Ralof foi acordado por Savos. Havia velas acesas no quarto, pois apenas uma fraca luz crepuscular entrava pelas janelas; o ar estava pesado como se uma tempestade se aproximasse.

Que horas são? perguntou Ralof bocejando.

Já passa da segunda hora disse Savos Aren. Hora de levantar e se fazer apresentável. A Jarl de Solitude o convoca para informá-lo sobre seus novos deveres.

E ela vai providenciar o café da manhã?

Não, eu providenciei isso: tudo o que você vai comer até o meio-dia. A comida agora está sendo racionada.

Ralof olhou desolado para o pequeno pedaço de pão e a porção muito inadequada (achou ele) de manteiga que lhe foi servida, ao lado de uma xícara de leite aguado.

Por que você me trouxe para cá? disse ele.

Você sabe muito bem disse Savos Aren. Para mantê-lo longe de confusão; e, se você não aprecia estar aqui, é melhor se lembrar de que foi você quem atraiu a confusão. Ralof não disse mais nada.

Logo estava descendo mais uma vez com Savos Aren pelo frio corredor que levava à porta do Palácio Azul. Elisif estava sentada lá numa escuridão cinzenta, como uma aranha velha e paciente, na opinião de Ralof; não parecia ter mudado de posição desde o dia anterior. Apontou uma cadeira para Savos Aren, mas deixou Ralof um tempo parado de pé, sem lhe dar atenção. De repente a mulher voltou-se para ele:

Bem, Mestre Ralof, espero que tenha usado o dia de ontem em seu proveito, e a seu gosto. Mas receio que a mesa seja mais pobre nesta Cidade do que você poderia desejar.

Ralof teve uma sensação incômoda de que a maioria do que tinha falado ou feito chegara, de alguma forma, ao conhecimento da Senhora de Solitude, que também estava adivinhando grande parte de seus pensamentos. Não respondeu.

O que você poderia fazer a meu serviço?

Pensei que minhas tarefas seriam designadas pela senhora.

E serão, quando eu souber para que serviço você serve disse Elisif. Mas isso talvez eu saiba mais depressa se o mantiver ao meu lado. O escudeiro de minha câmara pediu permissão para ir á guarnição externa, de modo que você deve substituí-lo por algum tempo. Vai me servir, levar recados e conversar comigo. Se a guerra e o planejamento me deixarem algum tempo de sobra. Sabe cantar?

Sei disse Ralof. Quero dizer, bem o suficiente para o meu próprio povo. Mas não temos canções adequadas para grandes salões e tempos ruins. Raramente cantamos sobre qualquer coisa mais terrível que o vento ou a chuva. E a maioria de minhas canções é sobre coisas que nos fazem rir, ou sobre comida e bebida, é claro.

E por que essas canções seriam inadequadas para meus salões, ou para horas como estas? Quem viveu muito tempo sob a sombra está proibido de ouvir os ecos de uma terra não perturbada por ela? Nesse caso poderemos sentir que nossa vigilância não foi em vão, embora não tenha sido reconhecida.

Ralof sentiu o coração pesado. Não apreciava a idéia de cantar qualquer canção de Windhelm ou Solitude para a Senhora de Haafingar, com certeza não as cômicas que ele sabia melhor; essas eram muito, bem, rústicas para uma ocasião daquelas. No entanto foi dispensado, pelo momento, da penosa provação. Não lhe foi ordenado que cantasse. Elisif voltou-se para Savos, perguntando coisas sobre os homens do Rift e suas estratégias, e sobre a posição de Saerlund, o irmão do jarl.

Ralof ficou surpreso ao ver a quantidade de coisas que a jarl parecia saber sobre um povo que vivia distante, embora, pensou ele, muitos anos devessem ter passado desde que Elisif estivera fora de seus domínios, se já estivera. De repente Elisif acenou para Ralof e o dispensou de novo.

Vá até os arsenais da Cidade disse ela e pegue o seu uniforme e as armas da torre. Vai encontrar tudo preparado. Dei ordens nesse sentido ontem. Volte quando estiver devidamente vestido!

Foi como ela dissera, e Ralof logo se viu trajado com uma roupa como a que usava quando era soldado, mas vermelha e preta. Tinha uma pequena cota de malha, com anéis forjados de aço, talvez, embora fossem pretos como o azeviche; também um elmo alto como os que os guardas costumavam usar. Sobre a cota de malha trazia um pequeno casaco vermelho, com o símbolo do Lobo bordado em linha no peito. Suas roupas antigas foram dobradas e guardadas, embora não pudesse usá-las quando estivesse trabalhando.

Ficou escuro e sombrio o dia todo. Desde a aurora sem sol até a noite, a sombra pesada se aprofundou, e todos os corações da Cidade estavam oprimidos. Lá em cima uma grande nuvem passava lentamente para o oeste, vinda da Terra de Skuldafn, devorando a luz, carregada por um vento de guerra; mas mais abaixo o ar estava parado e sem vento, como se o Karth esperasse pelo ataque de uma tempestade destruidora. Lá pela décima primeira hora, finalmente dispensado do serviço por um tempo, Ralof saiu e foi procurar comida e bebida para alegrar seu coração pesado e transformar sua tarefa de servir em algo mais suportável. No refeitório encontrou outra vez Segunivus, que acabara de chegar de uma missão pelos pântanos, saindo das Torres de Guarda. Juntos foram caminhando até as muralhas, pois Ralof se sentia enclausurado do lado de dentro, e sufocado até mesmo na alta cidadela.

Agora estavam sentados lado a lado outra vez no parapeito que dava para o leste, onde tinham comido e conversado no dia anterior. Estava na hora do pôr-do-sol, mas a grande mortalha agora se estendera para dentro do oeste, e só quando ela finalmente afundou no Mar o Sol libertou-se para emitir um brilho breve de despedida antes da noite. Mas aos pântanos de Forgulnthur, sob a sombra de Solitude, não chegou nenhum raio: estava tudo escuro e desolado. Ralof tinha a impressão de que já fazia anos que se sentara lá, em algum tempo semi-esquecido quando ele ainda era um stormcloak, um soldado alegre que pouco se importava com os perigos pelos quais passara. Agora era um pequeno guarda numa cidade que se preparava para um grande ataque, vestido á moda altiva, mas sombria, do Castelo Dour.

Em algum outro tempo e lugar, Ralof poderia ter ficado satisfeito com suas novas vestes, mas agora sabia que não estava tomando parte em alguma brincadeira; era agora, num jogo sério como a morte, o servidor de uma senhora severa, correndo o maior dos perigos. A cota de malha era incômoda, e o elmo pesava-lhe sobre a cabeça. Jogara a capa em cima do banco. Desviou seu olhar cansado dos campos escuros lá embaixo e bocejou; depois veio um suspiro.

Cansado do trabalho de hoje? disse Segunivus.

Estou disse Ralof , muito: exausto por não fazer nada e esperar. Fiquei batendo os calcanhares contra a porta do quarto de minha senhora por muitas horas arrastadas, enquanto ela debatia com Savos e o Príncipe e outras pessoas importantes. E não estou habituado, Mestre Segunivus, a ficar com fome servindo, enquanto os outros comem. Isso é uma terrível provação para um nórdico. Sem dúvida você está pensando que eu deveria sentir a honra mais intensamente. Mas de que adianta essa honra? E mesmo a comida e a bebida, de que adiantam elas sob esta sombra que avança? O que significa isso? O próprio ar parece estar espesso e escuro! É freqüente aqui essa escuridão, quando sopra o vento do leste?

Não respondeu Segunivus , isso não é natural. É algum artifício da malícia dele; algum tumulto de fumaça que ele envia de Skuldafn para turvar nossos corações e nossas mentes. E realmente o efeito é esse. Gostaria que o Senhor Aldis retornasse. Ele não desanimaria. Mas, agora, quem pode saber se ele algum dia vai voltar do outro lado do Rio vindo da Escuridão?

É disse Ralof Savos também está ansioso. Ficou desapontado, julgo eu, por não ter encontrado Aldis aqui. E onde se meteu ele? Deixou o conselho da Jarl antes da refeição do meio-dia, e tive a impressão de que estava de mau humor. Talvez tenha tido a premonição de alguma má noticia.

De repente, enquanto conversavam, emudeceram, como se transformados em pedras alertas. Ralof se agachou tapando os ouvidos com as mãos, mas Segunivus, que estivera olhando para fora no parapeito enquanto falava de Aldis, permaneceu ali, imóvel, com o olhar assustado. Um grito saiu do ar com muita força e ódio, atravessando o coração com um desespero venenoso. Finalmente Segunivus falou com dificuldade.

