[1] Acordar cedo e outros pesadelos existenciais

Estamos tão próximos que consigo ver as rajadas azuis de um tom mais escuro dos seus olhos. É totalmente hipnotizante o olhar, mas mesmo que eu tente não consigo chegar mais perto. Uma fumaça se forma na pouca distância entre nós, parece frio aqui mesmo que não consiga sentir direito outras sensações além do meu coração batendo acelerado.

Tento tocá-lo mais uma vez e um choque percorre meu corpo, quero perguntar qual seu nome, mas minha voz não sai. Consigo olhar ao nosso redor e vejo as árvores balançando como se estivessem prestes a enfrentar uma tempestade e o céu não parece céu. Tudo é tão estranho, mas ao mesmo tempo é tão certo que...

— Harry!

O grito vem junto com a água gelada direto na minha cara e me levanto meio atordoado, pronto para lançar qualquer feitiço de proteção que vier na minha mente. Gemma está parada com os braços cruzados e seu típico sorriso, aquele sem mostrar os dentes.

— Eu poderia te transformar em um rato, sabia disso?

Ela revira os olhos e quero lhe dizer o quão borrado está sua maquiagem, mas talvez ela deva sair parecendo um guaxinim feio depois de me tacar água.

— Você está atrasado e a menos que queira mamãe surtando e aparecendo no meio desse quarto, acho melhor ir se arrumar.

Droga! Olho para o relógio na parede e percebo que tenho menos de cinco minutos para chegar, dormi enquanto pintava as unhas e agora está tudo um borrão. Não dá tempo de me trocar e sinceramente meu pijama de flanela é bem confortável para a aula de fotografia.

— Harry, a quanto tempo você não arruma isso? — Gemma empurra alguns grimórios com o pé e eu acho uma das cartas de tarot que tinha perdido — e não penteia o cabelo? As pessoas costumam fazer isso.

Jogo um travesseiro em sua direção, mas ela só estende a mão e ele voa para o outro lado. Seu objeto magico é uma luva de seda bem mais práticas que meus anéis. Gemma mostra o dedo do meio e a língua antes de sair do quarto.

Meu celular apita e vejo a mensagem de Niall perguntando qual a confusão me meti dessa vez, não tenho tempo para responder. Fecho a porta e volto pro fundo do quarto, tiro a toalha jogada sobre o espelho e encaro o retângulo todo preto. Murmuro um feitiço baixinho e consigo ver o banheiro da faculdade, foco em uma das cabines e logo estou parado perto de um vaso sujo.

Sinto o frio na barriga do teletransporte e engulo a vontade de vomitar ali, faço isso desde sempre e não consigo me acostumar. Minha cabeça começa a doer e já espero a ligação furiosa da minha mãe assim que receber o sinal que a magia liberou. Estou cansado de ter que levar essa vida "normal" por um motivo que ela não conta para nós. Atendo o celular antes dele completar o primeiro toque.

— Cadê você? Tá cheio de gente nova aqui e eu estou enlouquecendo.

— Bom dia pra você também, Niall. Dormiu bem? Chego daqui dois minutos, você vai sobreviver.

Saio da cabine e evito meu reflexo no espelho. Assim que saio do banheiro é como se tivessem ligado todos os sons do planeta e levo um susto. A maioria discute sobre o lugar da festa de boas-vindas e escuto até alguns dando notas idiotas para os novatos, sinto vontade de usar algum feitiço que ajeite minha aparência, pelo menos o lápis no meu olho, mas isso seria abusar totalmente da sorte. Apresso e passo e entro com tudo na sala, a maioria está de costas e não se assusta com minha entrada brusca.

Niall vem em minha direção, tem uma mecha azul adorável no seu cabelo, ele me dá um abraço rápido e sinto cheiro do sabonete de sempre.

— Até que enfim, mandei uma mensagem pra Gemma, mas ela me respondeu com essa sua foto babando.

Ele me mostra o chat e me sinto mais feliz de não ter avisado nada sobre a maquiagem dela. Meu celular começa vibrar e antes de desbloquear consigo ler uma das últimas mensagens que minha mãe me mandou.

Mãe: aproveite sua última noite sozinho no apartamento, estou cansada das suas atitudes irresponsáveis e você vai ter que dividir o quarto com algum aluno novo. Já conversei com o diretor e ele adorou a ideia.

Isso só pode ser gozação com minha cara, não posso dividir meu espaço com alguém. Será que ela tem noção das coisas que eu preciso fazer nú? Quero mandar uma resposta cheia de drama, mas Niall me da um beslicão e aponta para a porta. Há dois alunos parados ali, um deles está de lado e consigo ver que seus lábios são bem rosados e carnudos. A cor de suas roupas são a mesma: preto e ele tem alguns anéis nas mãos, parecidos até demais com os meus. Estou encarando sua mão que tem uma tatuagem de andorinha quando ele finalmente olha para mim e quando nos encaramos eu sei: ele é um bruxo também.

Sinto o refluxo voltar e engulo o gosto ácido, será que ele também está fugindo ou isso significa problemas? O bruxo cutuca o amigo que está meio de costas e vejo que Niall está acenando, os chamando para perto. Quando o outro se vira, sinto meu coração acelerar e não consigo me desprender daqueles olhos azuis. É o mesmo garoto dos meus sonhos. E ele está do lado de um bruxo.