Pode ser que vocês encontrem os terríveis gigantes que vem de seus acampamentos em suas próprias portas em seguida: eles são intratáveis, insensatos e não nutrem amor por homens ou elfos. Mas, meu senhor de Riften, devo ser chamado de assassino porque homens valorosos caíram em batalha? Se você vai para a guerra desnecessariamente, pois eu não a desejava, então homens serão mortos. Mas se, baseado nisso, eu sou um assassino então toda a linha de Laila está manchada com assassinatos; pois eles lutaram em muitas guerras e atacaram muitos que os desafiaram. Apesar disso, com alguns eles fizeram as pazes depois, pelo menos para serem políticos. Eu digo, Jarl Harrald: vamos ter paz e amizade, você e eu? A decisão cabe a nós.

— Vamos ter paz — disse Harrald finalmente, com uma voz inarticulada e fazendo esforço. Vários soldados gritaram de alegria. Harrald ergueu a mão. — Sim, vamos ter paz — disse ele, agora numa voz clara —, teremos paz quando você e seus feitos tiverem perecido - e os feitos de seu devorador do tempo, a quem você nos entregaria. Você é um mentiroso, Ancano; um corruptor dos corações dos homens. Estende-me sua mão, e eu percebo apenas um dedo da garra de Skuldafn. Cruel e fria! Mesmo que sua guerra contra mim tivesse sido justa - e não foi, pois mesmo que você fosse dez vezes mais sábio não teria o direito de comandar a mim e aos meus para seus próprios lucros como desejava -, mesmo assim, que me diz de suas tochas em Pedra de Shor e das crianças que jazem mortas lá? E eles despedaçaram o corpo de Unmid diante dos portões do Forte da Vigília da Névoa, depois que ele estava morto. Quando você pender de uma forca em sua própria janela para a diversão de seus próprios corvos, eu ficarei em paz com você e o Colégio. O mesmo vale para a casa dos Law-Giver. Sou um filho menor de grandes antepassados, mas não preciso lamber seus pés. Vire-se em outra direção. Mas receio que sua voz tenha perdido o encanto.

Os soldados ergueram os olhos para Jarl Harrald como homens acordados de um sonho. A voz de seu senhor soou-lhes nos ouvidos rude como a de um velho corvo, após a música de Ancano. Mas Ancano se descontrolou por uns momentos, tomado de ira. Debruçou-se sobre a grade da sacada como se fosse golpear o jarl com o poder de fogo que surgiu em sua mão. Alguns tiveram a impressão súbita de estarem vendo uma serpente se enrolando e preparando o bote.

— Forcas e corvos! — chiou ele, e eles estremeceram diante da súbita mudança. — Criança louca! O que é a casa dos Law-Giver a não ser um estábulo com teto de palha, onde os bandidos bebem em meio ao mau cheiro, e seus fedelhos rolam pelo chão junto com os cachorros? Eles mesmos já escaparam da forca por muito tempo. Mas o laço vai se apertando, lento no início, sufocante e forte no fim. Enforque-se se quiser! — Agora sua voz mudava, conforme lentamente ele ia se controlando. — Não sei por que tenho paciência de conversar com você. Pois não preciso de você, nem de seu pequeno bando de ladrões e soldados fracos, que avançam com a mesma velocidade com que fogem, Harrald, Jarl de Riften. Há muito tempo lhe ofereci uma posição acima de seu mérito e de sua sabedoria. Acabo de oferecê-la de novo, de modo que aqueles a quem você desencaminha possam ver claramente a escolha da estrada. Você me oferece fanfarronadas e abuso. Que assim seja. Voltem para suas cabanas! Mas você, Savos Aren. Pelo menos por você eu lamento, e me solidarizo com sua vergonha. Como é possível agüentar uma companhia dessas? Pois você é orgulhoso, Savos - e não sem motivo, pois tem uma mente privilegiada e olhos que enxergam longe e fundo. Mesmo agora você se recusa a escutar meus conselhos?

