A manhã chegara límpida e fria, com uma aspereza que sugeria o fim do verão. A cabeça de Ralof se confundia em vertigem e tontura, o cheiro característico de um cavalo mal-cuidado irradiava pelo ar, e a carroça sacodia para cima e para baixo. Tentou mover as mãos, estavam amarradas. Temeu pelo pior. Fora a primeira vez que se considerara que ele tinha potencial o suficiente para escoltar seu Jarl com os seus irmãos de guerra.

Eles haviam sido capturados no exterior de um pequeno povoado nos montes. Ralof pensava que se tratava de salteadores, com as espadas a serviço de orcs em suas tribos. Pensar nisso fazia a pele de alguns de seus companheiros formigar.

As respirações de homens e cavalos misturavam-se em nuvens de vapor no ar frio da manhã quando o cocheiro da carroça, todo vestido em uma armadura de prata ordenou que um ladrão em roupas surradas se aquietasse. O ladrão se sentava ao lado de Ralof. Quando Ralof finalmente conseguiu abrir os olhos, um raio de luz do sol queimou seus olhos, mas ele logo neutralizou sua visão.

— Malditos sejam — praguejou o ladrão. Ele cheirava mal, e seus olhos pareciam ter visto dias melhores. — Malditos sejam todos vocês, Stormcloaks. Skyrim era boa, boa até que vocês vieram. O Império era bom, preguiçoso, preguiçoso — e olhou para frente, para um outro prisioneiro, que se sentava do outro lado da carroça, amordaçado e vestido em roupas de pelo e couro. — Se eles não estivessem procurando vocês, eu já teria roubado aquele cavalo. Estaria na metade do caminho para Hammerfell. Sim, eu os vi. Procuravam vocês o tempo todo. A minha senhora havia dito, ah, havia, que os soldados escarlate andavam para cima e para baixo em busca dos ursos. Malditos sejam vocês, os dois.

Ralof hesitou. O outro prisioneiro sentava-se solenemente sobre a carroça, com longos cabelos castanhos a ondular ao vento. A barba bem aparada, ou ao menos a parte que não estava coberta pelo sujo pano que amordaçava sua boca, estava salpicada de branco, fazendo-o parecer mais velho do que os seus trinta e cinco anos. Hoje tinha uma sombra severa sobre os olhos cinzentos, e parecia bem diferente do homem que se sentava em frente ao fogo, à noite, e falava suavemente da era dos heróis e das crianças da floresta. Tirara o semblante de jarl, pensou Ralof, e colocara a de Rei Ulfric. Sentiu que devia responder algo ao ladrão, pois seu rei não poderia.

— Somos todos irmãos e irmãs acorrentados agora, ladrão — ele disse. Se recostou na carroça. Era verdade. Estava em frente ao Rei Ulfric, mas isto significava que para eles Ulfric era somente mais um prisioneiro. O ar sussurrava morte em seus ouvidos.

Lokir, o ladrão de cavalos, empurrou seus cabelos longos e negros para trás com os braços. Olhou para Ulfric por alguns momentos com desdém. Não sabia, e não fosse pelas roupas, nem Ralof saberia que aquele era o líder da rebelião dos Stormcloaks.

— O que tem de errado com ele?

— Preze pela sua língua, ladrão — Ralof disse, aprumando-se pelo seu rei. Parecia agora mais otimista. O olhar de Ulfric transmitia, de fato, certa coragem. — Você fala com Ulfric Stormcloak, o verdadeiro Alto Rei.

Lokir o olhou no rosto. Não percebera de princípio, mas seus olhos mais tarde se arregalaram. Uma sensação de que seu estômago se transformava em ferro lhe tomou por inteiro. Engasgou em terror.

— Ulfric? — gaguejou. — Você é o líder da maldita rebelião. Você é o Jarl de Windhelm! Divinos — Lokir cobriu a boca com as mãos e um olhar de desespero tomou seu rosto inteiro. — Eles te capturaram. Os malditos capturaram o Jarl de Windhelm. Deuses, onde eles estão nos levando, então?

Ralof se esforçou para olhar através da neblina que cobria as florestas, e das florestas saíam. Um lobo se esgueirou para fora de uma árvore e o olhou. Havia pena em seus olhos. Os lobos eram filhos do norte, e também eram os Stormcloaks.

— Não sei para onde estamos indo — concluiu Ralof. — Mas Sovngarde está esperando. Sovngarde sempre está esperando por alguém.