Eles chegaram! disse ele. Tome coragem e olhe! Há seres cruéis lá embaixo.

Com relutância Ralof subiu no banco e olhou por sobre a muralha. Os pântanos jaziam escuro abaixo deles, desaparecendo na linha quase invisível do Grande Rio. Mas agora, voando em rápidos círculos através dele, como sombras de uma noite precoce, ele viu no ar, abaixo de onde estava, cinco figuras semelhantes a pássaros, horríveis como aves carniceiras, e apesar disso maiores que baleias, cruéis como a morte. Em alguns momentos voavam mais baixo, arriscando-se a chegar quase ao alcance das flechas que vinham das muralhas, outras vezes voavam para longe em círculos.

Dragões! murmurou Ralof. Sacerdotes Dracônicos do ar! Mas veja, Segunivus! exclamou ele. Com certeza estão procurando algo. Veja como eles fazem círculos e mergulham em vôos rasantes, sempre descendo na direção daquele ponto ali. E você está vendo alguma coisa se mexendo no chão? Coisinhas escuras. Sim, homens montados em cavalos: quatro ou cinco. Ah! Não consigo suportar isso! Savos! Savos, salve-nos!

Um outro grito penetrante cresceu e diminuiu, e Ralof se jogou para trás de novo, ofegando como um animal acossado. Fraco e aparentemente remoto, através daquele grito estarrecedor, ele ouviu subindo lá de baixo o som de uma trombeta terminando numa nota longa e aguda.

Aldis! O Senhor Aldis! É o chamado dele! gritou Segunivus. Homem corajoso! Mas como poderá alcançar o Portão, se esses nojentos falcões do inferno tiverem outras armas além do medo? Mas olhe! Eles continuam resistindo. Vão chegar até o Portão. Não! Os cavalos estão ficando loucos. Veja! Os homens foram jogados no chão, e estão correndo a pé. Não, um ainda está montado, mas está voltando em direção aos outros. Com certeza é o Capitão: ele consegue controlar tanto animais quanto homens. Ah! Lá está uma das criaturas nojentas arremetendo contra ele! Socorro! Socorro! Ninguém vai ajudá-lo? Aldis!

Dizendo isso Segunivus deu um salto e correu para dentro da escuridão. Envergonhado do próprio medo, enquanto Segunivus da Guarda pensava primeiro no capitão que amava, Ralof se levantou e espiou lá fora. Naquele momento captou um clarão branco e prateado vindo do leste, como uma pequena estrela descendo nos campos sombrios.

Movia-se com a velocidade de uma flecha, e crescia à medida que se aproximava, convergindo rapidamente com a fuga dos quatro homens em direção ao Portão. Ralof teve a impressão de que uma luz pálida se espalhava ao redor da estrela, e as sombras pesadas abriam caminho diante dela; então, assim que se aproximou mais, mas ele pensou ter ouvido, como um eco nas muralhas, uma voz imponente chamando.

Savos! gritou ele. Savos Aren! Ele sempre aparece quando as coisas estão pretas. Avante! Avante, Mago Psijic! Savos, Savos! berrou ele alucinado, como o espectador de um grande páreo, motivando um corredor que não precisa mais de torcida.

Mas agora as escuras sombras de rapina estavam cientes do recém chegado. Uma descreveu um giro na direção dele; mas Ralof teve a impressão de que ele ergueu o cajado, e dela um raio de luz azul cortou os ares acima. O dragão soltou um grito longo, grave e choroso e desviou-se, e depois disso os outros quatro hesitaram, então, erguendo-se em rápidas espirais, rumaram para o leste, desaparecendo na baixa nuvem acima deles; lá embaixo, nos pântanos, a escuridão pareceu menos densa por um tempo.

Ralof assistia a tudo, e viu que o homem a cavalo e o Mago Psijic se encontraram e pararam, aguardando os outros que vinham a pé. Agora homens corriam da Cidade em direção a eles, e logo todos passaram e desapareceram sob as muralhas externas e Ralof sabia que estavam entrando pelo Portão.

Supondo que imediatamente viriam para o Castelo Dour para ver o General Tullius, correu para a entrada da cidadela. Ali juntou-se a muitos outros que das altas muralhas tinham assistido á corrida e ao resgate. Não demorou muito para que se ouvisse um clamor nas ruas que vinham dos círculos exteriores e subiam; muitas pessoas aplaudiam e bradavam os nomes de Aldis e Savos Aren. De repente Ralof viu tochas, e à frente de uma multidão dois cavaleiros avançando devagar: um em vestes amarelas que já não brilhavam; estava agora empalidecido no crepúsculo como se seu fogo se tivesse exaurido ou ocultado; o outro era sombrio, e estava com a cabeça curvada.

Os dois desmontaram e, enquanto cavalariços levavam Gelado e o outros cavalo, caminharam na direção da sentinela do portão: Savos Aren num passo firme, a capa cinzenta jogada para trás e o fogo ainda ardendo em seus olhos; o outro, todo vestido de verde, avançava devagar, num passo vacilante, como alguém que está exausto ou ferido.

Ralof abriu caminho para a frente assim que eles passaram sob a lamparina abaixo do arco do portão e, quando viu o rosto pálido de Aldis, perdeu o fôlego. Era um rosto atingido pelo medo e pela angústia, mas que agora dominara o sentimento e estava tranqüilo. Altivo e solene, ele parou por um momento enquanto falava com o guarda, e Ralof, olhando para ele, viu como Aldis era parecido com Erik, não fosse a diferença da cor da barba entre os dois, que era uma preta e a outra alaranjada. Mesmo assim, de repente, sentiu por Aldis uma coisa que nunca sentira antes. Ele era alguém com um ar de alta nobreza, como o que Vorstag certas vezes revelara, talvez não tão alta, mas também não tão insondável e remota: um ar dos Imperadores nascidos numa época posterior, mas tocados pela sabedoria e pela tristeza dos atmorianos. Agora percebia por que Segunivus pronunciava seu nome com tanta devoção. Era um capitão que os homens seguiriam, que ele próprio seguiria, até mesmo sob a sombra das asas negras.

Aldis! gritou ele junto com os outros. Aldis! E Aldis captando a estranha voz dele em meio á aclamação dos homens da Cidade, virou-se e desceu os olhos até ele, estupefato.

De onde você vem? disse ele. Você não é um imperial, pelo que vejo, e com o uniforme do Castelo Dour! De onde...

Mas nesse momento Savos parou ao seu lado e falou. Ele veio comigo de Riverwood disse ele. Veio comigo. Mas não vamos ficar mais tempo aqui. Há muito o que dizer e fazer, e você está cansado. Ele virá conosco. Na verdade, é o que deve fazer, pois, se não estiver esquecendo suas novas tarefas mais facilmente do que eu, ele deve servir sua senhora outra vez agora. Venha, Ralof, siga-nos.

Então finalmente eles chegaram ao aposento particular da Jarl de Haafingar. Três cadeiras com espaldares altos estavam dispostas ao redor de um braseiro de carvão; trouxeram vinho; ali Ralof, quase sem ser notado, ficou atrás da cadeira de Elisif e sentiu o cansaço diminuir, tão grande foi a atenção que deu a tudo o que foi dito.

Depois que Aldis havia comido pão branco e bebido um gole de vinho, sentou-se numa cadeira baixa á esquerda de sua jarl. Um pouco afastado, do lado oposto, estava Savos Aren numa cadeira de madeira esculpida, e a princípio parecia estar dormindo. Pois no inicio Aldis falou apenas da missão para a qual fora enviado dez dias antes, e trouxe notícias do Rift e dos movimentos do Devorador de Mundos e seus aliados; contou também sobre a luta na estrada, na qual os homens do Deserto Alik’r e o dragão que os escoltava foram derrotados: um capitão relatando a sua senhora esses assuntos frequentemente tratados, coisas pequenas de uma guerra de fronteiras que agora pareciam inúteis e insignificantes, desprovidas de uma importância maior.

Então, de repente, Aldis olhou para Ralof.

Mas agora vamos tratar de assuntos estranhos disse ele. Pois este é o homem, creio eu, que os mensageiros da Alta Hrothgar estavam procurando, o elfo e o viajante.

Ao ouvir isso, Savos Aren aprumou-se agarrando os braços da cadeira, mas não disse nada, e com um olhar conteve a exclamação nos lábios de Ralof. Elisif olhou para os rostos deles e fez um sinal com a cabeça, como se quisesse dizer que lera ali muitas coisas, antes mesmo de serem mencionadas.

Lentamente, enquanto os outros ficaram sentados e imóveis, Aldis contou sua história com os olhos fixos em Savos Aren a maior parte do tempo, embora de vez em quando seu olhar se desviasse para Ralof, como que tentando recordar-se melhor dos mensageiros falando dele.