Savos Aren estremeceu e levantou os olhos. — O que você tem a dizer que não foi dito em nosso último encontro? — perguntou ele. — Ou talvez você tenha coisas para desdizer.

Ancano fez uma pausa. — Desdizer? — meditou ele, como se estivesse intrigado. — Desdizer? Fiz um esforço para aconselhá-lo para seu próprio bem, mas você mal ouviu o que eu disse. É orgulhoso e não gosta de conselhos, tendo na verdade um estoque de sua boa sabedoria. Mas naquela ocasião você errou, eu acho, obstinadamente fazendo mau juízo de minhas intenções. Temo que na minha ansiedade em persuadi-lo eu tenha perdido a calma. E de fato me arrependo disso. Pois não tinha más intenções em relação a você; mesmo agora elas não existem, embora você retorne a mim em companhia dos violentos e dos ignorantes. Por que eu deveria? Então não somos ambos membros de uma ordem nobre e antiga e muito excelente de Tamriel? Nossa amizade seria benéfica a nós dois da mesma forma. Ainda poderíamos realizar muitas coisas juntos, para curar as desordens do mundo. Deixe que entendamos um ao outro, e nos livremos do pensamento de pessoas menores! Que eles aguardem nossas decisões! Para o bem de todos, estou disposto a corrigir o que já passou e recebê-lo. Está disposto a conversar comigo? Está disposto a entrar?

Tão grande foi o poder que Ancano exerceu em seu último esforço que nenhum dos ouvintes permaneceu impassível. Mas agora o encanto era inteiramente diferente. Eles ouviram o protesto educado de um rei gentil que tinha um ministro equivocado, mas muito amado. Mas estavam trancados fora, escutando através da porta palavras que não se destinavam a eles: crianças malcriadas ou servidores estúpidos que por acaso ouvem o discurso impalpável dos mais velhos, imaginando como ele os afetaria.

Aqueles dois eram feitos de matéria mais nobre: eram veneráveis e sábios. Era inevitável que fizessem uma aliança. Savos Aren subiria até a torre para discutir questões profundas, além da compreensão dos outros, nos altos cômodos do Colégio de Winterhold. A porta se fecharia, e eles seriam deixados fora, dispensados para aguardarem que algum trabalho ou punição lhes fosse designado. Até mesmo na mente de Harrald o pensamento tomou forma, como uma sombra de dúvida: “Ele vai nos trair; vai entrar – estaremos perdidos.”

Então Savos Aren soltou uma gargalhada. A fantasia se desvaneceu como uma baforada de fumaça.

— Ancano, Ancano! — disse Savos ainda rindo. — Ancano, você perdeu seu rumo na vida. Deveria ter sido o bobo do alto rei para ganhar seu pão, e chicotadas também, arremedando seus conselheiros. Ai de mim! — interrompeu-se ele, dominando a própria hilaridade. — Entendermo-nos um ao outro? Temo estar além de sua compreensão. Mas você, Ancano, eu entendo bem demais! Lembro-me mais claramente de seus argumentos e feitos do que você supõe. Quando o visitei pela última vez, você era o carcereiro de Skuldafn, e para lá eu deveria ser mandado. Não, o hóspede que escapou do telhado pensará duas vezes antes de retornar pela porta. Não, acho que não vou subir. Mas escute, Ancano, pela última vez! Não está disposto a descer? Winterhold acabou se mostrando menos forte do que sua esperança e sua imaginação a fizeram. O mesmo pode acontecer a outras coisas nas quais você ainda confia. Não seria bom deixá-la por um tempo? Recorrer a coisas novas, talvez? Pense bem, Ancano! Não está disposto a descer?

Uma sombra passou pelo rosto de Ancano, que em seguida ficou pálido como um cadáver, mesmo com sua pele amarelada de alto elfo. Antes que ele pudesse disfarçar, todos viram atrás da máscara a angústia mental causada pela dúvida: ao mesmo tempo odiava ficar e temia deixar seu refúgio. Por um segundo ele hesitou, e ninguém respirava. Depois falou, e sua voz estava esganiçada e fria. O orgulho e o ódio o estavam conquistando.

