Contingente

1º - A verdade não precisa de garantias


Dentro do ônibus, a caminho da escola, me sinto levemente nervosa, mas dentro de mim ainda é calmaria, como sempre foi. Um membro da minha facção é cercado de paz constante, mesmo durante tempos difíceis, nosso símbolo ainda é a inabalável harmonia com que as coisas fluem. Por isso sorrio para meu irmão, Benton, que está ao meu lado segurando carinhosamente minha mão em seu colo.

Ele sempre foi bom nisso, essa coisa de se manter calmo. É um autêntico membro da Amizade. Talvez eu esteja divagando, mas consigo imaginá–lo ocupando o lugar de Johanna futuramente. Ele reage tão natural ao comportamento que aprendemos durante nossa vida que me leva a questionar por quê alguns ainda se transferem. Afinal, ele não é mais capaz do que todos eles, ou do que eu mesma, apesar de às vezes sentir que preciso sempre fazer esforço para honrar minha facção.

Mas tento não me concentrar nisso, para que meu irmão não perceba minhas palmas suadas. Não que eu não confie nele, eu confio, eu só não gosto de transparecer minha fraqueza. Ultimamente tenho me sentido mais vulnerável quando penso no futuro, e essa preocupação constante tem comprometido minha estabilidade emocional. O controle das emoções é uma das primeiras coisas que aprendemos com a família. A Amizade acredita que cidadãos equilibrados são mais sensatos em suas decisões, e por isso o autocontrole é o primeiro passo para a paz coletiva. É uma filosofia que faz sentido pra mim, e percebo que não tenho razões pra estar ansiosa. Hoje farei o teste, e o resultado vai ser Amizade, me dizendo que amanhã devo derramar meu sangue na terra. O teste é exato porque se baseia na nossa personalidade, e a Amizade faz parte de mim, tanto quanto eu faço dela.

Fico imaginando como deve ser não ter essa certeza, como foi para minha irmã Bianca. Depois da transferência dela, minha união com Benton se tornou mais forte. Sua partida mexeu muito comigo, eu definitivamente não esperava por aquilo, na verdade nenhum de nós esperava. Nossos pais sofreram como se a houvessem literalmente perdido, para a própria morte. Contudo, não foram vê–la no Dia da Visita e ainda proibiram a mim e ao meu irmão de ir. Quando os questionei, disseram que se ela honestamente apreciasse nossa companhia, não teria nos traído.

É comum que as facções chamem de traidores aqueles que se transferem. Eu não concordo, afinal, a pessoa tem que respeitar o resultado de seu teste, ainda que ele a leve a se afastar da sua família. "Facção antes do sangue". Se não fosse assim, nem haveria a necessidade de uma escolha. Todos permaneceriam na facção de origem e fim.

Mas é claro que os meus pais não pensam assim, eles são muito conservadores. E é mais claro ainda que eu não contra-argumentei. Eles nunca cederiam, me repreenderiam e de qualquer forma essa é uma atitude que perturba a paz. Então eu me calei, nem concordando nem discordando. Não iria desafiá–los, mas também não fingiria concordar, não acho isso correto.

Desde então, nunca mais falei com minha irmã mais velha. Eu já a vi de longe, distribuindo comida entre os sem-facção, sua nova obrigação. Mas Benton nunca permitiu que eu fosse até ela. Não cheguei a perguntar, mas apostaria que foi meu pai que o obrigou a agir assim. Não entendo o que ele quer com isso. Punir minha irmã por sua decisão, impedindo a comunicação entre a família? Mas é injusto, ela não teve escolha. Seu teste apontou Abnegação, e ela obedeceu. Nossa postura bondosa não deveria dar margem para que ele fosse assim tão punitivo. Mas tenho a impressão de que é algo mais forte, como se estivesse no fundo de si mesmo e suplantasse a Amizade dentro dele. Mas eu o amo, mesmo quando expressa esse seu lado menos pacífico. Por isso não toco no nome dela quando nos reunimos para comer, seria uma atitude perturbadora. Isso não significa que eu não pense nela constantemente.

Ah, Bianca, por que você se transferiu? Por que se afastou de nós? Como foi possível que seu teste apontasse uma facção diferente daquela que você viveu com tanta clemência? Por que sua mudança de facção gera tanta revolta? Como haverá paz, onde há ressentimento? Essas são perguntas que martelam na minha cabeça todos os dias, e eu ainda não sei quando vou conseguir as respostas.

***

Entro no prédio escolar com o braço enlaçado no de Benton. Apesar de ser uma atitude normal para a Amizade, pessoas das outras facções já perguntaram se éramos namorados. Nem todas as facções são familiarizadas com demonstrações de afeto público. A Abnegação, por exemplo, nem sequer dá as mãos, mesmo marido e mulher. Erudição e Franqueza são meio que neutros em relação a isso. Os mais aparentes são Audácia e Amizade. A Audácia mais do que nós.

Ele me acompanha até a minha sala, onde terei aula de História das Facções, que é a minha preferida.

— Te vejo antes do teste. - ele sorri pra mim e segue o corredor para sua sala.

Somos de turmas diferentes porque ele é um ano mais velho. Por regra, ele deveria ter feito sua escolha no ano passado, mas alguns dias antes, Benton contraiu uma doença contagiosa, e precisou ficar 3 semanas em isolamento, tomando medicações. Por causa disso, ele perdeu a aplicação dos testes de aptidão e todas as turmas de iniciação já estavam no meio do processo. Nossos pais tiveram que fazer uma apelação ao Conselho para que Benton pudesse ser acolhido por mais um ano na Amizade e no ano seguinte participasse da cerimônia. Foi muito burocrático, porque as regras das facções são muito rígidas, mas ele conseguiu autorização, e por isso faremos a escolha juntos.

