Conversão

Amores proibidos


O herdeiro Vieira tinha um sono profundo, bem pesado. Dormia feito uma pedra, parecendo mesmo que hibernava. Contudo, naquele dia seu poderoso sono foi inexplicavelmente vencido:

— Edgaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!!!!!!!!!!!!! – ouviu ele ao seu ouvido, o que o fez despertar bem assustado.

Meio sonso, acordou, e viu na sua frente um amigo seu, velho companheiro de esbórnias:

— Gonçalo! – disse Edgar, um pouco zangado com a intrusão do rapaz. — Que faz você aqui? Como conseguiu entrar?

— Ora! Até parece que você perdeu a memória: você por acaso se esqueceu que sou seu amigo de infância e que sou um frequentador assíduo de sua casa? Faço praticamente parte da mobília! – respondeu o rapaz se rindo. — A criada me disse que você estava fazendo uma sesta e eu resolvi te pregar esta partida! – completou Gonçalo dando uma gargalhada.

— Muito engraçadinho, Gonçalo! – retorquiu Edgar, ainda um pouco zangado.

— Ora Edgar! Não me diga que vai ficar amuado comigo! Foi apenas uma brincadeira!

— Brincadeirinha de mau gosto, isso sim. Meu sono é sagrado… - dizia Edgar se acomodando outra vez no travesseiro.

— Vamos Edgar! Não fica aí dormindo! Te trago um convite…

— Me deixa dormir, Gonçalo…

— Hoje há um baile em casa do Pedro Chaves. Você sabe como é… os pais deles passam a vida a dar festas. São muito sociáveis!

— Baile em casa do Pedro… - retorquiu Edgar. — Mas hoje é Domingo!

— Domingo!! Não! Hoje é Sábado! Edgar, a viagem te deixou com os dias trocados. – respondeu Gonçalo se rindo. — Se você quiser vir, te posso dar carona…

— Tá bom, obrigado. – disse Edgar, que voltou novamente a se acomodar no travesseiro. — Eu vou com você.

— Boa, campeão! Folgo saber que você vai!

— Vai embora Gonçalo… - dizia Edgar já com os olhos fechados, tentando voltar ao seu sono.

— Tá bom, já vou! – disse o rapaz, pegando em sua bengala e em seu chapéu para sair. — Às nove passo por aqui para te pegar. – disse Gonçalo. — Até logo!

— Até logo… - sussurrou Edgar, bem aconchegado em seu travesseiro.

Gonçalo, não conformado com o cansaço de seu amigo, resolveu lhe pregar um susto novamente:

— Edgaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarrrrrrrrr!!! – gritou ele.

O jovem dorminhoco, acordou furioso e lhe atirou com um livro que estava em cima da sua mesinha de cabeceira.

— Seu animal!

Gonçalo, às gargalhadas, fugiu daquele quarto, tendo por sorte conseguido escapar à pontaria de seu amigo.

Assim, Edgar continuou dormindo sua sesta, tentando compensar seu sono com a interrupção que seu amigo lhe tinha feito. O sono profundo voltou a invadi-lo, e para além do sono, também o sonho. Edgar começou a sonhar que estava no campo, num espaço que parecia ser a fazenda da família de sua mãe, em São Paulo. Estava um lindo dia de sol e enquanto contemplava o céu, viu subitamente uma borboleta voando. Ele ficou de tal forma encantado pela beleza da borboleta que decidiu ir atrás dela, desejoso de estar o mais próximo possível. Ele a seguia, chegando a saltar para tentar acompanhar seus movimentos. No entanto, enquanto corria, ele foi inesperadamente impedido por uma força que vinha da terra, que o fez cair no chão. Ele sentia seus pés presos e um enorme desespero tomou conta dele. Queria imenso se levantar, só que não conseguia. Fazia uma força enorme para se levantar, só que não adiantava. Olhava para a borboleta que ele achava tão linda, mas que já não conseguia alcançá-la.

— Edgar! – ouviu ele bater à porta, o que o fez despertar. — Edgar!

Bonifácio o chamava do outro lado, mas Edgar ainda estava meio sonso. Aos poucos foi retornando à realidade, começando de novo a visualizar seu quarto. Se levantou da cama e foi em direcção à porta:

— Sim, papai. – disse Edgar, mal abriu a porta.