À medida que se desenrolava a história sobre o encontro de Aldis com Gwilin e seu companheiro, e sobre os eventos no Campo de Marchaleste, Ralof percebeu que as mãos de Savos estavam trêmulas, agarrando-se aos braços da cadeira. Agora pareciam de um cinza menos escuro e muito velhas, e olhando para elas, de repente, com um arrepio de medo, Ralof viu que Savos, o próprio Savos Aren, estava preocupado, até mesmo amedrontado. O ar da sala estava parado e pesado. Finalmente, quando Aldis relatou sua separação dos viajantes, e a resolução deles de ir para Skuldafn, sua voz ficou mais baixa, e ele balançou a cabeça e suspirou. Então Savos saltou de pé.

Skuldafn? Caverna de Tolvald? disse ele. O dia, Aldis, o dia: Quando você se separou deles? Quando acha que eles atingiriam aquela caverna amaldiçoada?

Separei-me deles há sete dias, pela manhã disse Aldis. São quinze léguas de lá até Ansilvund, se eles foram direto para o sul; e então haveria mais cinco milhas até a Caverna. Andando o mais rápido possível, eles não poderiam chegar lá antes de hoje, e talvez não tenham chegado ainda. Na verdade percebo o que você teme. Mas a escuridão não se deve á aventura deles. Começou na noite de ontem, e toda a província ficou coberta de sombra a noite passada.

Para mim está claro que o Devorador de Mundos planeja há muito tempo este ataque contra nós, e a hora já estava determinada antes mesmo que os viajantes deixassem a Alta Hrothgar. Savos Aren andava de um lado para o outro. Sete dias atrás, pela manhã, quase oito dias de viagem! A que distância daqui fica o lugar onde vocês se separaram?

Cerca de cem léguas num vôo de pássaro respondeu Aldis. Mas eu não consegui chegar mais rápido. Ontem pernoitei no Forte Dunstad, onde mantemos um ponto de defesa; temos cavalos do lado de cá do rio. A medida que a escuridão foi se aproximando, percebi que precisava me apressar, de modo que cavalguei para cá com mais três homens que também tinham montarias. O resto de minha companhia enviei para fortalecer a guarnição nos vaus de Águianeve. Espero que não tenha feito nada de errado disse ele olhando para a jarl.

Nada de errado? gritou Elisif, e seus olhos de repente faiscaram. Por que está perguntando? Os homens estavam sob o seu comando. Ou será que você quer saber o que penso sobre todos os seus atos? Na minha presença, sua postura é humilde; apesar disso, faz tempo que você não se desvia de seu próprio caminho a conselho meu. Veja, você falou com habilidade, como sempre; mas eu, então, não vi seu olho fixo em Agaialor, procurando saber se você falou bem ou demais? Faz tempo que seu coração lhe pertence. Meu soldado, sua senhora está velha, mas não está decrépita. Consigo ver e ouvir, como sempre foi meu hábito; e pouco do que você deixou de dizer ou disse com meias palavras é segredo para mim. Agora conheço a resposta para vários enigmas. Lamento, lamento por Erik!

Se o que fiz lhe desagrada, minha senhora disse Aldis numa voz suave , gostaria de ter sabido a sua opinião antes que o fardo de uma decisão tão difícil fosse jogado em minhas costas.

E isso faria com que você alterasse a sua decisão? disse Elisif. Você teria agido da mesma forma, julgo eu. Conheço-o bem. Seu desejo é parecer sempre nobre e generoso como um rei de antigamente, bondoso, gentil. Essas qualidades servem para alguém de sangue nobre, se essa pessoa detiver o poder em tempos de paz. Mas nas horas de desespero a recompensa pela gentileza pode ser a morte.

Então, que assim seja! disse Aldis.

Que assim seja! gritou Elisif. Mas não se trata apenas da sua morte, Senhor Aldis: também da morte de sua jarl, e de todo o seu povo, que você deve proteger agora que Erik partiu.

Gostaria então, minha jarl disse Aldis que nossos lugares tivessem sido trocados?

Sim, realmente gostaria disse Elisif. Pois Erik era fiel a mim, e não era pupilo de nenhum mago. Teria pensado na necessidade de sua mãe, e não teria jogado fora o que lhe fosse oferecido pela sorte. Ele me teria trazido mensagens valiosas.

Por um momento, Aldis perdeu o controle.

Eu lhe pediria, minha jarl, que se lembrasse do motivo pelo qual eu, e não ele, estava no Rift. Pelo menos em uma ocasião o seu desejo prevaleceu, não muito tempo atrás. Foi a Jarl de Solitude que lhe designou a missão.

Não remexa o amargor da taça que preparei para mim mesma disse Elisif. Já não o provei por muitas noites em minha boca, pressentindo que um sabor ainda pior estava no fundo? Como realmente percebo agora. Gostaria que não tivesse sido assim! Gostaria que Erik tivesse vindo a mim, e estivesse aqui agora!

Console-se! disse Savos Aren. Não havia nenhuma possibilidade de Erik chegar até você. Ele está morto, e morreu de forma nobre; que possa agora descansar em paz! Mas você se engana. Ele teria estendido a mão e um exército para Skuldafn, e assim tombaria. Marcharia para as Terras Escuras das Montanhas, e retornando não seria reconhecido nem por seu povo nem pela senhora sua mãe.

O rosto de Elisif se fechou, ficando duro e frio. Na sua opinião Erik era menos maleável em suas mãos, não é verdade? disse ela em voz baixa. Mas eu, que era sua mãe, digo que ele me teria trazido a coisa. Você talvez seja sábio, Savos Aren, e apesar disso, com todas as sutilezas, você não detém toda a sabedoria. Pode haver planos que não sejam nem as teias dos magos nem a pressa dos tolos. Nesse assunto, tenho mais conhecimento e sabedoria do que você supõe.

Qual é então a sua sabedoria? perguntou Savos Aren.

A suficiente para perceber que há duas loucuras que se devem evitar. Marchar contra Skuldafn é perigoso. Nesta hora, enviar uma companhia para dentro da terra do próprio Devorador de Mundos, como você fez, e também consentiu este meu capitão, isso é sandice.

E a Senhora Elisif, que teria ela feito?

Nenhuma das duas coisas. Mas, com toda certeza, por argumento algum teria ela colocado seu povo num perigo que elimina as esperanças de qualquer um, a não ser que se trate de um tolo, arriscando nossa completa ruína, no caso de o Devorador de Mundos destroçar ambos a companhia e o exército. Não, convocaríamos todos os exércitos e guardaríamos Haafingar, e nenhum dragão ou exército penetraria nossas muralhas.

Você está pensando, minha senhora, como é seu costume, apenas em Haafingar disse Savos Aren. Apesar disso há outros homens e outras vidas, e outro tempo ainda por vir. E, quanto a mim, condôo-me até dos escravos dele.

E onde os outros homens poderão buscar socorro, se Haafingar cair? respondeu Elisif. Se eu tivesse o maior exército de Tamriel agora, não estaríamos tremendo de medo sob esta escuridão, temendo o pior, e nossos planos não estariam sendo ameaçados. Se não confia que eu resista ao teste de comandar a província como Alta Rainha, você ainda não me conhece.

Não obstante, não confio em você disse Savos Aren. Se confiasse, poderia ter convocado muitos exércitos que confiam na minha palavra para cá, a fim de que seu filho os liderasse, poupando-me a mim e a muitos outros de uma grande carga de angústia. E agora, ouvindo-a falar, confiou menos ainda em você, não mais do que confiava em Erik. Não, contenha sua ira! Não confio nem em mim mesmo nesse assunto, e recusei um ataque aberto, mesmo quando me foi aconselhado. Você é forte e ainda pode se controlar em alguns pontos, Elisif, mas, se tivesse recebido essa chance, ela a teria derrotado. Se os exércitos saíssem vitoriosos, ainda assim ela iria continuar adulando sua mente e ego, enquanto cresce a escuridão, e sobrevém coisas ainda piores, que logo nos surpreenderão.

Por um momento, os olhos de Elisif voltaram a brilhar quando se fixaram em Savos Aren, e Ralof sentiu mais uma vez a tensão entre as disposições de ambos; mas agora quase parecia que os olhares dos dois eram como lâminas de olho a olho, faiscando à medida que se digladiavam. Ralof tremeu, temendo algum golpe terrível.

