Crianças Enxeridas

Parte 1: Gelatina Maldita
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O sol entrava pela janela e refletia na saliva escorrendo pela bochecha de Salsicha, o cabelo castanho-claro ondulado embaraçado das excessivas horas de sono. Logo abaixo da cama, deitado tranquilamente, estava seu cachorro e melhor amigo Scoobert, ou, como preferia ser chamado, Scooby Doo.

O celular tocava a Marcha Imperial de Star Wars pela sexta vez, alertando, enfim, os dois amigos que já estavam, outra vez, atrasados para a escola. O garoto levantou apressado, tirou o pijama, e correu para o banho. Já o cão se espreguiçou lentamente, estalou cada articulação do seu robusto e peludo corpo, e bocejou ruidosamente. Era apenas mais uma manhã comum e tumultuada na casa dos Rogers.

Salsicha subiu correndo as escadas( já que seu quarto era no porão da casa) e vai direto na geladeira. Ia pegando o que via pela frente e fosse necessário. Leite, cereal, uma banana. E comeu correndo enquanto sei cachorro o observava. Quando terminou, já se pôs correndo para a porta.

— Minha mochila! -lembrou-se mais viu que seu parceiro já a segurava em sua boca, gesticulando em sua direção. Pegou e ambos saíram de casa, prontos (talvez não dá melhor forma) para um novo dia.

***

Não muitas quadras distantes, ficava a casa dos Blake ( se é que não poderíamos chamar de mansão o imóvel com 600 metros quadrados, feita dos mais finos materiais) lar de uma das famílias mais ricas de Crystal Cove, lar de Daphne, a garota mais bonita e popular do colégio. Mas não era só bonita e não se deixava ser definida por isso. Era corajosa, engajada, simpática. A jovem se admirava no espelho enquanto escovava o longo cabelo ruivo acobreado, seu robe roxo sedoso balançava com o vento que entrava pela sua sacada. Nada podia abalar seu dia, fizesse chuva, fizesse sol. Ela, então, borrifou dois jatos de seu perfume francês favorito (da quarta vez que visitou o país) e desceu a escadaria de mármore de sua casa.

Chegando no andar de baixo, viu seus pais, bem arrumados como sempre, deviam ter seus 45 anos mas eram tão jovens e lindos quanto alguém com 25 anos. Herdara os cabelos ruivos da mãe mas os olhos eram claramente de seu pai. Ela sentou e se juntou ao café da manhã com eles, enquanto Fran, a servente da casa, terminava de por os pratos na mesa.

***

Os dedos de Velma batiam nas teclas do computador enquanto ela digitava em seu blog particular. Aquilo era seu único refúgio, seu porto seguro em casa. Ela podia falar o que pensava, gritar para o mundo sua opinião sem ser censurada pelos seus pais, os Dinkley, os hippies donos do Museu de Assombrações de Crystal Cove.
- Velminha, querida. - cantarolava sua mãe no jardim - Desça aqui para tomar seu café.

A garota se olhou no espelho do armário uma última vez, os cabelos negros e curtos arrumados, os óculos redondos no rosto redondo, a mochila nas costas, pegou um bombom de chocolate escondido embaixo do colchão e correu para a saída sem se despedir dos pais. Embora Velma talvez não notasse, sua mãe ficava bastante triste durante essas manhãs. Prezava muito pela filha e tentava se adequar ao mundo dela, porém a filha era tão fechada quanto um cadeado.

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A porta da van bateu e dentro Fred Jones começou a preparar sua partida. O lenço laranja amarrado no pescoço, a camisa pólo e a calça jeans clara bem passadas, o cabelo loiro sempre arrumado e penteado; Fred não era uma incógnita, cada passo que dava era previsível (ou ao menos era o que todos percebiam) . Sempre alerta e preocupado, ele verificou tudo: as portas, os retrovisores, o rádio, K-Ghoul 101.4 A.M, nenhuma outra. Dirigia sem nunca ultrapassar a velocidade e sem infringir as leis de trânsito. Ele era o certinho, o garoto exemplar e não se esperava nada menos do filho do prefeito. O homem vivia da sua imagem de justo e íntegro, um homem de valores. O filho queria viver à essa imagem. Ou talvez fosse a pressão de todos sobre quem ele deveria ser. De qualquer modo, seguia seu caminho, sempre da mesma forma, à Escola Secundária de Crystal Cove.

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Era mais uma manhã normal na vida de jovens normais vivendo em uma cidade normal com suas vidas e amigos normais. Tirando a existência de um cachorro falante, detetives adolescentes, achados e perdidos, monstros malignos, uma cidade amaldiçoada, tudo estava normal. Embora, para os padrões da cidade, não havia necessidade de desconsiderar esses fatores. Aquela era, afinal, o lugar mais assombroso do mundo, vivia desse título. Mas algo muito pior estava por vir. Até o medalhão aparecer, aquele maldito medalhão, o dia seguiria bem e então tudo mudaria e ficaria complicado. Isto já aconteceu antes, em outra época, com outras pessoas. Era inegável, por onde a maldição passava, o mistério acompanhava.