— Sua mãe e eu estamos te esperando para jantar. – disse Bonifácio, com um ar repreensivo.

— A mim, para jantar?? – dizia Edgar, bocejando. — Mas que horas são?

— Oito e meia. – disse Bonifácio, vendo seu relógio de corrente.

— Oito e meia!!! – exclamou Edgar. — Meu Deus! Tenho de me despachar!!

— Você tem algum compromisso?

— Gonçalo ficou de me vir buscar às nove… vamos a um baile em casa de um amigo nosso. Tenho que me despachar! – respondeu Edgar, saindo do quarto e correndo em direção à sala, onde apressadamente jantou. Depois de comer, se despediu à pressa de seus pais e subiu de novo para seu quarto para se arrumar.

Ao vestir sua casaca, reparou que estava um pouco mais gordo. As esbórnias e a falta de exercício durante as férias o fizeram aumentar de peso, que ele logo previa perder com o início de sua vida profissional e com o seu retorno às suas habituais práticas esportivas, como o remo, o cricket e a equitação. Edgar Vieira não era propriamente um rapaz vaidoso, mas gostava de ter o mínimo de preocupação com sua aparência.

Enquanto ele se penteava, ouviu lá fora um automóvel buzinando: foi à janela e viu seu amigo Gonçalo, acenando. Edgar abriu a janela e disse:

— Já vou descer!

Edgar saiu então de casa e os dois amigos foram então para o tal falado baile.

A casa de Pedro Chaves estava completamente lotada. Ao que parece os pais deste colega de curso de Edgar eram extremamente ricos e sociáveis, características que lhes permitiam organizar eventos desta dimensão. Quando chegaram, os dois conseguiram cumprimentar Pedro e seus pais, só que o filho dos anfitriões estava recebendo tanta gente, que não conseguiu dar a devida atenção a seus amigos. Gonçalo e Edgar seguiram então em frente em direcção ao salão de baile. Já quando se encontravam no salão, pegaram duas bebidas e ficaram contemplando toda aquela cena festiva.

— Que boa safra de mulheres! – comentou Gonçalo. — Veja só a quantidade de moças solteirinhas sentadas à espera, que uns príncipes como nós as convidemos para dançar.

Acho que vou esconder aquela loira, com o vestido rosa! E você?

— Eu? – perguntou Edgar um pouco entediado.

— Então, não está pensando em pegar uma das moças para dançar?

— Vá você Gonçalo. Eu fico aqui mais algum tempo contemplando as vistas. – respondeu Edgar.

— Tem a certeza?

— Tenho.

— Então sendo assim, até já, meu amigo! – disse Gonçalo, lhe entregando seu cálice de vinho a Edgar.

Todo entusiasmado, Gonçalo convidou a mocinha loira para dançar, que tão contente ficou com o convite. As outras, porém, ficaram na expectativa que o outro rapaz também fizesse o mesmo, pois ele as estava observando. Todavia, Edgar não se sentia particularmente motivado a dançar com nenhuma delas: quase todas elas eram bonitas de fato, mas não tinham brilho nenhum nos olhos. Lhe pareciam todas iguais: arranjadinhas, obedientes, passivas, recatadas… o protótipo da mocinha ideal para a maioria dos homens. Mas para Edgar, aquele estilo não era de forma alguma o tipo de mulher ideal, muito pelo contrário: ele as estava olhando e estava entediado com toda a superficialidade delas. Por isso, para quebrar o tédio, decidiu dar uma volta e conhecer outros cantos da casa. A fuga daquele rapaz bonito, loiro de olhos verdes, foi para as meninas um desconsolo, mas para ele um alívio.

A casa de Pedro era majestosa. Era visível ao percorrer suas divisões a poder e a influência social que aquela família tinha na sociedade. Edgar se afastou assim do salão de baile, indo em direcção a salas adjacentes, muitas delas salas de estar, onde estavam alguns convidados conversando.

