Dia 56

Liam inspirou fundo e olhou sua gravata verde no espelho.

E exalou.

—Perfeito. - Kevin declarou para quem ainda estivesse com dúvidas. -Um perfeito príncipe irlandês. - Seu olhar direcionou-se para a expressão deprimente de Liam Éire. O estilista revirou os olhos e estalou a língua. - ...Ou ao menos o melhor que eu posso fazer.

Com duas batidas educadas, Gustav Walsh entrou no cômodo e observou se Liam já estava pronto.

—Está na hora, alteza. - Ele informou com uma voz segura e significativa. Liam precisava ir.

Por que isso é importante mesmo? - Questionou o jovem.

Imagem pública. - Walsh relembrou com certa severidade. Era para o príncipe manter esse motivo em mente.

Ele saiu sem dizer mais nada, mantendo sua postura elegante. Kevin saiu logo atrás dele, dado por terminado o seu trabalho.

Liam virou-se de costas para o espelho e observou Ronan entrar no cômodo para escoltá-lo. O amigo logo percebeu a expressão desanimada do príncipe.

—Algum problema?

—Não... - O herdeiro respondeu lentamente, balançando a cabeça para os lados e mexendo outra vez no nó da gravata, inseguro. - Só uma grande sensação de que algo vai dar errado.

Ronan não encontrou nada de inteligente para dizer. Ele abaixou a cabeça, com as palavras dos colegas funcionários sendo resgatadas da memória.

Ele vai errar como os Éire já erraram antes.

Ele definitivamente não poderia dizer ao príncipe que aquilo também lhe deixava apreensivo.

♕ ♕ ♕

— Por que isso é importante mesmo?

Caitlin Dublin murmurou algumas palavras para si mesma e com esforço para desconcentrar-se ela ergueu o olhar da prancheta para o seu assistente e viu uma pilha de pastas ao seu lado.

Atrás da desajeitada pilha, o desajeitado Shawn Keyes.

—O que voe está fazendo, sr. Keyes? – Ela não conseguiu responder sem outra pergunta.

—Essas são... – Ele tentou se organizar as pastas para conseguir ver a pessoa com quem falava. Ele logo se contentou com o pouco sucesso que teve. – Essas são todas as informações que consegui encontrar sobre as selecionadas, srta. Dublin. Você pediu para eu terminar as pesquisas ate a Semana da Paz.

Caitlin franziu o cenho, tentando se lembrar desse seu pedido. Ela não era a entrevistadora das jovens aspirantes as selecionadas para ficar cavando nos detalhes mais secretos de suas vidas particulares para aceita-las ou não no sorteio da Seleção... E então em nome de que ela havia pedido por... tudo aquilo?

A expressão da assessora se abriu quando ela se lembrou que de fato dera tal obrigação ao seu assistente – a intenção era mantê-lo ocupado. E agora ele não estava mais.

Ela mordeu a tampa da caneta que segura desconfortável ate por motivos que ela não imaginava que pudesse ficar.

—Bom, o senhor está um dia atrasado. – Ela respondeu de súbito.

Shawn se desequilibrou com o comentário e quase derrubou todos os documentos no chão. Caitlin se precipitou e voltou os papeis para o seu quase estável equilíbrio.

—Estou brincando. – Ela esclareceu.

—Ah... Ahn, certo. – Ele respondeu, sentindo as mãos suarem de nervoso. – O que eu faço com essas coisas, srta. Dublin?

Caitlin girou nos calcanhares e olhou ao redor. Estavam no grande Saguão de Entrada onde os mais ilustres convidados do mundo inteiro foram recepcionados no dia anterior que agora estava novamente vivido como um formigueiro, como ela mesma gostava de comparar. Não eram nem dez horas da manhã e o segundo dia da Semana da Paz já estava começando com intensidade – Os principais membros das famílias reais hospedadas no Palácio preparavam-se para partirem em direção ao centro da cidade, onde percorreriam, de carruagem, algumas quadras para saudar a população nova-irlandesa de Dublin. Seria o primeiro desfile de Liam Eire... e o das jovens garotas da Seleção... E Caitlin precisava urgentemente ter os últimos fugidios detalhes sob controle.

