Abro os olhos um segundo depois, e estou em pé sozinha na sala. À minha frente, uma mesa, com dois cestos em cima. Olho ao redor, procurando o homem que me atendeu, mas parece que ele não está aqui.

— Escolha. - uma voz feminina diz em algum lugar atrás de mim. Me viro e não vejo ninguém. Olho para todos os lados, procurando quem possa ter dito isso, mas não há ninguém, nem nada que possa ter produzido som. Não há câmeras. Caminho pela sala, e noto que agora ela está coberta de espelhos por todos os lados, até no teto, e o chão é de vidro.

— Escolha. - ela repete. Seu tom é neutro, não vem de um lugar específico da sala e é imperativo. Deve fazer parte do teste, então eu devo obedecê-la.

Me aproximo dos cestos e olho dentro deles. Em um há um pedaço de queijo, no outro, um facão. Olho ao redor e continuo sozinha. O tempo está passando. Preciso de calma. Fecho a boca, respirando apenas pelas narinas. Deixo o ar entrar em meu corpo lentamente, e expiro com calma. Sob estado de ansiedade a respiração tende a ficar rápida e superficial e a pessoa frequentemente tem a sensação de não ter ar suficiente. É como um calmante natural, um típico trabalho de auto-gerenciamento. O ideal é fazer por um minuto, mas não tenho o luxo desse tempo.

— Escolha. - a voz ordena, dessa vez com mais urgência, ela está tentando me apressar.

Analiso os dois objetos. Se ela, quem quer que seja, quer que eu escolha, significa que algo vai acontecer e eu vou precisar deles. Isso significa que um dos dois pode ser útil, e o outro não, ou nem tanto. Mas eu não sei qual será a situação para saber qual é o objeto certo. Então tenho que decidir qual deles seria útil no maior número de situações que eu conseguir imaginar. Vamos pensar. Queijo significa comida, sobrevivência. Mas não vou ficar aqui por muito tempo. A faca significa proteção, auto-defesa. Se eu tiver que lutar com alguém, uma faca só seria útil se eu soubesse como manuseá-la. Posso pegar o queijo. Mas se eu precisar abrir alguma porta, com uma faca é mais fácil. Não sei o que escolher, quando nenhuma das duas parece ser a melhor opção.

— Escolha agora! - ela grita, impaciente.

— Estou pensando! - grito de volta, sem saber para quem. Sua insistência apenas atrapalha meu raciocínio. - Droga. - não tenho certeza, não sei! Fecho os ohos, e sem pensar direito enfio a mão no cesto com a faca.

De repente, um cachorro grande aparece no lado oposto de onde estou, e percebo que ele está raivoso. Mostra os dentes, a postura está rígida e os pelos estão eriçados. Ele rosna enquanto caminha até mim devagar. Eu tenho uma faca, mas não irei usá-la. Não quando não preciso dela para me defender. Como impedir um cão furioso de te morder? Ele só vai me atacar se eu for uma ameaça. Para parecer inofensiva, me viro calmamente de lado, para não encará-lo. Bem sutilmente, solto a faca, que cai no chão, cruzo meus braços sobre o peito, para evitar que ele morda minhas mãos. Espero que isso resolva, porque digamos que não tenho muitas outras opções. Usando minha visão periférica, vejo que ele se acalmou, e parou de avançar na minha direção. Me sinto aliviada, mas não relaxo completamente, para que ele não fique bravo de novo. Estranhamente isso acaba acontecendo, e ele se prepara para atacar, mas não está olhando pra mim.

— Cachorrinho! - me viro e vejo uma criança com um vestido branco sorrindo.

Ela é muito pequena para saber como se proteger dele. Ele late alto, e o que a faz se assustar e correr para o outro lado. Péssima ideia. Nunca dê as costas para um animal enfurecido, isso desperta seu instinto de caçar a presa. Ele corre atrás dela e de súbito ouço a voz do homem que me atendeu. “É apenas uma simulação visual. Não pode te machucar” Se não pode me machucar, a ela muito menos. Tento me convencer disso quando vejo-o encurralando a garota contra a parede, mas é muito difícil. Tudo parece tão real, e eu não sei se estou a fim de ver uma menina ser atacada na minha frente. Então uso meu próprio argumento para justificar uma ação diferente. Não pode me machucar, nem a garota, nem o cachorro. Deve ser mais fácil lidar com a morte de um animal do que de um ser humano, mesmo em simulação. Mantenho isso em mente enquanto pego a faca ao lado do meu pé e fecho os olhos para não ter que vê-la se cravar em seu corpo e derrubá-lo.