— Se eu vou descer? — zombou ele. — É comum que um homem desarmado desça para falar com ladrões do lado de fora? Posso ouvi-lo muito bem daqui. Não sou nenhum tolo, e não confio em você, Savos Aren. Eles não estão à vista na minha escada, mas eu sei onde os selvagens demônios da floresta estão à espreita, sob seu comando.

— Os traiçoeiros estão sempre desconfiados — respondeu Savos com uma voz cansada. — Mas você não deve temer por sua pele. Não desejo matá-lo, ou machucá-lo, como bem sabe, se realmente me entende. E tenho o poder de protegê-lo. Estou lhe dando uma última oportunidade. Pode deixar o Colégio de Winterhold, livre-se quiser.

— Isso soa bem — retrucou Ancano. — Bem à maneira de Savos Aren, o Arque-Mago: tão condescendente, tão gentil. Não duvido que você acharia o Colégio de Winterhold confortável, e minha partida conveniente. Afinal, aqui você chegou como um exilado, um viajante de Morrowind, e aqui cresceu e floresceu e ascendeu a arque-mago. Mas por que eu desejaria partir? E o que está querendo dizer com “livre”? Existem condições, eu presumo.

— Razões para partir você pode ver de suas janelas — respondeu Savos. — Outras ocorrerão à sua mente. Seus servidores estão destruídos e dispersos, seus vizinhos foram por você transformados em seus inimigos; e você enganou seu novo mestre, ou pelo menos tentou. Quando o olho dele se virar para cá, será o olho vermelho da ira, e seu fogo queimará o castelo em que cresci. Mas, quando eu digo “livre”, quero dizer “livre”: livre de prisão, ou corrente ou comando: para ir para onde quiser, até, até para Skuldafn, Ancano, se você desejar. Mas primeiro deverá me entregar o Colégio de Winterhold e seus grimórios. Serão garantias de sua conduta, para serem devolvidos mais tarde, se os merecer.

O rosto de Ancano ficou lívido, contorcido pela raiva, e uma luz vermelha se acendeu em seus olhos. Ele riu alucinado. — Mais tarde! — gritou ele, e sua voz se ergueu num grito. — Mais tarde! Sim, quando você também tiver as próprias Torres de Skuldafn, suponho eu; e as coroas de nove reis, e os grimórios de todos os magos, e tiver comprado para si um par de botas muito maiores do que estas que você está usando agora. Um plano modesto. Um plano em que meu auxílio quase não será necessário! Tenho outras coisas para fazer. Não seja tolo! Se quiser fazer um acordo comigo, enquanto tem a oportunidade, vá embora, e volte quando estiver sóbrio! E deixe em paz esses assassinos e essa pequena gentalha que se pendura em sua cauda! Passe um bom dia! — Virou-se e fechou a porta.

— Volte, Ancano! — disse Savos Aren numa voz imperiosa. Para a surpresa dos outros, Ancano se virou outra vez, e como se estivesse sendo arrastado contra a própria vontade voltou lentamente até a porta do Salão dos Elementos, agarrando-se a ela, respirando com dificuldade. Seu rosto estava contorcido e enrugado. Da mão farfalhava mágica de raios.

— Não lhe dei permissão para sair — disse Savos numa voz firme. — Ainda não terminei. Você se transformou num tolo, Ancano, e apesar disso causa pena. Poderia ainda ter desviado da loucura e do mal, e ter sido útil. Mas você escolhe ficar e ruminar as pontas de suas antigas tramas. Então fique! Mas eu o aviso, você não vai sair com facilidade outra vez. Não, a menos que as garras escuras do leste se estendam para apanhá-lo. Ancano! — gritou ele, e sua voz cresceu em poder e autoridade. — Olhe! Não sou Savos Aren, o Arque-Mago, que você traiu. Sou Savos Aren, da Ordem Psijic, que retornou da morte. Agora você não tem poder algum e eu o expulso da ordem e do Conselho de Winterhold. Eu tenho o Cajado de Magnus!