Ela sorriu para Shawn e ele, mesmo com a pouca visibilidade da pilha de papeis, entendeu o recado.

—Vou colocar no seu escritório.

—Boa decisão. – Ela concordou e ele partiu imediatamente. Caitlin olhou novamente para sua prancheta, pronta para conferir suas últimas anotações, mas uma funcionária de terninho grafite e um microfone encaixado em seu ouvido esquerdo aproximou-se para lhe avisar que as carruagens chegaram. Caitlin arregalou os olhos e já se preparou para apressar as coisas: – Segure seus cavalos*, dona. Literalmente.

As selecionadas esperavam próximas a entrada, observando as famílias reais se agruparem e se acomodaram em suas devidas carruagens.

A Princesa Isidora virou-se para trás mais uma vez antes de entrar em sua carruagem, incomodada com o fato que Lady Sienna não participaria do desfile esse ano.

—Tem certeza de que não quer vir? – Ela perguntou mais uma vez, sem se importar que atrasava a partida de todas as carruagens, considerando que o Reino de Gales partiria primeiro. – Eu sei que a situação está mais complicada agora com o novo herdeiro... – Ela disse com um tom evidente de quem não estava feliz com a presença de Liam Eire na linhagem de sucessão do trono da Nova Irlanda. – Mas você pode ir conosco, afinal... Você já e praticamente família!

Sienna já corada pelo frio, corou ainda mais. Mas não demonstrou seu desconforto diante da situação de outras maneiras menos elegantes. Ela sorriu genuinamente.

—Eu agradeço a oferta, Isidora. – Ela respondeu de maneira respeitosa. - Mas Nova Irlanda está em um período de transição e eu acredito que o povo precise acostumar-se com a figura de Liam nesse e nos próximos desfiles, antes que eu roube a atenção de novo.

Os olhos de Isidora brilharam e seus lábios subiram num sorriso ousado e perigoso.

—Ah, e se depender de mim, querida, você ainda ira roubar muita atenção... e logo, ouviu? Não pense que irá fugir desse casamento assim tão fácil!

Sienna só conseguiu respondeu com uma risada estranha que só ficou um pouco mais natural quando a própria Isidora gargalhou. Era só uma piada, a lady agradeceu em pensamentos. Por um momento achara que ela sabia da carta, do termino. Mas todo ainda era uma silenciosa situação confusa.

A lady se afastou quando Isidora aceitou o braço do Príncipe Christian e desceu com eles as escadas da entrada principal do Palácio até sua carruagem.

Observando a cena de longe, Sky e Brianna se entreolharam, ligeiramente nervosas. A Princesa Isidora não sabendo da carta enviada por Caleb e o próprio príncipe agindo como se nada tivesse acontecido... Havia muitas pontas soltas nessa história e, por isso, ela parecia longe de acabar.

Antes que pudessem fazer qualquer comentário entre elas, Caitlin se aproximou e agrupou todas as selecionadas, exigindo a atenção do grupo. Por sobre o ombro, ela viu a família escocesa descendo as escadas para partirem logo atrás da realeza de Gales. Voltou-se para as meninas e instruiu-as como se fosse um treinador orientando seus jogadores antes de um grande jogo.

—Primeiro os hóspedes, depois o rei e a rainha, em seguida o Príncipe Liam e então as quatro carruagens das senhoritas. Tomei a liberdade de fazer um sorteio e dividi-las em quatro grupos de três aleatoriamente. – Sua instrução foi seguida de um coletivo resmungo. – Ah, por favor, isso não é a pré-escola. Vamos focar, meninas. O objetivo desse evento é a imagem pública. As pessoas só as conhecem, e geralmente toda a família real, apenas pelo telejornal e notícias em veículos menores. Alguém sabe me dizer a importância desse evento?