Quando os cavalos cruzaram a muralha de pedra e palha, puderam ver a pequena vila que se formava à frente deles. General Tullius e a Embaixadora Elenwen sentavam-se, altos e imóveis sobre os cavalos, com soldados entre eles. Um vento tênue soprava através do portão do povoado. Sobre suas cabeças agitava-se o estandarte do Império de Cyrodiil: um dragão avermelhado voando por um campo negro de fumaça e cinzas.

— Estamos em Helgen — Ralof analisou as casas de pedra, uma por uma. Era bem diferente de como se lembrava. Estandartes imperiais agitavam-se por todos os lados, o vento empurrando-os todos numa direção. — Eu costumava cortejar uma moça daqui. Lembro-me de Vilod e sua cerveja com amoras. Quando eu era garoto — ele suspirou e olhou para Ulfric com um sorriso lamentador, — torres e muralhas do Império faziam com que eu me sentisse tão seguro…

Ralof olhou através das madeiras da carroça e viu as famílias reunidas em suas casas, todas observando as centenas de carroças que chegavam, umas atrás das outras. Uma pequena parte do exército de Ulfric estava toda reunida ali. Haming, uma criança de sete anos, observava excitado e animado. Alguns minutos depois as carroças pararam.

— O que houve? — disse Lokir. — Por que estamos parando?

— O que você acha? — replicou Ralof. Oficiais imperiais se aproximavam em suas exuberantes armaduras de prata e seda. — Fim da linha. Vamos, não deixemos os deuses à nossa espera.

Uma luz fresca estava quase coberta pela grande torre na frente deles, e uma brisa soprava suavemente pelo ar, trazendo do jardim que nele crescia o cheiro de frutos e flores.

— Seus ouvidos ouviram bem, Hadvar — disse a oficial. — Quero executar todos ainda hoje. Diga isso aos outros oficiais, por favor.

— Aqui estão eles. — Hadvar respondeu à sua oficial. — Os outros oficiais já concordaram, minha senhora. São seus, se puder executá-los.

— Posso — disse a mulher.

Hadvar ladrou uma ordem, e os soldados começaram a desamarrar as cordas que prendiam os soldados às carroças. Trezentos soldados de Ulfric Stormcloak estavam ali. Todo mundo se movia na mesma direção, todos com pressa de ver o que motivava o repique dos sinos, que agora pareciam tocar mais alto, tinindo, chamando. Haming juntou-se à corrente de gente. Mordeu o lábio enquanto coxeava, escutando as vozes excitadas ao seu redor.

— ... o Senhor de Windhelm, Jarl Ulfric. Estão levando-o para a pedra.

— Ouvi dizer que ele havia fugido para Cyrodiil, e que haviam matado ele no caminho.

— Não tarda, não tarda. Olha, tenho aqui um septim que diz que vão lhe arrancar a cabeça.

— Já vai tarde, o traidor — o homem cuspiu.

Haming lutou por encontrar a voz quando viu Ralof entre os homens a serem executados. Conhecia-o. Estimava-o; Ralof quase fora seu padrasto uma vez. Ficara por casar com sua mãe, mas a guerra o chamou.

— Ele nunca... — começou, mas era apenas uma criança, e os homens continuaram a falar por cima dele.

— Palerma! Não vão cortar-lhe a cabeça coisa nenhuma. Desde quando eles dão um jeito em traidores reais numa cidadezinha dessa?

— Bem, não vão ungi-lo cavaleiro, com certeza. Ouvi dizer que foi o Stormcloak que matou o velho Rei Torygg. Que lhe abriu a garganta na frente da esposa e do filho e que, depois disso, seus amotinados infiltrados na guarda de Solitude o deixaram sair.

— Ah, isso não é verdade, não foi a espada velha de Ulfric que matou o nosso rei. Foi sua Voz. Gritou na cara de Sua Graça e o partiu ao meio, é o que todo mundo está dizendo. Foi a própria esposa dele, Jarl Elisif, que deixou Ulfric ir embora.

— Cala essa boca mentirosa, mulher. Não sabe o que diz, sua senhoria é uma mulher boa e fiel ao Império.