No final do corredor dessas mesmas salas, havia uma última, que ao contrário das outras, não tinha as portas totalmente abertas. Movido pela sua curiosidade, resolveu ir tentar desvendar aquele mistério. Ao chegar perto, reparou que a porta estava um pouco aberta, deixando apenas uma pequena fresta e que de lá saía uma luz. Sorrateiramente, ele abriu a porta e assim desvendou o tal mistério: era uma biblioteca, que como era óbvio não estava vazia, porque senão a luz não estaria ligada. Uma moça empoleirada num banco, estava vendo e pegando alguns livros nas estantes. Quando entrou, Edgar só a viu de costas, mas dava para ver pelos trajes de festa que era também uma convidada. Ele ficou observando o comportamento dela: induziu que ela tivesse procurando por algum livro específico. A uma dada altura ela pegou um livro, e ao contrário do que tinha feito com os outros, não o voltou a colocar na estante. Aí, ela desceu do banco e se virou e então ficou frente a frente com Edgar, o que o deixou um pouco embaraçado e ela um pouco assustada:

— Senhorita, me perdoe! – disse Edgar. — Acabei agora mesmo de chegar.

— O senhor! Estava aí? – perguntou a moça um pouco incomodada.

— Como lhe disse, acabei agora mesmo de chegar. Me desculpe se a assustei. Como é óbvio, não era minha intenção. – tentava-se desculpar Edgar.

— Não tem problema. – disse ela, um pouco mais tranquila, mas ainda um pouco desconfiada.

— O meu nome é Edgar Vieira. – disse ele, lhe estendendo a mão. — Posso saber o seu?

A moça ficou um pouquinho relutante, mas acabou por responder:

— Me chamo Laura.

— Laura?

— Sim, Laura Camargo.

— Nome bonito. – retorquiu Edgar, encantado com o jeito da moça. — Mulher de Dante.

— De Petrarca. Beatriz é que era a mulher de Dante. – corrigiu a moça, o que deixou Edgar um pouco sem jeito.

— Me desculpe a minha ignorância. – retorquiu Edgar envergonhado.

— Não tem mal. – respondeu ela sorrindo, o que deixou Edgar mais à vontade.

— Vejo que a senhorita gosta de ler. Presumo que leia bastante?

— Adoro! – respondeu ela. — Vim justamente aqui à procura de um novo livro para ler. O tio Estevão me empresta imensos livros.

— Tio? Você é então prima de Pedro?

— Não. – respondeu ela se rindo. — Seus pais são muito amigos de meus pais e sempre os tratei por “tios” devido à enorme afinidade que sinto por eles.

— Ahh… compreendo. – respondeu Edgar, achando graça à justificação da moça. — Eu também gosto muito de ler e como me disseram que havia aqui uma biblioteca, resolvi vir aqui explorar, tal como a senhorita.

— Esta biblioteca é fantástica! – dizia Laura, se sentindo maravilhada com o espaço. — Quando venho cá com os meus pais, venho sempre aqui.

— Bem se vê o seu interesse pela leitura. – respondeu Edgar entusiasmado com a conversa. — Se não é indiscrição, qual o livro que a senhorita escolheu?

— É um romance histórico de Alexandre Dumas: A Rainha Margot.

— Brilhante autor! – retorquiu Edgar impressionado. — A senhorita por acaso já leu a obra A Dama das Camélias, que foi escrita pelo filho dele?

A Dama das Camélias ?

— Conheço a história, até porque já vi a Traviata. Mas nunca fiquei muito motivada a ler.

— A sério? Porque será? É que é uma história de amor tão bonita! – dizia Edgar encantado ao se recordar do livro.

— Não me agradam as histórias de amores proibidos, Sr. Vieira. – respondeu Laura com convicção. — Deve ser por isso.

Um súbito medo invadiu o coração de Edgar no momento em que Laura lhe falou em “amores proibidos”. Os poucos minutos que ele estivera com ela fê-lo sentir um “contentamento descontente” que nunca antes tivera sentido na vida. Se lembrara daquela borboleta que ele vira em seu sonho, por quem ficara tão deslumbrado. Ele tinha vontade de conhecer Laura, de ficar perto dela. Porém uma assombração de seu recente passado atormentava este seu desejo presente e este seu sonho futuro.