Branka revirou os olhos e sussurrou para as mais próximas, quer elas queiram ouvir ou não seus comentários mal-humorados.

—Ela consegue ver uma oportunidade de dar mais uma aula em tudo o que ela faz.

Ao seu lado, Charlotte revirou os olhos e ergueu a mão para o alto, como se provocasse Branka de volta.

—O povo se sente seguro quando vê seus governantes como pessoas fortes e confiáveis... e próximos a eles.

—Exatamente, Charlotte. – Caitlin sorriu, satisfeita. Ela arrumou a prancheta e mudou o tom de voz, igualando-a a de um comandante de guerra ditando as novas táticas de guerra a seus soldados. – Na primeira carruagem irão Ali, Branka e Veronika.

—Isso! – A senhorita Égan exclamou, extremamente satisfeita. Primeira carruagem; ela definitivamente não esperava por nada menos que isso.

Como fazia muito bem sempre que achava ser necessário, Caitlin Dublin a ignorou perfeitamente.

—Segunda: Mirelle, Riley e Charlotte. Terceira: Moreena, Gwen e Brianna. E por fim, Sky, Anne e Andressa. – Ela olhou novamente por sobre o ombro. Liam Eire recebeu um beijo da Duquesa Maire, alguns socos amistosos dos dois primos e uma sutil piscada de Lady Sienna, lhe transmitindo confiança. – É isso, garotas! Somos as próximas! Estejam prontas para partir, na ordem em que eu falei, logo atrás do príncipe!

As garotas se organizaram e com maestria seguiram as instruções de Caitlin. Quando o último grupo foi acomodado na última carruagem descoberta e os dois cavalos que a puxavam deram seus primeiros trotes, as grandes portas de entrada do Palácio Real foram fechadas. O saguão ficou escuro e mais quente, com as portas barrando o frio de entrar. Mas todos que ficaram ali se sentiram subitamente incomodados, como se estivessem no lugar errado. Não adiantava ficar esperando por eles, afinal, só voltariam no horário do almoço.

O arquiduque Bernard da Inglaterra deu uma gargalhada alta e bateu na própria barriga.

—Acredito que não faça mal esperarmos no salão de inverno... onde já nos preparam alguns passatempos, não e mesmo? – E com toda a sua insaciável fome e atrevimento, como diriam alguns antiquados nobres que permaneciam ali, ele guiou o grupo para um local mais adequado de interação.

O Duque e a Duquesa Eire acompanharam o grupo, logo atrás de Sienna. Permaneceram no ambiente apenas os jovens Seamair e a assessora Caitlin Dublin. Ela encarou a porta fechado por mais alguns segundos, depois respirou fundo e virou-se para os primos do herdeiro.

—O que pode dar errado, não é mesmo? – E deu uma risadinha nervosa ao ver os olhares preocupados nos rostos de Alan e Finn.

♕ ♕ ♕

Há um quarteirão de distância, já se podia ver a multidão que tomava as ruas.

Os pequenos grupos de moradores de Dublin que se contentavam em apreciar o evento em ruas menos povoadas foram aumentando de número rapidamente conforme as carruagens chegavam na avenida principal. E os acenos e gritos foram deixando de serem facilmente distinguíveis para se tornaram uma mistura de sons irregulares e difíceis, uma cacofonia do que parecia ser toda Dublin em festa.

Logo atrás do Príncipe Liam Eire, Veronika, Branka e Ali sentiram a atmosfera mudar quando adentraram a principal avenida de Dublin. Suas expressões se abriram e os sorrisos foram incontroláveis. Elas ergueram as mãos, acenando.

—Eles sabem meu nome! – Ali riu e corou ao ver alguns cartazes sendo erguidos no meio da população com o seu nome no centro. Mesmo estando há mais de um mês na Seleção, foi apenas naquele momento em que ela compreendeu a importância e a repercussão do concurso entre Nova Irlanda. Ela poderia estar vivendo dentro da bolha do Palácio Real, mas todos agora conheciam Ali Siobhan Mackiney.