Quando chegaram à Torre da Vigília, a multidão aglomerava-se, ombro contra ombro. Haming deixou-se levar pela corrente humana até onde os trezentos prisioneiros estavam se reunindo. A praça de pedra escura era uma massa sólida de gente, todos tagarelando excitadamente uns com os outros e fazendo força para chegar mais perto dos prisioneiros. Os sinos soavam muito alto ali. Haming contorceu-se através da multidão, esgueirando-se entre as patas dos cavalos e agarrando-se bem à espada de pau. Do meio da multidão, tudo o que via eram braços, pernas e barrigas, e a torre torta de pedra. Vislumbrou uma carroça de madeira e pensou em subir nela para conseguir ver, mas outros tiveram a mesma ideia. O carroceiro os amaldiçoou e os afastou a golpes de chicote. Haming ficou frenético. Ao forçar passagem até a frente da multidão, foi empurrado contra a pedra de um pedestal. Ergueu o olhar para General Tullius, que descia de seu cavalo. Enfiou a espada de pau no cinto e começou a subir no teto de uma casa de palha. A unha quebrada deixou manchas de sangue, mas conseguiu subir e enfiou-se entre a palha.

Foi então que viu o dito Rei que seu padrasto fora defender na Guerra.

Jarl Ulfric encontrava-se em pé no púlpito da Torre de Vigília, à frente da porta, apoiado em dois homens de armadura prateada. Vestia um gibão de rico veludo cinza com um urso azul cosido com contas na parte da frente, e um manto de lã cinza debruada de peles, mas estava mais magro do que Haming jamais o imaginara, com a longa face tensa de dor. Eram mais os homens mantendo-o em pé do que ele se sustentando; a bota que envolvia a perna quebrada mostrava-se encardida.

A própria Sacerdotisa de Arkay estava atrás dele, uma mulher atarracada, grisalha pela idade estranhamente magra, usando uma longa túnica marrom e uma imensa capa dourada. Em volta das portas da torre, um grupo de cavaleiros e de grandes oficiais aglomerava-se na frente do púlpito elevado de mármore. Entre eles destacava-se o General Tullius, vestido todo de carmesim, seda e cetim adornados com o dragão do Império. Ao seu lado via-se a embaixadora dos Thalmor, trajando um vestido negro de couro com fendas amareladas. Haming reconheceu Hadvar, que tinha um dia lutado em um duelo por sua mãe, e que usava um manto vermelho de sangue sobre a armadura prateada, com quatro dos membros da Legião à sua volta. Uma longa fileira de lanceiros de manto avermelhado segurava a multidão, comandada por um homem forte, com uma armadura elaborada, toda ela de laca negra e filigrana dourada. Quando o sino parou de soar, um silêncio foi lentamente cobrindo a grande praça, e Ulfric ergueu a cabeça e começou a falar, com a voz tão amortecida pela mordaça que Haming quase não conseguia ouvir. As pessoas atrás dele começaram a gritar "Quê?", "Mais alto!". Um elfo com a armadura dourada aproximou-se do rei e aguilhoou-o com força. Haming quis gritar Deixe-o em paz!, mas sabia que ninguém o ouviria. General Tullius então ergueu a voz e começou.

— Ulfric Stormcloak, Jarl de Windhelm — disse, mais alto, fazendo a voz chegar em toda a praça. — Alguns aqui em Helgen o chamam de herói. Mas um herói — aumentou ainda mais a voz e ergueu a mão para que todos o ouvissem, — não usa de um artifício como o Poder da Voz para assassinar o seu rei e usurpar o seu trono. Você começou esta guerra. Banhou Skyrim com caos, e agora a Legião vai destruí-lo e restaurar a paz. Que a Sacerdotisa de Arkay, os Oito Divinos sejam testemunhas da verdade que digo: Erik de Solitude é o verdadeiro herdeiro do Norte, e, pela graça de todos os deuses, escolhido pelos jarls, Jarl de Solitude e Alto Rei de Skyrim.

Uma pedra saltou da multidão. Ralof gritou quando viu o rei ser atingido. Os homens de manto avermelhado evitaram que caísse. Sangue escorreu-lhe pelo rosto, vindo de um profundo golpe na testa. Uma atingiu o guarda à esquerda de Ulfric. Outra retiniu na placa de peito do elfo com a armadura dourada. Dois homens da Legião puseram-se na frente de Tullius e da Embaixadora, protegendo-os com os escudos.

A Sacerdotisa deu alguns passos para frente.