***

Ao abrir os olhos novamente, ele não está mais lá. Nem a menina. Nem eu estou no mesmo lugar. Estou sentada na areia, cercada de água, eu estou... em uma ilha. Me levanto e olho ao redor. É uma ilha pequena, consigo ver a praia do outro lado a alguns quilômetros.. Não estou aqui por acaso, algum elemento deve aparecer a qualquer hora. Olho para o mar, e não há nenhum barco à vista. Pelo resto da ilha não há sombra, apenas o coqueiro que está acima de mim. Ando um pouco para a frente, então tropeço em alguma coisa. Me agacho e pego uma garrafa que, pelo vidro,, vejo que tem um papel dentro. Ela está tampada por uma rolha, que não consigo abrir puxando. Vou até o coqueiro e a atiro contra ele. Os estilhaços se espalham pela areia, e pego o bilhete entra os cacos.

"Três dias."

Três dias? O que isso quer dizer?

— Bariel! - uma voz muito familiar me chama, e ao me virar vejo Benton em pé a poucos metros de mim. Isso me faz sorrir, mesmo confusa. Ao seu lado direito há uma grande garrafa com água. É isso! Devo escolher entre eles, presumindo que vou passar três dias aqui. Água. Estou cercada dela, mas a água salgada do mar não pode ser bebida. Benton. Ele é a pessoa mais próxima a mim. Ele é tudo o que quero agora. Mas nem tudo o que queremos, é o que precisamos. Sei que se escolhesse que ele ficasse comigo, nós dois morreríamos de fome ou de sede. Se ficar com a água, consigo sobreviver por três dias, e Benton não precisa ficar nesse lugar estranho. Por mais que seja difícil, é minha melhor opção.

Sorrio para ele quando pego a garrafa de água e vejo sua imagem se desfazer na minha frente. Então estou sozinha de novo.

***

Novamente, fui parar em outro lugar. Estou dentro de um ônibus, sentada ao lado de um senhor lendo o jornal. Suas mãos estão deformadas, talvez tenham sidos queimadas com fogo, ou com ácido. Como me ensinaram, eu não deveria notar isso. Mas eu noto.

— Você conhece esse sujeito? - ele pergunta. Noto raiva em sua voz. Ele aponta para a foto na primeira página do jornal. Na manchete está escrito: “Assassino Brutal é Finalmente Preso!”. Isso me assombra, e me distraio de responder.

— E então? - ele diz, cada vez mais irritado. Olho para o retrato. Eu sei quem é. Sinto que sei. Mas também sinto que revelar isso é perigoso. - Você o conhece ou não?

— É um rosto comum. - tento ganhar tempo, ainda pensando no que devo dizer.

— Não me enrole! - ele vocifera.

— Talvez eu tenha visto por aí... - tento não deixar que meu medo apareça na minha voz.

— Você está mentindo!

— Não, não! - eu realmente não gosto que me acusem de mentir. Eu não sou o tipo de pesoa que mente. - Não estou.

— Então me diga se o conhece.

Respiro fundo olhando fixamente nos olhos daquele homem. Não posso mentir para ele. Talvez algo terrível aconteça, talvez comigo, mas eu não posso. Simplesmente.

— Sim. Eu o conheço.

***

Acordo mais uma vez em lugar diferente. Imagino que haverá mais um teste, quando aquele homem da Abnegação se aproxima de mim.

— Acabou? - pergunto preocupada. Ele tira os eletrodos das minhas têmporas.

— Sim. - ele responde e percebo que está suando.

— E então? - não sei o que deve acontecer agora, se ele me dirá o resultado, ou me entregará alguma coisa.

— Menina. Preste muita atenção. - ele está pálido - Não deve contar a ninguém o que vou lhe dizer. Não é agora, nem amanhã. É pra sempre. Nunca, nunca, diga seu resultado a ninguém, está me ouvindo? É importante para sua própria segurança que guarde isso com você.

— Isso o quê?

— Seu resultado foi... incomum. O teste trabalha com um sistema de eliminação. De acordo com as suas decisões, conclui-se quais facções não combinam, até que fica apenas uma. Mas o seu teste... não foi dessa maneira.