Ergueu a ponta do cajado para frente e falou lentamente, numa voz límpida e fria. — Ancano, seu poder está acabado. — Houve um estalido, e como se fossem teias de aranha, raios azulados saíram da esfera brilhante do cajado de Savos e penetraram por dentro da pele das mãos de Ancano, que formigaram. Quando Savos abaixou o cajado o elfo caiu de joelhos. — Vá! — disse Savos com um grito.

Ancano caiu para trás e foi embora se arrastando. Nesse momento, um objeto pesado e brilhante foi arremessado lá de cima. Bateu contra a grade de ferro, no instante em que Ancano se afastou dela e, passando perto da cabeça de Savos, chocou-se contra a pedra sob seus pés. A grade tiniu e se rompeu. A pedra se trincou lançando estilhaços em faíscas brilhantes. Mas o caco azulado com estranhas inscrições não sofreu nenhum dano: rolou escada abaixo, um tipo de caco de vidro, um pedaço irregular e pontiagudo, azulado e com um brilho próprio, mas reluzindo com um coração de fogo. No momento em que foi rolando em direção aos pés de Ralof, este o apanhou.

— Tratante assassino! — exclamou Saerlund.

Mas Savos ficou impassível. — Não, isso não foi jogado por Ancano — disse ele —; nem mesmo por sua ordem, eu acho. Veio de uma janela bem mais acima. Um tiro de despedida do Mestre Estormo, imagino eu, mas a pontaria dele é ruim.

— A pontaria foi ruim, talvez porque ele não conseguia se decidir sobre qual dos dois ele odiava mais, Ancano ou você — disse Vorstag.

— Pode ser — disse Savos Aren. — Aqueles dois têm pouco consolo na companhia um do outro: vão se estraçalhar com palavras. Mas a punição é justa. Se Estormo algum dia conseguir sair do Colégio vivo, isso já será mais do que ele merece. Aqui, meu rapaz, vou ficar com isso. Não pedi que você o pegasse — gritou ele, voltando-se de repente e vendo Ralof descendo a ponte, devagar, como se estivesse carregando um grande peso. Savos desceu para encontrá-lo e mais do que depressa tomou o vidro azul das mãos dele, embrulhando-o nas dobras de suas vestes. Vou cuidar disto — disse ele. — Não é algo, acredito eu, que Ancano escolheria para jogar fora.

— Mas ele pode ter outras coisas para jogar — disse Kharjo. — Se este é o fim do debate, vamos pelo menos sair do alcance de qualquer coisa que possa ser lançada de lá de cima!

— É o fim — disse Savos Aren. — Vamos.

Viraram as costas para as portas do Colégio de Winterhold, e desceram. Os soldados aclamaram o jarl com alegria, e felicitaram Savos. O encanto de Ancano estava quebrado: visto-o visto aparecer ao ser chamado, e ir embora se arrastando, dispensado.

— Bem, já está feito — disse Savos Aren. — Agora preciso encontrar Paarthurnax e lhe contar como foram as coisas.

— Certamente ele já adivinhou — disse Ralof. — Havia alguma probabilidade de isso terminar de alguma outra maneira?

— Probabilidade não havia — respondeu Savos —, embora a situação tenha estado por um fio. Mas eu tinha razões para tentar; algumas clementes, outras nem tanto. Primeiro, Ancano viu que o poder de sua voz estava diminuindo. Ele não pode ao mesmo tempo ser um tirano e um conselheiro. Quando o plano está maduro, deixa de ser segredo. Mas ele caiu na armadilha, e tentou lidar com suas vítimas uma a uma, enquanto as outras escutavam. Então dei a ele uma última escolha, uma escolha justa: renunciar tanto a Skuldafn quanto a seus planos particulares, e consertar a situação ajudando-nos em nossas necessidades. Ele sabe quais são elas, ninguém sabe melhor. Poderia ter prestado grandes serviços. Mas ele escolheu recusá-los e manter o poder do Colégio. Ele não está disposto a servir, apenas a comandar. Agora vive aterrorizado pela sombra de Skuldafn, e apesar disso ainda sonha em controlar a tempestade. Tolo infeliz! Será devorado, se o poder do leste estender seus braços até Winterhold. Não podemos destruir o Colégio de Winterhold de fora, mas Alduin - quem sabe o que ele pode fazer?