— Como pecamos, assim sofremos — entoou, numa voz profunda e empolada, muito mais forte que a de Tullius. — Este homem teve seus crimes apontados à vista dos deuses e dos homens, aqui neste lugar sagrado. Os deuses são justos, mas Stendarr ensinou-nos que também são misericordiosos. O que será feito com este traidor, General?

— Jarl Elisif pede-me que permita que Jarl Ulfric seja banido destas terras, que o enviemos para Solstheim ou para as Ilhas do Pôr do Sol. Mas Erik, o Jarl de Solitude, afirma que enquanto sua presunção de reinado existir, traição não passará impune. Que Jarl Erik tenha a cabeça dele.

Algo rugiu nos céus, e Haming sentiu a estrutura da casa tremer. A multidão rugiu também, e Haming sentiu a casa balançar quando todas aquelas pessoas a empurraram. Senhores e cavaleiros afastaram-se quando ele passou, alto e descarnado, um esqueleto em cota de malha, o Carrasco do Rei Torygg. O carrasco empunhou seu machado. Haming sentiu o rugido novamente.

Bem no alto do púlpito, o carrasco fez um gesto, e o elfo em dourado deu uma ordem. Os homens da Legião atiraram Jarl Ulfric ao mármore, projetando-lhe a cabeça e o peito sobre a borda. Quando o carrasco ergueu a lâmina acima da cabeça, a luz do sol pareceu ondular e dançar no metal escuro, tremeluzindo num gume mais afiado que qualquer navalha. Haming, entretanto, teve a atenção roubada por um vulto negro nas nuvens.

— Por Oblivion, o que é isso? — ouviu a voz envelhecida de Tullius murmurar em um grito.

— Está nas nuvens! — gritou um soldado.

Quando o vulto se concretizou em forma, foi quando o dragão negro ergueu a cabeça, silvando, e abriu asas de noite e escarlate. O dragão negro abriu as asas e rugiu. Uma lança de turbilhonantes chamas escuras atingiu em cheio o rosto do elfo em armadura dourada. Seus olhos derreteram e escorreram pelas maçãs de seu rosto, e o óleo que tinha nos cabelos incendiou-se com tanta violência que, por um instante, o oficial dos Thalmor usou uma coroa flamejante duas vezes mais alta do que sua cabeça. O súbito fedor de carne carbonizada conseguiu sobrepor-se até mesmo ao seu perfume, e seu grito de dor pareceu afogar todos os outros sons.

Então Helgen estourou em sangue e caos. Os cavalos guinchavam, esbarravam e empurravam-se uns aos outros, tropeçavam, com a pressa. Quando Ralof, que se ocupara em desacorrentar Ulfric Stormcloak, se virou para olhar, um terço dos orgulhosos guerreiros da Legião lutava para se manter montado em suas aterrorizadas montarias, e outro terço fugia num brilhante clarão de cobre brilhante. Um homem manteve-se sobre a sela tempo suficiente para puxar uma espada, mas a espada de um Stormcloak rasgou seu pescoço e evitou seu grito. Outro perdeu uma mão para as espadas de um grupo de soldados e afastou-se, cambaleando e jorrando sangue.

Haming rolou do teto em palha em chamas e se jogou na terra. Um rosto aproximou-se do dele, cabelos castanhos e longos, olhos bondosos e um maxilar triangular.

— Não olhe! — rosnou-lhe uma voz espessa.

— Eu... eu... eu... — soluçou Haming. O soldado o sacudiu com tanta força que o fez bater os dentes.

— Cala a boca e fecha os olhos, rapaz — indistintamente, como que vindo de uma grande distância, ouviu um... um ruído... um som suave como um suspiro, como se um milhão de pessoas tivesse expirado ao mesmo tempo. Os dedos do soldado enterraram-se em seu braço, rígidos como ferro. — Olha para mim. Sim, é isso mesmo, para mim. Lembrou-se, rapaz?

Foi o cheiro que avivou a recordação. Haming viu os cabelos penteados e castanhos, o remendado e empoeirado manto amarronzados que lhe cobria os ombros cheios, os calmos olhos negros que a olhavam de soslaio. E lembrou-se do soldado que batalhara com Ralof num duelo pela senhora sua mãe, Hadvar. — Agora já me conhece? Ora, aí está um rapaz inteligente — cuspiu. — Isto aqui já acabou. Você vem comigo.

E por toda a sua volta, soldados fugiam, soluçavam, suplicavam e morriam, e o ar poeirento encheu-se de fumaça e fogo.