Mas de repente Elisif relaxou e ficou fria de novo. Encolheu os ombros. Se eu tivesse! Se você tivesse! disse ele. Essas palavras e esses "sês" são inúteis. A sua companhia foi para dentro da sombra, e agora apenas o tempo mostrará que destino está sendo reservado para eles e para nós. Não demorará muito. No tempo que ainda nos resta, que todos os que lutam contra o Devorador de Mundos á sua maneira fiquem unidos, e que mantenham a esperança enquanto puderem, e depois da esperança ainda a coragem de morrer em liberdade. Voltou-se para Aldis. O que você acha da guarnição em Águianeve?

Não é forte disse Aldis. Enviei a companhia do Rift para fortalecê-la, como já disse.

Não será suficiente, julgo eu disse Elisif. É lá que será desferido o primeiro golpe. Eles precisarão de algum capitão forte ali.

Ali e em muitos outros lugares disse Aldis, suspirando. Lamento por Erik, a quem eu também amava! Levantou-se. Permita que eu me vá, minha jarl?

E então curvou-se e debruçou-se sobre a cadeira de Elisif.

Vejo que está cansado disse esta. Cavalgou um longo caminho com grande rapidez, e sob sombras do mal no ar, pelo que soube.

Não vamos falar disso! disse Aldis.

Então não falemos disse Elisif. Vá e descanse como puder. O dever de amanhã será mais duro.

Todos deixaram então a Jarl de Solitude e foram descansar enquanto ainda podiam. Do lado de fora havia uma escuridão sem estrelas quando Savos Aren, com Ralof ao seu lado levando uma pequena tocha, dirigiu-se para o seu alojamento. Não disseram nada até estarem a portas fechadas. Então, finalmente, Ralof tomou a mão de Savos Aren.

Diga-me disse ele , há alguma esperança? Quero dizer, para Vorstag; ou pelo menos sobretudo para Vorstag?

Savos Aren colocou a mão sobre a cabeça de Ralof. Nunca houve muita esperança disse ele só houve a esperança de um tolo, como me disseram. E quando ouvi sobre a Caverna de Tolvald... Parou de falar e dirigiu-se para a janela, como se seus olhos pudessem penetrar a noite no leste. A Caverna! murmurou ele. Por que por ali, eu me pergunto? Agora há pouco, Ralof, meu coração quase parou, quando ouvi esse nome. E apesar disso, na verdade, acredito que a notícia de Aldis traz alguma esperança. Pois parece claro que nosso Devorador de Mundos finalmente começou sua guerra, fazendo o primeiro movimento enquanto Vorstag ainda estava livre. Então agora, por muitos dias, ele ficará com o olho voltado para um lado ou para o outro, sem fixar seus próprios domínios. E, contudo, Ralof, já sinto, a distância, seu medo e sua pressa. Ele começou mais cedo do que pretendia. Aconteceu alguma coisa que o incitou. Talvez murmurou ele. Talvez até mesmo a confusão na neve, meu rapaz. Deixe-me ver: agora deve fazer alguns dias que ele descobriu que derrotamos Ancano. E o que se pode presumir disso? Ah! Eu fico pensando. O Pergaminho Antigo? A hora de Vorstag se aproxima. E no fundo ele é forte e resoluto, Ralof: corajoso, determinado, capaz de fazer seus próprios planos e se expor a grandes riscos se for necessário. É possível. Ele pode ter mostrado-se para o Devorador de Mundos, exatamente com o propósito de desafiá-lo. Fico pensando. Bem, não saberemos a resposta até que os homens do Rift cheguem, se eles não chegarem tarde demais. Os dias à nossa frente serão malignos. Vamos dormir, enquanto podemos!

O dia seguinte chegou com uma manhã que se assemelhava a um crepúsculo escuro, e os corações dos homens, por um período mais leves com a chegada de Aldis, ficaram pesados de novo. Os dragões não foram vistos de novo naquele dia, mas de vez em quando, bem acima da cidade, um grito grosso chegava, muitos que ouviam ficavam paralisados com um terror passageiro, enquanto os menos corajosos estremeciam e choravam.

E agora Aldis partira outra vez.

Eles não lhe dão descanso murmuravam alguns. A Jarl é muito dura com o capitão, e agora ele deve fazer o serviço de dois, por ele e pelo outro que não retornará

E a todo momento os homens olhavam para o leste, perguntando-se: Onde estão os Soldados do Rift?

Era verdade que Aldis não partira por opção própria. Mas a Jarl de Solitude era a mestre do Conselho, e não estava disposta naquele dia a se curvar às opiniões dos outros. Cedo naquela manhã o Conselho fora convocado. Lá todos os capitães julgaram que, por causa da ameaça no sul, o exército que tinham era fraco demais para desferir por sua própria iniciativa qualquer golpe de guerra, a não ser talvez que os Soldados do Rift chegassem. Enquanto isso, deveriam guarnecer as muralhas com soldados e esperar.

Contudo disse Elisif , não devemos abandonar facilmente as defesas externas, a Ponte do Dragão construída com tanto trabalho. E o Devorador de Mundos devera pagar caro por atravessar o Rio. Isso ele não pode fazer, com força suficiente para tomar de assalto a Cidade, nem pelo norte de Dawnstar, por causa do Mar, nem pelo leste, por causa dos pântanos. É em Águianeve, cujas pontes construímos largas sobre as regiões pantanosas, que vai concentrar seu peso, como antes, quando Erik não permitiu que ele passasse.

Foi apenas uma tentativa disse Aldis. Hoje podemos fazer com que o Devorador de Mundos nos pague dez vezes pelo nosso prejuízo na passagem e mesmo assim lamentar a troca. Pois ele pode se permitir perder um exército com mais tranquilidade do que nós podemos perder uma companhia. E a retirada daqueles que colocamos espalhados nos campos será perigosa, se ele conseguir atravessar com toda a força.

E o Réspito? disse o Príncipe Clagius Asgorn de Volskygge. Ele também deve ter proteção, se Águianeve for defendida. Não vamos nos esquecer do perigo á nossa esquerda. Pode ser que os homens do Rift venham, e pode ser que não. Mas Aldis nos falou de um grande exército que saiu de Skuldafn e que se aproxima cada vez mais. Mais de um exército pode sair por ali, e atacar muito mais que uma passagem.

Na guerra é preciso arriscar muita coisa disse Elisif. O Réspito está guarnecido, e não podemos enviar mais homens para lá por enquanto. Mas não entregarei o Rio e os pântanos sem lutar - não se houver aqui um capitão ainda com coragem de fazer a vontade de sua senhora.

Todos ficaram em silêncio, mas finalmente Aldis disse:

Não me oponho à sua vontade, minha jarl. Uma vez que Erik lhe foi roubado, farei o que puder no lugar dele - se a senhora assim ordenar.

Assim ordeno disse Elisif.

Então adeus, minha senhora e meus colegas capitães disse Aldis. Mas, se eu retornar, Jarl Elisif, faça melhor juízo de mim.

Isso depende de como você retornar disse Elisif, a Bela.

Foi Savos Aren quem por último falou com Aldis antes que este partisse para o leste.

Não jogue fora sua vida temerariamente ou movido pela mágoa disse ele. Você será necessário aqui, para outras coisas além da guerra. Sua jarl o ama, Aldis, e vai se lembrar disso antes do fim. Adeus!

Então agora o Senhor Aldis partira novamente, levando consigo um grupo de homens voluntários ou disponíveis. Nas muralhas alguns observavam através da escuridão, com os olhos voltados para a cidade arruinada, e ficavam imaginando o que estaria acontecendo lá, pois não se enxergava nada. E outros, como sempre, olhavam mais além ao leste e contavam as léguas que Harrald do Rift deveria percorrer.

Será que virá? Será que vai se lembrar de nossa velha aliança? perguntavam-se eles.

Sim, ele virá dizia Savos Aren , mesmo que chegue tarde demais. Mas pensem! Na melhor das hipóteses, a Flecha de Solitude não pode ter chegado até ele há mais de dois dias, e são longas as milhas desde Riften.

Já era noite quando a notícia chegou. Um homem veio dos vaus cavalgando depressa, dizendo que um exército tinha saído de Skuldafn e já estava se aproximando de Águianeve; a ele tinham-se juntado regimentos vindos do sul, os alik’r, homens cruéis e morenos. E ficamos sabendo disse o mensageiro que o Capitão Morto os lidera novamente, e o seu terror o antecede através do Rio.

Com essas palavras de mau agouro terminava o terceiro dia desde que Ralof chegara a Solitude. Poucos foram descansar, pois pequena era a esperança de que até mesmo Aldis pudesse resistir nos pântanos por muito tempo. O dia seguinte, embora a escuridão já tivesse atingido seu auge e não pudesse ficar mais densa, pesou mais no coração dos homens, tomados de grande terror. Más noticias logo tornaram a chegar. A passagem do Rio Karth fora conquistada pelo Devorador de Mundos. Aldis estava se retirando para a muralha de Forgulnthur, reagrupando seus homens nos pântanos, mas sua tropa era dez vezes menor que a do Devorador de Mundos.