Veronika abriu um amplo sorriso e deu uma sutil empurrada no ombro de Ali para acenar para a população que tomava as calcadas e o silencio com seus animados cumprimentos.

—Não se iluda, há mais cartazes com meu nome! – Veronika riu com elegância, enquanto continuava acenando.

Branka, por sua vez, não esperava gostar tanto do desfile. Havia algumas pessoas que erguiam seu nome em letras garrafais em cartazes acima das cabeças e muitos outros que enlouqueciam para tirar uma rápida foto sua enquanto sua carruagem passava na frente deles por alguns curtos segundos.

Ela também não esperava gostar tanto dos novo-irlandeses como gostou naquele momento. Poderiam ser pessoas cheias de tolas superstições, como ela acreditava, mas definitivamente sabiam como festejar. Sem hesitações, ela acenou para eles de volta.

Porém, logo quando estava começando a envolver-se no evento e na própria Seleção em si, core fortes de alguns cartazes lhe chamaram a atenção. Em vermelho, preto e branco e caligrafias impetuosas, alguns manifestos gritavam: “Não à dinastia Eire! Não ao Príncipe Liam!”, “Queremos fortes governantes, queremos a Dinastia Hibernia no comando!” e até mesmo “a coroa não é sua, príncipe ladrão!”.

—O que e isso...? – Ela sussurrou, com o rosto perdendo a animação e a cor a cada cartaz que lia.

Veronika e Ali se viraram para ver sobre o que Branka falava – o que elas até então não prestaram atenção, no mesmo instante em que Liam Eire, na carruagem da frente, abaixou-se de súbito como se tivesse caído e Veronika Egan gritou quando, na altura da clavícula, seu vestido branco encheu-se por uma mancha vermelha.

Toda a população se agitou com a mudança do cenário. As pessoas gritaram e correram para todos os lados, sem nem mesmo saber o que as levou a se comportarem com tamanho desespero.

Branka cobriu a cabeça com as mãos e se abaixou. Ela gritava:

—Eles estão atirando? Eles estão atirando?

Mesmo com o rosto branco como papel, Ali conseguiu manter a calma. A jovem colocou uma das mãos nas costas

de Veronika quando ela estava prestes a tombar para trás e a outra foi por cima de seu aparente ferimento. Foi então que ela percebeu.

—Isso não é sangue. É tomate!

O rosto de Veronika mudou várias vezes conforme a sua concepção da situação alterou-se de súbito. Ela firmou as pernas antes trêmulas e olhou para a sujeira em seu vestido.

—Por que estão jogando tomate em nós? – Ela exclamou, empurrando as mãos de Ali para longe e erguendo o queixo, enojada ao sentir o cheiro do fruto. Vermelha de raiva, ela gritou um palavrão que foi ocultado pela gritaria da população.

Tudo continuava um caos e um novo ataque de tomates começou. As garotas nas outras carruagens que vinham logo atrás começaram a gritar, quando a confusão também chegou até elas. Liam Eire colocou-se de pé e dessa vez não conseguiu desviar, foi atingido no ombro.

Ao verem o príncipe em pé e, não coberto por sangue, mas por tomate, as pessoas mais atentas perceberam o motivo do protesto e tomaram seus lados na discussão. Todos se empurravam, cartazes foram rasgados e Branka viu quando um homem deu um forte soco no olho do outro, enquanto o agarrava pela camisa.

As carruagens pararam quando as pessoas derrubaram as barreiras que continham o público nas calçadas e elas tomaram o espaço das ruas, atacando aqueles que protestavam do outro lado. Os guardas se dispersaram, tentando conter a súbita desordem no evento. Tiros finalmente foram disparados e dessa vez, as pessoas correram para longe dali.

Com a bagunça, os cavalos da carruagem de Brianna, Gwen e Moreena relincharam e se debateram até que o veículo tombou e as garotas foram para o chão.