— E se Alduin não vencer? O que você fará com ele? — disse Ralof.

— Eu? Nada! — disse Savos Aren. — Não lhe farei nada. Não quero dominar as coisas. O que acontecerá com ele? Não sei dizer. Lamento que tanta coisa que foi boa agora apodreça na torre. Meus antigos amigos devem estar aprisionados nos calabouços. Mesmo assim, as coisas não saíram mal para nós. Estranhos são os caminhos da sorte! Com grande freqüência o ódio fere a si mesmo! Suponho que, mesmo que tivéssemos entrado, teríamos encontrado poucos tesouros no Colégio de Winterhold mais preciosos que a coisa que Língua de Cobra atirou contra nós.

Um grito agudo, subitamente interrompido, veio de uma janela aberta lá em cima no Salão dos Elementos.

— Parece que Ancano pensa da mesma forma — disse Savos. — Vamos deixá-los e vamos embora daqui imediatamente!

Voltaram-se então para as ruínas dos portões. Mal tinham passado sob o arco quando, das sombras das pedras empilhadas onde tinham ficado, Paarthurnax e doze gigantes, incluindo Malatar vieram subindo a largas passadas. Vorstag, Kharjo e Faendal olharam surpresos para eles.

— Aqui estão três de meus companheiros, Paarthurnax — disse Savos. — Já lhe falei deles, mas você não os tinha visto. — Disse o nome de todos.

O velho dragão olhou para eles longa e curiosamente, e falou com cada um individualmente. Por fim voltou-se para Faendal. – Drem yol lok, fahliil. Então você veio de lá da Cidade Errante de Falinesti até aqui, meu bom elfo? Antigamente costumava ser uma grande feykro, uma grande floresta!

— E ainda é — disse Faendal. — Mas não tão grande que possa fazer com que nós, que vivemos nela, fiquemos cansados de ver novas árvores. Eu realmente adoraria viajar pelas florestas que você já planou. Mal atravessei as bordas das florestas de Skyrim, e não senti desejo algum de lhe dar as costas.

Os olhos de Paarthurnax brilharam de satisfação. — Espero que consiga realizar seu desejo, antes que as colinas, wuth, envelheçam muito — disse ele, com sua voz lenta e grossa, ao modo dos dragões.

— Irei às florestas de Sempreverde, se tiver a sorte — disse Faendal. — Combinei com meu amigo que, se tudo correr bem, vamos primeiro visitar Falinesti juntos, e depois viajaremos para o Estado de Falkreath, que abraça as maiores florestas da província – seria incrível se pudesse nos carregar.

— Qualquer elfo que vier com você eu levarei — disse Paarthurnax.

— O amigo de que falo não é um elfo — disse Faendal. — Refiro-me a Kharjo, de Elsweyr, aqui ao meu lado. — Kharjo fez uma grande reverência, e a maça escorregou de seu cinto e bateu contra o chão.

— Hum! Espere um pouco — disse Paarthurnax, lançando ao khajiit um olhar sombrio. — Um kaaz é inimigo de tudo o que voa! Tenho boa vontade, mas você está pedindo muito. Essa é uma estranha amizade!

— Pode parecer estranha — disse Faendal —; mas enquanto Kharjo viver não entrarei em Sempreverde sozinho. A arma dele não é para as árvores, mas para pescoços de inimigos, ó Paarthurnax, Mestre dos Barbacinza e Guardião da Garganta do Mundo. Ele matou quarenta e dois dremoras na batalha.