Se ele conseguir voltar através de Forgulnthur, os inimigos estarão nos seus calcanhares disse o mensageiro. Eles pagaram caro por terem atravessado, mas menos caro do que imaginávamos. O plano foi bem feito. Agora vemos que, em segredo, eles há muito tempo vêm construindo balsas e barcaças em Águianeve. Atravessaram como um enxame de besouros. Mas é o Capitão Morto quem nos derrota. Poucos suportam e resistem até mesmo ao rumor de sua chegada. Seu próprio povo estremece diante dele, e se mataria se ele ordenasse.

Então precisam mais de mim lá do que aqui disse Savos Aren, partindo imediatamente, e seu brilho logo desapareceu de vista.

E por toda aquela noite Ralof, solitário e insone, ficou na muralha, olhando para o leste. Os sinos do dia mal tinham soado de novo, um arremedo na escuridão iniluminada, quando na distância ele viu chamas se arremessando nos ares, ao longe nos espaços escuros onde ficavam as muralhas de Forgulnthur. Os vigias gritaram, e todos os homens da cidade prepararam suas armas. Agora, com frequência, via-se um clarão vermelho, e em seguida através do ar pesado ouviam-se estrondos surdos.

Tomaram Forgulnthur! gritavam os homens. Estão abrindo fendas. Eles estão chegando.

Onde está Aldis? gritou Segunivus desesperado. Não me digam que ele tombou!

Foi Savos Aren quem trouxe as primeiras noticias. Com um punhado de cavaleiros ele chegou no meio da manhã, escoltando uma fileira de carroças. Estavam cheias de homens feridos, e de tudo o que pudera ser salvo dos escombros das construções de Solitude em Forgulnthur. Dirigiu-se imediatamente a Elisif. A Jarl de Solitude estava sentada num alto aposento no Palácio Azul com Ralof ao seu lado; através das janelas sombrias, ao norte, ao sul e ao leste, ela fixava os olhos escuros, como se tentasse penetrar as sombras da destruição que o circundavam.

Olhava com mais insistência para o leste, e de vez em quando parava para escutar, como se por alguma arte antiga seus ouvidos pudessem ouvir o trovão de cascos sobre as planícies distantes.

Aldis chegou? perguntou ele.

Não disse Savos Aren Mas ainda estava vivo quando o deixei. Contudo está resolvido a ficar na retaguarda, para evitar que a retirada através do Forgulnthur se transforme numa fuga desordenada. Talvez consiga manter seus homens reunidos pelo tempo necessário, mas eu duvido. Está encurralado por um inimigo poderoso demais. Pois chegou quem eu temia.

Não... o Devorador de Mundos? exclamou Ralof, esquecendo sua posição devido ao pavor.

Elisif riu de um modo amargo.

Não, ainda não, Mestre Ralof! Ele não virá, a não ser para triunfar sobre mim quando tudo estiver perdido. Ele usa outros como suas armas. Assim fazem os grandes senhores, se forem sábios, Mestre Stormcloak. Ou por que motivo estaria eu aqui, sentada em minha torre e pensando, assistindo, esperando, pondo em risco até mesmo meu filho e meus capitães mais fortes? Pois eu sou mulher, mas consigo brandir uma arma.

Levantou-se e abriu sua longa capa escarlate. Surpreendentemente, vestia uma cota de malha por baixo, e no cinto trazia uma longa espada, com grande punho, numa bainha negra e vermelha.

Assim sempre andei, e assim agora por muitos anos tenho dormido disse ela , para evitar que meu corpo fique fraco e amedrontado.

Mesmo assim, o mais cruel de todos os capitães do senhor de Skuldafn já é dono de suas muralhas externas disse Savos Aren. Rei de Ansilvund de outrora, um feiticeiro, um Sacerdote Dracônico, a vingança, é como o chamam em dovahzul, uma lança de terror na mão de Alduin, sombra de desespero.

Então, Agaialor, você teve um inimigo à sua altura disse Elisif. Quanto a mim, sei há muito tempo quem é o principal capitão dos exércitos de Skuldafn. Foi só para dizer isso que você retornou? Ou será que se retirou por estar em desvantagem?

Ralof estremeceu, temendo que Savos Aren fosse tomado de uma ira repentina, mas seu medo foi infundado.

Pode ter sido isso respondeu Savos numa voz suave. Mas nosso teste de forças ainda não começou. E, se palavras pronunciadas antigamente forem verdadeiras, ele não deverá cair pela mão do homem, e o destino que o aguarda é desconhecido dos Sábios. Seja como for, o Capitão do Desespero não está avançando, ainda. Ele governa bem de acordo com as regras que você acabou de mencionar, na retaguarda, empurrando antes para a frente seus escravos alucinados. Não, eu vim mais para proteger os homens feridos que ainda podem ser curados; pois a Ponte do Dragão está grandemente destruída, e logo o exército de Skuldafn entrará por vários pontos. E vim principalmente para dizer isto: logo haverá uma batalha nos pântanos. É preciso preparar uma surtida. Que seja de homens montados. Neles repousa nossa pequena esperança, pois em uma coisa apenas o inimigo ainda está mal equipado: tem poucos cavaleiros.

E nós também temos poucos. Agora seria o momento exato de os Cavaleiros do Rift chegarem disse Elisif.

É provável que vejamos outros chegando primeiro disse Savos Aren , fugitivos do Réspito já nos alcançaram. A ruína caiu. Um outro exército saiu por Skuldafn, atravessando pelo nordeste.

Alguns o acusaram, Savos Aren, de se deliciar em trazer más noticias disse Elisif , mas para mim isso já não é mais novidade: eu sabia disso antes do cair da noite de ontem. E, quanto à surtida, já pensei nesse assunto. Vamos descer.

O tempo passou. Por fim as sentinelas nas muralhas conseguiram ver a retirada das companhias avançadas. Pequenos grupos de homens cansados e frequentemente feridos chegaram primeiro com pouca ordem; alguns corriam alucinados, como se estivessem sendo perseguidos. Na distância ao leste fogueiras longínquas bruxuleavam, e agora parecia que em alguns pontos elas rastejavam através da planície. Casas e celeiros estavam em chamas. Então, de vários pontos, pequenos rios de fogo rubro vieram correndo, ziguezagueando através da escuridão, convergindo na direção da linha da larga estrada que conduzia do portão à Cidade de Águianeve.

Os exércitos do dragão murmuravam os homens. A barreira caiu. Lá vêm eles aos borbotões através das brechas! E parece que estão carregando tochas. Onde está o nosso pessoal?

Começava a noite, e a luz estava tão fraca que mesmo os homens de visão penetrante da Cidade mal conseguiam discernir as formas nos pântanos, a não ser apenas os incêndios que cada vez mais se multiplicavam, e as linhas de fogo que cresciam em tamanho e velocidade. Finalmente, a menos de uma milha da Cidade, um grupo de homens mais bem ordenado apareceu, marchando sem correr, ainda se mantendo unido.

As sentinelas prenderam a respiração.

Aldis deve estar lá diziam elas. Ele consegue dominar homens e animais. Conseguirá chegar até aqui.

Agora a retirada principal estava a menos de quatrocentos metros de distância. Surgindo do fundo da escuridão galopava uma pequena companhia de cavaleiros, tudo o que restava da retaguarda. Mais uma vez se viraram acuados, enfrentando as linhas de fogo que avançavam. Então, de repente, houve um tumulto de gritos ferozes. Cavaleiros inimigos foram chegando e varrendo tudo. As linhas de fogo transformaram-se em rios flamejantes: fileira após fileira de draugrs carregando tochas, e sulistas bárbaros com bandeiras vermelhas, gritando em línguas rudes, avançando numa onda, alcançando os soldados em retirada. E, com um grito cortante, da escuridão do céu negro caíram as sombras aladas, os dragões mergulhando para a matança.

A retirada se transformou numa debandada. Os homens já se dispersavam, fugindo alucinados, feito malucos, para todos os lados, jogando fora suas armas, gritando de medo, tombando ao chão.

Nesse momento uma trombeta soou na Cidade, e Elisif finalmente liberou a surtida. Reunidos á sombra do Portão, e sob as muralhas que se erguiam do lado de fora, eles estiveram aguardando um sinal dele: todos os homens com montarias que haviam permanecido na Cidade. Agora saltavam á frente, em forma, num galope rápido, atacando com grande alarido. E das muralhas um grito veio em resposta, pois à frente de todos os demais apareciam os cavaleiros de Volskygge e seu Príncipe com insígnia azul. Na vanguarda, Clagius sobre sua montaria, um corcel branco. Chamavam Invencível aquele cavalo, pois em torneio algum havia sido derrubado.