O evento estava sendo transmitido ao vivo para toda Nova Irlanda e outros reinos e o primeiro evento da Semana da Paz começava com qualquer coisa... menos paz.

♕ ♕ ♕

Liam Éire esqueceu todas as regras de etiquetas quando chegou ao Palácio Real dentro de um carro blindado com inúmeras viaturas da guarda real o escoltando de todos os lados. Ele abriu a porta e pulou para fora do carro antes que qualquer funcionário pudesse ajudá-lo com isso, e subiu a enorme escadaria para o saguão de entrada correndo.

Quando colocou os pés dentro do ambiente toda a atenção voltou-se para ele, como se Liam fosse seu poderoso ímã. Ele estava ofegante quando viu os inúmeros pares de olhos que o observavam; reis e rainhas e príncipes e princesas de diversas nações. Todas as perguntas que desejava fazer desesperadamente queimaram na ponta de sua língua quando ele ficou, de repente, envergonhado e não teve coragem de fazê-las de imediato.

E com todo aquele desespero reprimido ele notou a situação.

Enquanto sua roupa continuava manchada por grosseiras marcas dos tomates que lhe atingiram, Donavan e Kiara e todos os outros membros da realeza dos demais reinos que também desfilavam pelas ruas de Dublin aquele dia... estavam tão perfeitos quanto no momento em que partiram do Palácio Real.

Eles haviam acompanhado os recentes acontecimentos nas filmagens que eram transmitidas ao vivo pelo telejornal e foram melhor informados pelos conhecidos que permaneceram o tempo todo no Palácio... Porém, todos limpos, era claro que nenhum deles fora o alvo do descontentamento e da revolta da população nova-irlandesa.

Liam não soubesse como reagir.

Naquele momento ele não era um líder promissor e muito menos seguro para o seu próprio país e para os seus supostos aliados internacionais.

O momento constrangedor pareceu durar séculos até ele ser interrompido pela quase lacrimejante Duquesa Maire Eire que correu para abraçar apertado seu único filho.

—Graças aos Céus, você está bem! – Ela gritou em seu ouvido e ele soube que não foi o único a ouvir. Porém, dentre todas as situações vergonhosas que ele poderia passar como novo herdeiro da Nova Irlanda, ser abraçado por sua mãe na frente de todos era definitivamente o melhor deles e, muito pelo contrário, causou uma sensação reconfortante que o fez abraçá-la de volta.

Liam não soube ao certo o que o Rei Donavan disse para dispersar as famílias reais e dar ao príncipe um pouco de sua merecida privacidade.

Após os hóspedes terem se afastado, Liam se desvencilhou delicadamente da própria mãe e lhe assegurou e que estava bem – fisicamente, pelo menos. Ela e o Duque Douglas se afastaram para seus aposentos, um pouco receosos em deixar o filho após os recentes eventos, mas fizeram isso sabendo que Liam talvez precisasse de um pouco mais de privacidade para esclarecer a situação mais independentemente. Ele já estava “crescido” afinal.

Longe do abraço reconfortante da mãe, Liam Éire respirou fundo e olhou para o rei e a rainha.

—As selecionadas... Elas...?

—Elas já chegaram. – Kiara respondeu com uma voz terna e compreensiva. – Insisti para que elas fossem encaminhadas à enfermaria, mas aparentemente todas estão bem.

Liam exalou o ar com força, visivelmente aliviado. Ele se culpava por ter feito delas alvos do ataque da população assim como ele, e se algo grave tivesse acontecido, ele nunca iria se perdoar. As garotas não tinham culpa pelo descontentamento da troca de dinastias, da ascensão da dinastia Éire, do incompetente novo herdeiro ao trono...

—Você gostaria de ir vê-las? – Donavan questionou, observando Liam com uma espécie de empatia. É claro que muito ainda deveria ser conversado sobre os significados desse acontecimento infeliz, mas ele, como um bom homem, sabia que aquele não era o melhor momento.