Isso aconteceu por acidente, mas algumas pessoas viram como uma vantagem, pensando que Benton teria uma ano a mais para se preparar e ficar com a família. Isso despertou olhares maldosos de alguns colegas da escola. Não da nossa facção, afinal a Amizade despreza qualquer tipo de cobiça, inveja e ciúmes, que interfira na gentileza entre as pessoas. No entanto, entre as outras facções fica claro que nós dois não somos muito populares, mas não nos deixamos incomodar.

Continuo parada na porta, seguindo–o com os olhos até perdê–lo de vista. Vejo uma menina sendo empurrada por um garoto da Erudição. Ninguém oferece ajuda a ela, uma Careta. Tão logo esse pensamento me vem à mente, fecho os olhos com força, repreendendo a mim mesma por chamá–la, mesmo que mentalmente, por um apelido ofensivo. Como se já não bastassem todas as fofocas dirigidas à sua facção, ainda ter que suportar esse tratamento frio. Eu deveria ser gentil com ela. Deveria ir até ela e perguntar se está bem, oferecer um sorriso. Mas eu apenas entro e me sento em uma carteira. Quando aquele rapaz que a empurrou passa por mim, o encaro, mostrando desaprovação. Ele se incomoda, e olha pra mim com uma cara feia.

***

Os testes começam depois do horário de almoço. Me sento com Benton, nossos primos, Joshua e James, e duas irmãs, vizinhas deles.

— Acho que vão nos fazer um monte de perguntas. Para descobrir nossa opinião sobre as facções.

— Mas como vão saber se estamos falando a verdade? - Uma das meninas pergunta para Joshua.

— Podem usar um polígrafo. Ou aplicar o soro da verdade.

— Isso não existe, é só uma ameaça pra Franqueza manter todo mundo falando o que está pensando. - James diz descrente.

— É claro que é real. É por isso que os julgamentos funcionam. - Joshua afirma.

Estamos conversando sobre o teste quando as duas pedem licença, saem da mesa e se juntam a outras meninas em um círculo no chão do refeitório, para alguma brincadeira de roda.

— Vem conosco, Bariel? - elas me convidam.

— Obrigada, mas eu prefiro relaxar um pouco antes do teste.

— Está tão nervosa assim? - Joshua me pergunta dando uma mordida em uma maçã verde.

— Não muito. - dou de ombros. - Só não quero correr o risco de passar mal, ou coisa parecida.

— Bariel sempre foi mais suscetível a desmaios. - Benton reforça minha desculpa.

O encaro em agradecimento. Ele se aproxima e comenta apenas para mim.

— Nunca vi você tão centrada. Está ansiosa como nunca te vi antes.

— Não é pra menos. O teste vai mudar nossas vidas.

— Você acha?

— Você não? - ele meneia negativamente.

— Do que você tem medo? - abaixo a cabeça e me calo. Não posso contar que, apesar de me sentir confiante, tenho medo de pertencer a outra facção.

— Tem medo de que seu teste não aponte Amizade? – Ele sussurra. Ergo os olhos e pondero se devo ou não compartilhar esse pensamento com ele.

— Talvez ele não aponte. - dou de ombros.

— Bay, você passou 16 anos vivendo perfeitamente na Amizade. Porque seria diferente agora?

— Quem garante que nos conhecemos tão bem assim se precisamos passar por um teste para determinar nossa facção?

Ele me encara por um tempo, como se estivesse me analisando, então me abraça e beija minha testa.

— A verdade não precisa de garantias, Bay. Mas você precisa estar pronta pra ela.

Ficamos abraçados por um tempo, não sei quanto, mas nunca parece ser o suficiente pra mim. Nos separamos quando nossos nomes são chamados. Nos levantamos e caminhamos até o corredor. Antes de entrarmos nas respectivas salas, ele segura minha mão e aperta com força. Sorrio como agradecimento, pois sei que ele faz isso para me tranquilizar. O engraçado é que 16 anos de treinamento não parecem ter me preparado para fazer isso por conta própria, ainda mais no dia mais importante da minha vida.

***

Dentro da sala, um homem da Abnegação sorri discretamente para mim assim que entro. Fico parada com a mão sobre a maçaneta, observando o cômodo coberto uniformemente de espelhos pelas paredes. Ele nota minha hesitação, então vem até onde estou e gentilmente fecha a porta por mim.

— Por aqui. - ele estende os braços para uma robusta cadeira reclinada, indicando que devo me sentar nela. Faço isso, ajeitando minha saia longa vermelha.

— Não precisa ficar preocupada - ele comenta, enquanto ajusta algo na máquina ao lado da cadeira. - É apenas uma simulação visual, não pode te machucar. - conecta alguns eletrodos nas minhas têmporas.

— Na verdade não é com a simulação que eu me preocupo, mas obrigada. - faço uma pausa, e espero que ele pergunte do que tenho medo realmente, mas daí me lembro que membros da Abnegação não podem ser curiosos, então ele não irá perguntar. - Tenho medo do resultado.

— Relaxe. - ele me dá um olhar terno enquanto coloca os fios nele mesmo, e liga ambos à máquina.

— Beba. - me estende um copo com um líquido azul. Deve ser como somos induzidos no teste. Engulo o líquido, que não é muito gostoso, devo dizer. Meus olhos ficam pesados e a última coisa que penso é se o gosto disso também faz Benton se lembrar do remédio para dor de garganta que tomamos quando crianças.