Volskygge por Solitude! gritavam eles. Volskygge por Aldis!

Como trovões eles caíram sobre o inimigo nos dois flancos da retirada; um cavaleiro disparou á frente, veloz como o vento sobre a relva; Gelado o levava, brilhante, mais uma vez revelado, com uma luz emanando de sua mão erguida. Os dragões soltaram um guincho e fugiram, pois seu Capitão ainda não estava pronto para desafiar o fogo azul de seu oponente, que uma vez fora seu aliado nas mãos de Morokei. Os exércitos de Skuldafn, concentrados em sua presa, pegos desprevenidos numa carreira desabalada, dispersaram-se e se espalharam como faiscas ao vento. As companhias avançadas, com grande disposição, viraram-se e atacaram seus perseguidores. Caçadores se transformaram em caça. A retirada virou um assalto. Draugrs e homens caídos cobriram o campo, e um cheiro forte subiu das tochas lançadas ao chão, crepitando e se extinguindo numa fumaça espiralada. A cavalaria avançava.

Mas Elisif não permitiu que fossem longe. Embora o inimigo estivesse sob controle e por enquanto rechaçado, grandes exércitos chegavam do leste. Mais uma vez soou a trombeta, ordenando a retirada. A cavalaria de Haafingar parou. Atrás de sua proteção, as companhias avançadas reorganizaram suas fileiras. Agora retornavam, marchando compassadamente. Atingiram o Portão da Cidade e entraram, num passo imponente; e também com imponência o povo da Cidade olhava para eles e gritava-lhes elogios, mas mesmo assim tinham os corações perturbados. Pois as companhias estavam lamentavelmente reduzidas. Aldis perdera um terço de seus homens. E onde estava ele?

Chegou por último. Seus homens entraram. Os cavaleiros montados retornaram, na retaguarda a bandeira de Volskygge e o Príncipe. E em seus braços, em seu cavalo, carregava o corpo de seu amigo, Aldis, Capitão de Solitude, encontrado no campo de batalha.

Aldis! Aldis! gritaram os homens, chorando nas ruas. Mas ele não respondia, e foi levado pela estrada sinuosa até a Cidade e à presença do pai.

No momento em que os dragões desviaram do ataque do Mago Psijic, uma seta mortal veio voando e Aldis, que estivera impedindo o avanço de um campeão montado do Deserto Alik’r, tombou no chão. Apenas o ataque de Volskygge pudera salvá-lo das espadas curvadas do sul, que o teriam golpeado ali no chão. O Príncipe Clagius levou Aldis para o Castelo Dour, e disse:

Seu capitão retornou, senhora minha prima, depois de grandes feitos e então fez um relato de tudo o que vira.

Elisif se levantou e olhou no rosto do primo e depois do capitão, sem dizer nada. Depois ordenou que arrumassem uma cama no aposento para Aldis e saíssem. Mas ela mesma subiu até a sala secreta no topo da torre; muitos que olhavam lá para cima naquela hora viram uma luz pálida que tremeluziu e faiscou nas janelas estreitas por algum tempo, e depois piscou e se extinguiu. E, quando Elisif novamente desceu, foi até Aldis e sentou-se ao seu lado sem dizer palavra; mas o rosto da Bela Jarl estava cinzento, mais cadavérico que o do capitão.

Então agora, finalmente, a Cidade estava cercada, fechada num circulo de adversários. A Ponte do Dragão fora derrubada, e todo o pântano estava abandonado ao Devorador de Mundos. A última palavra que veio de fora das muralhas foi trazida por homens fugindo pela estrada sul antes que o Portão se fechasse. Saprius os conduzia, o mesmo que havia admitido Savos Aren e Ralof há alguns dias antes, quando o sol ainda surgia e a manhã trazia esperanças.

Não há noticia dos homens de Harrald disse ele. O Rift não virá agora. Ou, se vier, isso não nos servirá de nada. O novo exército do qual tivemos notícias chegou primeiro, vindo do sul passando por Karthwasten, ouvi dizer. São fortes: batalhões de draugrs, e incontáveis companhias de homens de um outro tipo que nunca vimos antes. Não são altos, mas corpulentos e sisudos, barbados, brandindo grandes machados. Achamos que eles vêm de alguma região selvagem do amplo leste. Tomaram a estrada do leste, e muitos avançaram até a Ponte do Dragão. Os homens do Rift estão impossibilitados de chegar.

O Portão foi fechado. Durante toda a noite, vigias nas muralhas ouviram os rumores dos inimigos que perambulavam do lado de fora, queimando árvores e campos, apunhalando qualquer homem que encontrassem, vivo ou morto. Não se podia adivinhar quantos tinham atravessado o rio no escuro, mas quando a manhã, ou sua sombra embaçada, avançou furtivamente sobre a planície, percebeu-se que o medo noturno não superestimara o número. A planície estava escurecida pelas suas companhias marchando, e até onde a vista alcançava surgiam, como florescências nojentas de fungos, por toda a volta da cidade sitiada, grandes acampamentos de tendas negras ou de um vermelho sombrio.

Diligentes feito formigas, draugrs apressados cavavam, cavavam longas trincheiras fundas num enorme círculo, fora do alcance de flechas que partissem das muralhas; e assim que cada trincheira ia sendo terminada, enchiam-na de fogo, embora não se pudesse ver como o alimentavam ou acendiam, se por arte ou feitiçaria. Durante todo o dia o trabalho continuou, enquanto os homens de Solitude assistiam, sem poder impedi-lo.

E, á medida que cada metro de trincheira se completava, eles divisavam grandes carroças se aproximando; logo, mais companhias do inimigo, cada uma protegida por uma trincheira, instalavam rapidamente grandes máquinas para o lançamento de projéteis. Não havia nas muralhas da Cidade nenhum mecanismo grande o suficiente para alcançar tão longe ou impedir o trabalho. No início os homens riram e não temeram aqueles instrumentos. Pois a muralha principal da cidade era extremamente alta e de uma espessura impressionante, e fora construída antes que o poder e o oficio de Cyrodiil declinassem no exílio; sua face externa era semelhante ao Colégio de Winterhold, rígida, escura e lisa, imune a fogo ou aço, indestrutível, exceto por alguma convulsão que lacerasse o próprio solo no qual ela se erguia.

Não diziam eles , nem que o próprio Devorador de Mundos atacasse; nem mesmo ele conseguirá entrar aqui enquanto ainda estivermos vivos. Mas alguns respondiam: Enquanto ainda estivermos vivos? Por quanto tempo? Ele tem uma arma que já pôs por terra muitas fortalezas desde o inicio do mundo. A fome. As estradas estão bloqueadas. Riften não chegará.

Mas as máquinas não desperdiçaram tiros contra a parede indômita. Não era qualquer salteador ou chefe draugr que iria ordenar o assalto sobre o maior inimigo do Senhor de Skuldafn. Dirigiam-no uma força e uma mente de malícia. Assim que as grandes catapultas foram montadas, em meio a muitos gritos e ao rangido de cordas e manivelas, elas começaram a arremessar projéteis a uma altura impressionante, de modo que passavam bem acima do parapeito e caíam com um baque surdo dentro do primeiro círculo da Cidade; muitos deles, por alguma arte secreta, explodiam em chamas enquanto caiam.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Logo já havia grande perigo de incêndio atrás da muralha, e todos os que estavam disponíveis se ocupavam em dominar as chamas que se deflagravam em vários pontos. Então, em meio aos golpes mais poderosos, veio uma outra saraivada, menos destruidora e no entanto mais horrível. Por todas as ruas e alamedas atrás do Portão caíam pequenos projéteis redondos que não explodiam. Mas, quando os homens corriam para saber o que poderia ser aquilo, soltavam gritos ou choravam. Os exércitos do Devorador de Mundos estavam arremessando para dentro da Cidade todas as cabeças daqueles que tinham caído na luta em Águianeve, ou em Ponte do Dragão, ou nos campos. Eram horripilantes de se olhar, pois, embora algumas estivessem esmagadas e disformes, e algumas tivessem sido cruelmente estraçalhadas, muitas ainda conservavam seus traços, indicando que aqueles homens tinham morrido em sofrimento; todas estavam marcadas com o símbolo maligno do Devorador de Mundos, e este era uma terrível insígnia dracônica.