—Ahn, não. – O herdeiro respondeu, pouco contente com sua decisão. Mas sua cabeça ainda doía com os vários pensamentos que exigiam sua atenção. E ele não se saberia o que fazer se visse as garotas chorando ou mesmo machucadas. – Em outro momento. Mas gostaria de ser mantido informado de qualquer mudança no estado delas.

O rei assentiu e num gesto surpreendentemente altruísta, ele informou:

—Muito bem. Eu mesmo irei vê-las agora e lhe informarei de qualquer detalhe. – Sem dizer mais nada, ele saiu silenciosamente e tomou o caminho da enfermaria na ala leste, no primeiro andar.

Sozinho com a rainha Kiara no imenso saguão de entrada, eles se olharam com certo desconforto. Rainha e príncipe, mas não mãe e filho. Compreensiva em seu próprio modo, ela ofereceu ajuda:

—Você deseja alguma coisa no momento? Mesmo se desejar privacidade, posso conseguir que nenhum criado o importune até o fim da noite. Posso conseguir que seu jantar seja servido no quarto...

—Há uma coisa que eu gostaria. – Liam a cortou, sentindo-se fraco demais para uma atitude ousada como essa. Mas todos estavam fragilizados em seu próprio modo que, como ele já havia abandonado há bastante tempo, as regras de etiqueta não faziam mais sentido naquele momento.

Kiara parou e o olhou com paciência.

—Eu quero conversar com a Lady Sienna.

♕ ♕ ♕

Na enfermaria, o silêncio reinava.

Todas as treze selecionadas estava ali para uma vistoria em sua saúde, mas fora Gwen e Brianna que tinham algumas pequenos cortes e arranhões pelo corpo, e Moreena que estava deitada, fitando o teto em estado de choque, as garotas não haviam sofrido nenhum ferimento grave.

O susto do ataque ao Príncipe Liam e à Seleção que de fato as acometia.

Skyla sentiu-se tola por não ter percebido antes a falta de popularidade de Liam. Sua própria criada se comportava de modo estranho por ser contrária à ascensão de Liam e da Dinastia Éire no poder de Irlanda do Norte. Estando ela, no papel de selecionada, tão próxima de Liam, ela descobriu ser quase impossível odiá-lo e nunca lhe passara pela cabeça de que alguém - ou muitos – pudesse ser contrário àquele jovem herdeiro.

Ela começou uma conversa baixa, porém entretida, com Gwen que estava deitada na maca ao lado, cutucando seus esparadrapos. Elas nunca foram próximas e não tiveram grandes conversas, mas a tentativa de ajudar Liam Éire da maneira que fosse possível, estimulou uma conversa fluida entre as duas.

Quando o próprio rei apareceu para visitá-las, as expressões das selecionadas mudaram ligeiramente e o silêncio se intensificou. Algumas tentaram parecer mais apresentáveis, Veronika parou com todo o seu drama de: "Eu achei que fosse morrer. A minha vida passou diante dos meus olhos" e Branka engoliu a provocação que usaria para responder à dramaticidade da srta. Égan.

O rei passou ao lado de todos as garotas, conversando brevemente com elas sobre seus estados de saúde e pediu desculpas pelo acontecimento. Ele próprio parecia extremamente abalado com o acontecido e, fora a educação, sua mente parecia operar de modo automático. Ele estava exausto.

Todos estavam.

♕ ♕ ♕

A Rainha Kiara guiou Liam pelos corredores do Palácio Real, os dois em completo silêncio, até a Sala de Música, onde ela sabia que Lady Sienna estava reunida com os irmãos Seamair, aproveitando o tempo de espera do desfile para debruçarem-se sobre seus estudos.

Ela monarca deu passagem para Liam entrar e afastou-se para lhe dar a privacidade que precisava. Porém, sua curiosidade e intuição brincaram com seus pensamentos, o que a fez hesitar. Parou do lado de fora da sala, próxima a porta entreaberta, onde pode ver e ouvir o que eles falavam.