— Hum, espere um pouco! — disse Paarthurnax. — Essa história está melhor! Bem, bem, as coisas transcorrerão como devem; e não há necessidade de nos apressarmos ao encontro delas. Mas agora precisamos nos separar por um tempo. O dia está chegando ao fim, e apesar disso Savos diz que vocês devem partir antes do cair da noite, e que o Junnesejer de Riften está ansioso para voltar para casa.

— Sim, precisamos ir, e ir agora — disse Savos Aren. — Receio, meu velho amigo Malatar que devo lhe tomar as sentinelas do portão. Mas você pode passar bem sem elas.

— Talvez eu possa — disse Malatar. — Mas vou sentir falta deles. Ficamos amigos em tão pouco tempo que até acho que devo estar ficando apressado - voltando à juventude, talvez. Mas, também, eles são a primeira coisa nova que vi sob sol ou lua em muitos longos, longos dias. Não os esquecerei. Permanecerão nossos amigos enquanto as folhas se renovarem. Passem bem! Mas se tiver notícias em sua bela terra, em Riverwood, mande-me uma mensagem! Você sabe o que quero dizer: qualquer notícia ou sinal das gigantas. Venham vocês mesmos, se puderem!

— Viremos! Não viremos, Meeko? — disseram Ralof, e Meeko latiu e pulou, e viraram-se apressadamente.

Paarthurnax olhou para eles e ficou em silêncio por um tempo, balançando a cabeça pensativamente. Depois voltou-se para Savos.

— Então Ancano não quis sair? — disse ele. — Não achava que iria. O coração dele está apodrecido como o de meu zeymah. Mesmo assim, se eu tivesse sido vencido, e todos os gigantes estivessem destruídas, eu não viria enquanto tivesse um buraco escuro para me esconder.

— É — disse Savos. — Mas você não planejou cobrir todo o mundo com suas árvores e sufocar todos os outros seres vivos. Mas é isso, Ancano fica para nutrir seu ódio e tecer outra vez as teias que sabe tecer. Ele tem o Colégio de Winterhold. Mas não se deve permitir que ele escape.

— Certamente não! Os lotmuz vão cuidar disso — disse Paarthurnax. — Ancano não colocará um pé além da rocha sem a permissão de Malatar. Os lotmuz vão vigiá-lo.

— Muito bom! — disse Savos. — Era isso que eu esperava. Agora posso ir e me dedicar a outros assuntos com uma preocupação a menos. Mas vocês devem ser cautelosos. As águas baixaram. Receio que não será suficiente colocar sentinelas em toda a volta da torre. Não duvido que houvesse caminhos profundos cavados embaixo do colégio, sob o mar, e que Ancano tenha a esperança de entrar e sair sem ser visto, em breve. Se vocês estão dispostos a desempenhar a tarefa, peço-lhes que derramem as águas de novo; e que façam isso até que Winterhold se transforme num lago perene, ou até que vocês descubram as saídas. Enquanto todas as passagens subterrâneas estiverem alagadas e as saídas bloqueadas, Ancano deverá ficar lá em cima e olhar pelas janelas.

— Deixe isso por conta dos lotmuz! — disse Paarthurnax. — Vão vasculhar o vale de cima a baixo e espiar embaixo de cada cascalho. Os lotmuz estão voltando para viver aqui, gigantes velhos, selvagens. Daremos a elas o nome de Vahlok Lotmuz. Nenhum esquilo circulará por aqui sem que os gigantes fiquem sabendo. Deixe isso por conta dos lotmuz! Até que passem sete vezes os anos durante os quais ele os atormentou, os gigantes não se cansarão de vigiá-lo. Agora, o Colégio tinha informação valiosa para você, Savos. As salas com as informações dos homens poderiam ser a chave para aquela pergunta que estivemos ponderando hoje cedo.

— Meu amigo! — disse Savos, olhando para o Colégio, semicerrando os olhos vermelhos. — Não teria permitido que Ancano voltasse, se um assunto daquela magnitude ainda me preocupasse. Não, já tenho a resposta para o nosso enigma. Agora bo, voe. Nos encontraremos em breve.