Mesmo desfiguradas e aviltadas como estavam, freqüentemente era possível que daquela forma um homem revisse o rosto de alguém que conhecera, que já andara armado e orgulhoso, ou cultivara os campos ou, vindo dos verdes vales das colinas, cavalgara para lá num dia de folga. Em vão os homens mostravam os punhos para os impiedosos inimigos que se aglomeravam diante do Portão. Não se importavam com pragas, e nem entendiam as línguas dos homens do oeste, pois gritavam com vozes roucas como animais e aves de rapina. Mas logo restavam poucos em Solitude com coragem suficiente para se erguer e desafiar os exércitos de Skuldafn. Pois o Devorador de Mundos tinha ainda uma outra arma, mais rápida que a fome, o medo e o desespero.

Os dragões vieram de novo, e, agora que o Devorador de Mundos crescia e exibia sua força, da mesma forma as vozes deles, que expressavam apenas a sua vontade e malícia, se encheram de maldade e horror. Faziam círculos acima da Cidade, como abutres que aguardam sua parcela de carne humana destinada a morrer. Voavam fora do alcance da vista ou de algum tiro, e mesmo assim estavam sempre presentes, e suas vozes mortais rasgavam o ar. Ao invés de diminuírem, a cada grito iam ficando mais insuportáveis. Por fim até mesmo os mais corajosos se jogavam no chão quando a ameaça oculta passava sobre suas cabeças, ou então ficavam de pé, deixando cair as armas das mãos paralisadas, enquanto suas mentes eram invadidas por um negror total, e eles não pensavam mais na guerra, mas só em se esconder e rastejar, e morrer.

Durante todo aquele dia negro, Aldis ficou em sua cama, no aposento do Castelo Dour, delirando numa febre desesperada, morrendo, disse alguém, e logo "morrendo" diziam todos os homens nas muralhas e nas ruas. E ao seu lado sentava-se a jarl, não dizendo nada, mas observando sem dar qualquer atenção á defesa. Ralof nunca conhecera horas tão escuras, nem mesmo quando estivera nas garras dos dremoras. Seu dever era permanecer ao lado da Jarl, e foi isso o que fez, aparentemente esquecido, em pé junto á porta do quarto escuro, dominando os próprios medos da melhor maneira possível. E enquanto observava teve a impressão de que Elisif, a Bela, envelhecia diante de seus olhos, como se algo tivesse arrebentado em sua altiva obstinação, derrotando sua vontade inflexível. Talvez a tristeza tivesse feito aquilo, e o remorso. Naquele rosto outrora empedernido, Ralof enxergava lágrimas, mais insuportáveis que a ira.

Não chore, minha senhora gaguejou ele. Talvez ele melhore. O senhor solicitou a presença de Savos Aren?

Não me console com magos! disse a Jarl Elisif. A esperança do tolo fracassou. O Devorador de Mundos descobriu isso, e agora seu poder aumenta; ele enxerga nossos próprios pensamentos, e tudo o que fizermos será desastroso. Enviei meu maior capitão, que cresceu com meu filho, sem meus agradecimentos, sem minha bênção, em direção a um perigo desnecessário, e aqui jaz ele, com veneno nas veias. Não, não, o que quer que aconteça agora na guerra, a Casa de Torygg fracassou. Pessoas mesquinhas deverão governar os últimos remanescentes dos imperiais, escondendo-se nas colinas até que sejam todos caçados.

Homens vieram á porta bradando pela Jarl de Solitude.

Não, não descerei disse ela. Preciso ficar ao lado de meu capitão. Pode ser que ele ainda fale antes do fim. Mas o fim está perto. Sigam quem quiserem, até mesmo o Tolo Amarelado, embora a esperança dele tenha fracassado. Ficarei aqui!

Foi assim que Savos Aren tomou para si o comando da última defesa de Haafingar. Aonde quer que fosse, fazia com que os corações dos homens ficassem de novo mais leves, e as sombras aladas desaparecessem da lembrança. Passava incansável da Cidade para o Portão, do norte para o sul em torno da muralha; com ele ia o Príncipe de Volskygge em sua cota metálica brilhante. Pois ele e seus cavaleiros ainda se comportavam como senhores nos quais a raça de Cyrodiil se mantinha integra. Os homens que os viam sussurravam, dizendo: É possível que velhas histórias falem a verdade; há sangue élfico nas veias dessa gente, pois o povo ayleidun certa vez morou naquela terra, há muito tempo.

E então alguém cantava em meio á escuridão alguns versos das músicas ayleidünas, ou outras canções de Solitude, vindas de tempos imemoriais. E apesar disso, quando os dois se iam, as sombras se fechavam sobre os homens de novo, e seus corações ficavam frios, e a bravura de Haafingar se acabava em cinzas. E assim, lentamente, eles passavam de um dia sombrio de temores para a escuridão de uma noite desesperada. Fogueiras agora devastavam sem qualquer resistência o primeiro circulo da Cidade, e a guarnição sobre a muralha externa já estava em vários pontos impedida de bater em retirada. Os leais que lá permaneciam em seus postos eram poucos; a maioria tinha fugido para além do segundo portão.

Muito atrás da batalha, uma ponte fora construída rapidamente sobre o Rio, e durante todo o dia mais homens e equipamentos de guerra tinham feito a travessia aos borbotões. Por fim agora, no meio da noite, o ataque fora liberado. A vanguarda atravessou as trincheiras de fogo por várias trilhas sinuosas que haviam sido deixadas entre elas. Avançavam, sem se preocuparem com suas perdas á medida que se aproximavam, ainda reunidos em grupos, ao alcance dos arqueiros nas muralhas.

Mas agora, na realidade, restavam ali muito poucos para que o prejuízo fosse grande, embora a luz das fogueiras expusesse muitos alvos para os arqueiros de cuja habilidade Haafingar outrora se gabara. Então, percebendo que a coragem da Cidade já estava derrotada, o Capitão oculto exibiu sua força. Lentamente as grandes torres de sítio construídas em Águianeve foram rolando para a frente através da escuridão.

Mensageiros foram outra vez até o aposento do Castelo Dour, e Ralof os deixou entrar, pois eles insistiram. Elisif desviou lentamente a cabeça do rosto de Aldis, e olhou para eles em silêncio.

A primeira parte da Cidade está em chamas, senhora disseram eles. Quais são as suas ordens? Ainda é a Jarl e a Regente. Nem todos estão dispostos a seguir Agaialor. Os homens estão fugindo das muralhas, deixando-as desguarnecidas.

Por quê? Por que fogem os tolos? disse Elisif. É melhor ser queimado mais cedo que mais tarde, pois esse será nosso fim. Voltem para a sua fogueira! O Oeste fracassou. Voltem e queimem!

Os mensageiros, sem reverência ou resposta, viraram-se e saíram correndo. Nesse momento Elisif se levantou, soltando a mão febril de Aldis que estivera segurando.

Adeus! disse ela. Adeus, Ralof de Riverwood! Seu serviço foi curto, e agora está chegando ao fim. Eu o dispenso do pouco que resta. Vá agora, e morra da maneira que lhe pareça melhor. E com quem desejar, até mesmo aquele amigo cuja loucura o trouxe para esta morte. Mande chamar meus serviçais, e depois vá. Adeus!

Não direi adeus, minha senhora disse Ralof, ajoelhando-se. E então, de repente, mais uma vez á maneira dos nórdicos, levantou-se e olhou nos olhos da mulher. Vou deixá-la, senhora disse ele ; pois realmente desejo muito ver Savos Aren. Mas ele não é um tolo, e eu não vou pensar em morrer ate que ele perca as esperanças na vida. Mas de minha palavra e de seu serviço não quero ser dispensado enquanto a senhora viver. E, se finalmente eles chegarem ao Castelo Dour, espero estar aqui para ficar ao seu lado, e talvez fazer por merecer as armas que me foram dadas.

Faça como quiser, Mestre Stormcloak disse Elisif. Mas minha vida acabou. Mande chamar meus serviçais!

Ralof a deixou e chamou os serviçais: vieram seis homens da casa, fortes e belos; apesar disso, tremeram ao chamado. Mas numa voz suave Elisif lhes ordenou que colocassem cobertas quentes na cama de Aldis e a levassem. Assim fizeram eles, e, erguendo a cama, levaram-na do aposento. Andavam devagar, para incomodar o homem febril o mínimo possível, e Elisif, agora curvada sobre um cajado, os seguia; por último vinha Ralof.