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Os últimos carros, bicicletas e skates iam sendo estacionados quando o sinal soou para o início da aula. Os corredores cheios e agitados dificultavam a circulação, mas isso não era obstáculo algum para Daphne. A cada passo que ela dava, as pessoas abriam caminho para ela passar, enquanto ela alegremente acenava com a cabeça, o rosto estampado com um belo e branco sorriso. Usava uma saia roxa com um suéteres xadrez rosa e verde. Essa era apenas uma das várias proezas de ser a Presidente da Turma, Capitã do Time de Líderes de Torcida e Garota Mais Popular do Colégio. Daphne sabia do esteriótipo que criavam dela e não se incomodava: seria mais fácil de surpreender a todos a cada ação e decisão sua.

Do outro lado do corredor do segundo andar Daphne pode avistar o resto do grupo: Salsicha, Velma, Fred e Scooby. Uma luz brilhou em seus olhos ao ver Fred. De todos os garotos, ela gostava dele; ele parecia um gênio incompreendido e ela era a única que podia entendê-lo . Ela correu na direção dele, o cabelo ruivo preso por um broche dançando no ar, a destacavam na multidão. Daphne era ela mesma, era única, não se importava com o que os outros podiam dizer, fossem as opiniões positivas ou não. Ela corria atrás de seus sonhos, e Fred era, com certeza, um deles.

***

Era um apelido estranho, Salsicha, mas Norville gostava, era o modo de fazer ele se sentir aceito na gangue. Antes disso, de Scooby, da gangue, Salsicha era apenas um garoto problemático. Tinha dificuldade em todas as matérias, era zombado pelos colegas, não comia direito, e não possuía nenhum amigo para ajudá-lo, para ampará-lo. Havia dias que ele não fazia nada além de dormir e chorar. Cada semana naquele colégio era uma torturaz Contudo, a sorte veio ao acaso e em uma terça-feira de uma semana chuvosa. Ele estava a ponto de desistir tudo, não era como seus pais se importassem com ele. Pegara seu casaco mais grosso e saira pela porta quando ouviu um ruído. Olhou para baixo, perto da cerca do quintal e encontrou a melhor coisa do mundo pra ele. Algo que depois seria mais que um amigo, quase como um irmão. Um filhote de dog alemão chorava e tremia com o frio; estava todo sujo e eriçado.

No momento em que os seus olhos se miraram, aquele rabinho balançando feliz em resposta, a língua para fora e as orelhas em pé, Salsicha soube que havia encontrado um motivo pra ficar ali, o maior motivo. Óbvio que ele não imaginava que, em questão de tempo, o cão, que nomeou Scoobert Scooby Doo iria desenvolver a fala e dividir seu gosto por junk food, mas isso só aumentaria mais o amor de um pelo outro. Foi uma questão de tempo até eles tornarem-se inseparáveis.

A fila da cantina voltou a andar e demandou que a mente de Salsicha focasse em andar pra frente. Serviu-se e foi se sentar com seus colegas em uma mesa próximo a janela. Enquanto olhava para fora, contava as horas pra acabar a aula e poder ver o seu melhor amigo.

***

No final da aula, a equipe reuniu-se para ir até uma pizzaria na Copper Street e comemorar o primeiro dia de aula. O dia continuava maravilhoso, o sol raiava , o céu estava pouco nublado, e os pássaros não paravam de cantar.

— Pizza Parlor! Aí vamos nós! - falou Fred entusiasmado, como se estivessem partindo em direção a uma aventura, e ligou o carro.

O filho do prefeito dirigia distraído pelo centro. Ele, diferente de sua admiradora, Daphne, se preocupava mais com o que os outros pensariam de suas atitudes do que consigo mesmo, pondo sonhos e desejos para trás, e nunca se sentindo satisfeito, nunca se sentindo orgulhoso. Será que seu pai estava feliz por ele? Ele deveria estar. Estava fazendo tudo certo, não? Ele conseguiria entrar em uma faculdade após encerrar o ano letivo? Ele tinha notas boas e fazia parte dos melhores jogadores do time da escola. Ele conseguiria ficar com a garota que vagava pelos seus pensamentos?

— Fred!- exclamou Daphne, agitada e animada Ali! Tem uma vaga ali!

Saindo do transe, o garoto estacionou o carro. Ele sabia do que era capaz, repetia pra si mesmo. Mas qual seria o melhor sabor de pizza para pedir? Com ou sem borda? Não poderia atrasar a fila quando entrasse para fazer o pedido. Talvez todo aquele pensamento fosse nervosismo com o primeiro dia. Entretanto, era o começo de uma crise mental, de um evento gigantesco, que exigiria de Fred decisões extremas.

***

Estufados com tanta comida, a turma resolveu pagar a conta e ir embora. O dia havia sido cansativo e eles não podiam esperar para deitar em suas camas e descansar. Daphne com sua máscara para olhos enfeitada com pedras granada, Velma com sua edição limitada de Orgulho e Preconceito em capa dura, Fred com seu cobertor de algodão azul e Salsicha e Scooby, bem, um com o outro. Situações diversas de conforto transitavam na mente de cada um deles.

Ao chegarem ao estacionamento coberto o tempo começou a mudar. Uma neblina cinza espessa espalhava-se pelo chão, as luzes fluorescentes começavam a falhar, piscando incessantemente, algumas apagando, e tornando o local um tanto assombroso. Quando praticamente todas as luzes haviam estourado e tudo ficou extremamente escuro, um gemido rouco e doloroso iniciou-se, acompanhado de um forte brilho esverdeado emanando de um lado do estacionamento. Conforme o barulho se aproximava da turma, a coisa brilhosa começava a tomar forma. Nunca uma luz na escuridão foi tão perigosa.