— O senhor poderia me explicar melhor?

— Veja, escolher a faca demonstra aptidão para Audácia, e escolher o queijo, para Amizade. Você pegou a faca. Mas quando o cachorro apareceu, você não a usou de primeira e sua estratégia sugere alinhamento com a Erudição. Na ilha, você não escolheu a companhia, o que elimina de vez a Amizade, e como você escolheu a água, mais uma vez é confirmada sua aptidão para Erudição. E no ônibus, ao dizer a verdade, com certeza você é da Franqueza. De um modo simples, você apresenta aptidão para três facções: Audácia, Franqueza e Erudição. Pessoas como você são... Divergentes. E é isso que você não deve revelar. Ser Divergente é correr perigo de vida. Volte para a mesa, aja normalmente, e não diga isso para ninguém.

— Mas... o que devo escolher amanhã? - pergunto apavorada

— Agora depende de você. Tenha prudência.

Estou me levantando para sair quando ele fala comigo de novo.

— Preciso registrar manualmente um resultado. Qual deles você quer que eu coloque?

— Franqueza. - digo sem pensar muito a respeito. Ele acena e saio da sala.

Me sento em uma mesa diferente da que estava antes. Não conseguiria fingir naturalidade com todos ao meu redor. Começo a refletir sobre o que acabou de acontecer. Divergente. Três facções ao invés de uma. Audácia. Franqueza. Erudição. Meu segredo. Para sempre.

***

Mais tarde, já em casa, me jogo na cama. Sinto como se tivesse corrido uma maratona, porque meus músculos doem imensamente. Isso deve ser por causa de toda a tensão que passei hoje. Tudo por culpa do resultado do meu teste de aptidão. Aquele resultado tão raro e perigoso. Talvez meu dia só não tenha sido pior por causa de Benton. Tão logo nos encontramos, ele notou minha preocupação, mas foi discreto ao me acompanhar até em casa mais cedo. Quando chegamos, tomei um chá de maracujá calmante, e assim que “melhorei”, nossos pais nos enviaram ao pomar, para não ficarmos de bobeira. Estávamos colhendo pitangas e romãs, quando ele finalmente tocou no assunto.

— Posso saber o que te deixou tão tensa?

— O teste... - me dói não contar a verdade. - o que aconteceu nele.

— Algo em específico? - ele pergunta casualmente.

— Ora, você sabe, viu as mesmas coisas que eu. - talvez seja impressão minha, mas depois se saber que sou da Franqueza, mentir se tornou mais difícil. Principalmente para o Benton.

— Está certa. Não foi uma experiência muito... agradável.

Permanecemos em silêncio apanhando as frutas, Benton agindo naturalmente, mas sei que ele está desconfiado de mim.

— Sabe, você estava no meu teste. - ele conta um pouco vacilante. Meus olhos se arregalam um pouco, mas isso não deveria ser uma surpresa.

— Você também estava no meu. - Não me senti muito segura revelando isso, mas ele é meu irmão, e também disse algo sobre seu próprio teste.

Minha cesta se enche, e espero Benton terminar se preencher a sua enquanto observo o pôr do sol. Ele é tão bonito, alguns raios de sol se destacam no céu amarelado surgindo por detrás de uma nuvem. O pensamento de que talvez nunca mais veja paisagens assim me faz colocar a cesta no chão e abraçá-lo com muita força, talvez mais do que em toda minha vida. Ele leva um susto e acaba se desequilibrando e derrubando a cesta quase cheia. Mas ele retribui, tão forte quanto eu, e ficamos assim por um bom tempo, calados.

— Promete que vai se cuidar, Bay.

— Claro. - Fico confusa. Por que ele estaria me dizendo isso? Será que ele sabe do meu resultado?

— É sério! - Ele segura meus ombros e olha no fundo dos meus olhos. - Seja lá qual for sua escolha. Só... se cuida.

Relaxo um pouco. Ele não sabe que sou Divergente, mas ele desconfia que vou para outra facção. Meu coração dói por pensar que ele está certo.

— Pode deixar, Ben. Eu vou.

Minha promessa é sincera. Não apenas porque é para o meu irmão e porque eu o amo muito. Mas também porque para onde vou, eu não terei outra escolha a não me cuidar. E é melhor que eu consiga.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.