Todavia, não houve forma de verdadeira fuga do preocupante assunto. O fim do jantar trouxe, quase que automaticamente, sua volta . O frio de um céu sem núvens logo invadia as pequenas frestas da pele, roubando o calor dos namorados. Abraçavam-se para tentar manter o clima quente, mas ele simplesmente se fora assim que o casal deixou o restaurante, decidido a seguir a pé em direção a delegacia de polícia mais próxima.

A sincronia de ambos havia sido perdida. Heitor andava em passos firmes e decididos, enquanto Livia vagava assustada, segurando com força o braço do amado. Ela, sem dúvidas, caminhava mais rápido que ele porque, como todos sabem, o medo é uma das melhores formas de se obter maior velocidade. Heitor a segurava com cuidado, passando a mão levemente por seus braços finos. Naquele instante, ela parecia tão pequena e tão desprotegida de tudo.

Aparentava a inocência do medo e, em seus movimentos simples, pedia a ele ajuda. Pedido que inflava o ego do homem. Sentia-se o próprio cavalheiro de longas batalhas, prestes a matar o mais feroz dos dragões para defender a bela moça que, sem qualquer dúvida, o recompensaria com um beijo e talvez até mesmo com algo mais. Sentia-se forte e poderoso, tão poderoso quando os heróis dos quadrinhos que lera quando pequeno. Via-se grande e vigoroso, enquanto Livia, tão indefesa, parecia-lhe precisar de todo o seu poder.

De maneira estranha, o ego do namorado não a acalmava. Continua se sentindo vulnerável, mesmo em seus braços. Sabia que, das sombras, poderia surgir qualquer tipo de criatura bizarra prestes a atacá-la a qualquer instante. Afinal, deveriam haver mais do tipo do homem que invadira a sua casa e, talvez, fossem ainda pior. Sua imaginação pairava à imensidões desconhecidas e surreais. Tinha medo.

Chegaram à delegacia. Livia olhava para Heitor, de cabeça baixa. Heitor olhava para Livia, inflando o peito. Um homem com roupas da polícia estava sentado junto a uma mesa de madeira e observava-os com cuidado, da cabeça aos pés. Os dois formavam um casal bonito e talvez até combinassem.

- Boa noite. - o homem disse com tom imponente.

- Boa noite, viemos aqui fazer um boletim de ocorrência - Heitor se punha à frente de Livia como qualquer cavaleiro faria caso houvesse algm periogo diante deles. Não havia - um homem invadiu a casa de minha namorada e a ameaçou de morte.

O policial abriu uma gaveta e retirou dali alguns papeis. Testou uma caneta no canto da folha e se preparou para escrever algo.

- Nome completo da vítima?

- Livia Buchmann

Perguntaram ainda o endereço, o telefone de Livia e a data do acontecimento. O policial anotava cada detalhe do que era dito, mas aparentava executar uma ação tão banal que a moça se sentia descrente em relação ao trabalho do cidadão. Fora isso, nem mesmo pedira um retrato falado ou uma descrição supérfila do possível assassino. Certamente, não estava lá muito interessado em prende-lo, queria, meramente, preencher a ficha e arquivar o acontecimento aos outros, sem dar a ele grande importância. Como se uma ficha pudesse ajuda-la a sobreviver...

A única pergunta um pouco mais interessante feita fora "O que você presenciou da invasão", mas só porque também constava no que o relatório exigia. A resposta, porém, fez o homem rasgar o papel que tinha em mãos, dizer que era crime gravíssimo fingir passar por uma ocorrência policial apenas para se divertirum pouco. O homem, certamente, não entendia como essa imitação barata de um filme de terror poderia ser real. Já imaginava alguém escalando um alto prédio, sem ser visto, com a intenção apenas de ameaça-la de morte... mas deixar para mata-la em outro dia, afinal, deveria ser bem melhor correr o risco de ter mais alguém em casa e ser visto. Precisava mesmo ter anunciado o dia e a hora para que ela soubesse que deveria fugir e se esconder...

Nada disso fazia sentido para o senhor experiente. O policial dava uma risada sarcástica, mas não deixava de transparecer as feições irritadas pelas rugas que surgiam entre suas sobrancelhas.

- Lembro-me ainda das minhas brincadeiras da juventude. Por isso, vou fingir que não ouvi a falsa denúncia de vocês e deixarei que saiam daqui sem qualquer processo judicial. Fingiremos que esse dia nunca existiu. Mas fica o aviso: se tentarem de novo, não terei a mesma pena.

- Senhor... - Heitor voltava à pose astuta - Eu concordo com você que essa história toda é um tanto quanto estranha, mas, veja bem, olhe para Livia. Ela está realmente assustada. É óbvio que isso não é uma brincadeira. Talvez ela tenha visto mal porque era noite... Mas, com toda a certeza, alguém foi até ela e você precisa fazer algo a esse respeito.

- Nesse caso, sugiro que procurem um psiquiatra. Ele saberá lidar com o medo da sua... amiga? E, com toda a certeza, achará o culpado.

- É minha namorada... Eu já te disse que era. E exijo que você a trate com respeito.

- Desculpe, não estava prestando muita atenção. Enfim, podem se retirar. Tenho muita coisa a fazer.

- O quê? Não acredito que você vai... - Heitor subia o tom, até que Livia o interrompeu.

- Vamos para casa, já estou cansada daqui.

- Tudo bem...

Os dois saíram, em direção ao carro. Naquela noite, seguiram direto para a casa de Heitor. Ele mesmo já estava decidido que ela dormiria ali, onde ele pudesse protege-la.