Saíram do Castelo Dour, como se fosse um funeral, para dentro da escuridão, onde a nuvem que pairava sobre a Cidade era iluminada por baixo por laivos de um vermelho apagado. Suavemente atravessaram o grande pátio, e a um comando de Elisif pararam. Ralof virou-se e saiu correndo despercebido. Ao pé da porta, dirigiu-se a um dos serviçais que ficara de guarda. Sua senhora está fora de si disse ele. Tenham calma! Não tragam nada para este lugar enquanto Aldis viver! Não façam nada até que Savos Aren chegue!

Quem é o senhor de Solitude? respondeu o homem. A Senhora Elisif ou o Elfo Negro?

O Elfo Negro e ninguém mais, ao que parece disse Ralof, e foi correndo de volta pelo caminho sinuoso, com a maior velocidade que conseguiu imprimir aos pés, passando pelo porteiro atônito, saindo pela porta, e adiante, até chegar perto do portão do Castelo Dour. A sentinela o saudou á sua passagem, e ele reconheceu a voz de Segunivus.

Aonde vai assim correndo, Mestre Ralof? gritou ele.

Procurar Savos respondeu Ralof.

As mensagens da Jarl são urgentes, e eu não poderia retardá-las disse Segunivus ; mas diga-me depressa, se puder: o que está acontecendo? Para onde foi a minha Senhora? Acabei de assumir meu posto, mas ouvi falar que ela passou na direção do Salão dos Mortos junto com Aldis.

É disse Ralof para o Salão dos Mortos.

Segunivus baixou a cabeça para esconder as lágrimas.

Disseram que ele estava morrendo disse ele suspirando , e agora está morto.

Não disse Ralof , ainda não. E até mesmo agora sua morte ainda pode ser impedida, eu acho. Mas a Jarl da Cidade, Segunivus, caiu antes que sua cidade fosse tomada. Está obcecada pela morte, e transformou-se numa pessoa perigosa. Rapidamente contou sobre as estranhas palavras e atos de Elisif. Preciso encontrar Savos Aren com urgência.

Então deve descer até a batalha.

Eu sei. A Jarl me deu permissão. Mas, Segunivus, se você puder, faça alguma coisa para impedir que algo terrível aconteça.

A Jarl não permite que aqueles que vestem o vermelho deixem seus postos por qualquer motivo, a não ser por sua própria ordem.

Bem, você deve escolher entre ordens e a vida de Aldis disse Ralof. E, quanto a ordens, acho que você está lidando com uma louca, e não com uma jarl. Preciso correr. Voltarei se puder.

Saiu numa corrida desabalada, e foi descendo na direção da parte inferior da Cidade. Homens fugindo do incêndio passavam por ele, e alguns, vendo seu uniforme, voltavam-se e gritavam, mas Ralof não lhes dava atenção. Finalmente passou pelo segundo arco, além do qual enormes labaredas subiam entre as muralhas.

Apesar disso, tudo parecia estranhamente silencioso. Não se ouvia nenhum barulho, gritos de batalha ou troar de armas. Então, de repente, houve um berro pavoroso, uma grande batida e um estrondo profundo e retumbante. Forçando-se a avançar, contra uma rajada de medo e horror que quase o derrubou de joelhos, Ralof virou uma esquina que se abria no páteo amplo da cidade. Ficou paralizado. Encontrara Savos Aren, mas recuou, escondendo-se numa sombra.

Desde a meia-noite prosseguia o ataque. Tambores retumbavam. Ao norte e ao sul, as companhias inimigas, uma atrás da outra, avançavam contra as muralhas. Chegavam animais enormes, parecendo edifícios moveis a luz rubra e oscilante, os dragões que não voavam de Hammerfell, arrastando pelas alamedas enormes torres e máquinas, em meio ao incêndio. Seu Capitão já não se preocupava muito com o que faziam ou quantos poderiam ser mortos: seu único objetivo era testar a força da defesa e manter os homens de Haafingar ocupados em vários lugares. Era contra o Portão que ele jogaria seu maior peso. O Portão podia ser muito forte, feito de aço, ferro e bronze, guardado por torres e baluartes de pedra invencível, e apesar disso era a chave, o ponto mais fraco em toda aquela muralha alta e impenetrável. Os tambores retumbaram mais alto. As labaredas subiram com mais força.

Grandes máquinas se arrastavam através do campo, e no meio havia um enorme aríete, grande como uma árvore da floresta, de trinta metros de comprimento, oscilando preso a fortes correntes. Estivera sendo forjado por muito tempo nas escuras ferrarias de Skuldafn, e sua cabeça hedionda, moldada em aço negro, tinha o formato de um dragão voraz; possuía feitiços de destruição. Chamavam-no Meyjunwuth, em memória do Rei Dragão de outrora. Grandes animais o puxavam, draugrs se amontoavam em volta dele, e atrás vinham os trolls das montanhas para manejá-lo. Mas em volta do Portão a resistência ainda era forte, e ali os cavaleiros de Volskygge e os mais resistentes da guarnição se mantinham sitiados. Choviam flechas e lanças; torres de sitio tombavam ou de repente se incendiavam como tochas. Por toda a volta, diante das muralhas dos dois lados do Portão, o chão estava coberto de escombros e de corpos dos mortos; mesmo assim, como se guiados por uma loucura, mais e mais deles chegavam.

Meyjunwuth se aproximava. O fogo não atacava o seu suporte; embora de vez em quando algum dos grandes animais que o puxavam enlouquecesse e espalhasse atropelo e destruição em meio aos incontáveis draugrs que o escoltavam, seus corpos eram jogados de lado e outros tomavam-lhes o lugar.

Os tambores retumbavam alucinadamente. Por sobre os montes de mortos um vulto hediondo surgiu: um sacerdote, alto, flutuante, coberto por um manto roxo e um exoesqueleto dourado. Lentamente, flutuando sobre os caídos, foi á frente, sem se importar com a possibilidade de ser atingido por uma lança. Parou e ergueu uma enorme espada pálida. Assim que fez isso, um grande terror atingiu a todos, defensores e inimigos; as mãos dos homens ficaram imóveis ao longo dos corpos, e nenhum arco zuniu. Por um momento, todos ficaram paralisados.

Os tambores retumbaram e repicaram. Num impulso enorme, Meyjunwuth foi arrastado à frente. Atingiu o Portão. Balançou no ar. Um enorme estrondo retumbou através da Cidade, como um trovão rolando nas nuvens. Mas as portas de ferro e os pilares de aço resistiram ao golpe.

Então o Sacerdote Dracônico flutuou mais alto e poeira voou abaixo de seus pés apodrecidos e descalços e gritou numa voz apavorante, pronunciando em alguma língua esquecida palavras de poder e terror capazes de estraçalhar coração e pedra. Três vezes gritou. Três vezes o grande aríete retumbou. E de repente, no último golpe, o Portão de Haafingar partiu-se. Como se sob o efeito de algum feitiço explosivo, ele caiu aos pedaços: houve um clarão de luz cortante, e as portas se espatifaram no chão.

Para dentro flutuou o Sacerdote Dracônico. Uma grande figura morta contra as labaredas ao fundo, ele assomou, transformado numa enorme ameaça de desespero. Para dentro flutuou o Guardião de Skuldafn, pelo arco que nenhum inimigo jamais atravessara, e todos fugiam diante dele.

Todos exceto um. Esperando ali, imóvel e calado no pátio diante do portão, estava Savos Aren montado em Gelado: Gelado, que era o único entre os cavalos livres da terra capaz de suportar o terror, imóvel, imperturbável como uma imagem esculpida em marfim.

Não pode entrar aqui disse Savos Aren, e a enorme sombra parou. Volte para o abismo que lhe foi preparado! Bo rigir! Caia no nada que aguarda você e seu Mestre. Vá!

O Sacerdote Dracônico jogou para trás o capuz roxo e todos ficaram atônitos: ele tinha uma coroa dourada real, e ela repousava sobre uma máscara de ébano negro, com terríveis olhos estreitos e fechados esculpidos. As labaredas rubras reluziam entre a corôa e os ombros largos e escuros protegidos pela capa. De dentro da máscara veio uma risada mortal.

Elfo tolo! disse ele. Velho tolo! Esta é a minha hora. Não reconhece a morte ao deparar com ela? Dir nu ahrk dur ko naaf! E com essas palavras ergueu a espada, de cuja lâmina escorriam chamas.

Savos Aren não se mexeu. E naquele exato momento, em algum pátio distante da Cidade, um galo cantou. Cantou num tom estridente e cristalino sem se importar com feitiçaria ou guerra, apenas saudando a manhã que no céu, acima das sombras da morte, chegava com a aurora. E como em resposta veio de longe uma outra nota. Trombetas, trombetas, trombetas. Ecoaram fracas nas fronteiras escuras de High Rock. Grandes trombetas do sul, num clangor alucinado. Riften finalmente chegara.