Naquela posição, ela se sentia um tanto... tola. Ela mesma, como rainha, tinha vergonha de se ver em tão intrometida situação. Mas outro lado dela lhe fez pensar em como aquilo era, de certa forma, jovial – espionagem, segredos e fofocas -, era como se ela tivesse quinze anos de novo.

Dentro da sala, Liam sentiu todos os seus sentimentos entrarem em conflito e aumentarem de intensidade. Ele não conseguia mais contê-los.

No momento em que Sienna começava a perceber as roupas manchadas do príncipe e formular a sua pergunta do que tinha acontecido, Liam a borbadeou com seu interrogatório:

—Por que você abdicou ao trono? - Ele perguntou com certa voracidade.

Sienna e também Álan e Finn olharam o jovem sem entender o motivo de seu comportamento ou a finalidade de sua pergunta.

Liam deu dois passos largos em direção à lady e agarrou-a pelos ombros. Seu olhar agitado e cheio de lágrimas que não ousavam cair. Vociferou outra vez:

Por que você abdicou ao trono?

Álan se aproximou dos dois com as mãos erguidas, tentando apartar perigoso contato. Ele disse alguma coisa que Liam não prestou atenção e chacoalhou Sienna outra vez, desesperado por sua resposta.

Por que eu sou o herdeiro? Como? - Sua intensa emotividade tornava difícil entender o que ele queria saber e, sem obter reação alguma, Liam ficava ainda mais angustiado. - Por que você abdicou ao trono?

—Eu... Eu... - Ela gaguejou, sem saber como reagir. Estava assustada e preocupada com o estado emocional do herdeiro, mas estava principalmente assustada. A conversa que tiveram na noite do Baile de Máscaras voltou com força em sua mente, Liam queria desistir da coroa.

Sem saber se esse ainda era o seu desejo, ela temeu ter que voltar atrás em sua decisão. Não havia como ela voltar a ser a herdeira, mas essa ideia repentina somada com o comportamento alterado de Liam fez Sienna se desesperar também. E então, num ímpeto impensável, ela cuspiu o seu maior segredo: - Eu não tenho sangue real!

A expressão de Liam se desfez e suas mãos se afrouxaram e escorregaram dos braços de Sienna. Álan agilmente desvencilhou os dois e os afastou.

O que? - Liam sussurrou, mal ouvindo a própria voz.

—O que? - Finn perguntou mais alto. Observando a cena mais a distância, suas mãos subiam no alto da cabeça e depois caiam ao lado do corpo, fazendo todos os movimentos possíveis, mas não tomando atitude alguma.

Sienna segurou o olhar de Liam, mas se afastou dele, abraçando o próprio corpo. Sua expressão era de alguém que fora terrivelmente ferida, mas que ainda tinha fortes reações de raiva para revidar se fosse preciso.

—Príncipe Keegan não é o meu verdadeiro pai. - Ela disse as palavras com dificuldade, porém com extrema fúria e determinação. Sua voz começava a ficar embargada. - Minha mãe casou-se grávida e foi fácil encobrir a verdadeira paternidade.

Liam, Álan e Finn a observavam com extrema atenção, com os rostos quase inexpressivos e mantendo uma distância educada.

—Ele sabia. E eu também fiquei sabendo no começo de minha adolescência. - Ela contou. A raiva era a única coisa que a fazia continuar falando, pois ela sentia-se derrotada tendo seu mais precioso segredo revelado sem pudor algum. - Apesar de não ser meu pai biológico, ele me criou como sua filha e ele me educou para ser a futura rainha de Nova Irlanda. E eu teria sido. - Ela completou com o rosto contorcendo-se em caretas de sofrimento. As lágrimas logo começaram a escorrer e ela se obrigou a terminar o que dizia. - Mas quando ele... morreu. Eu não... eu não conseguia mais fazer isso sem ele. Eu precisava dele.

Então Sienna apenas chora, cobrindo o rosto com ambas as mãos e se encolhendo quando Álan tentou tocá-la. Ela sentou-se no sofá do salão, soluçando por tantas histórias reprimidas por muitos anos.

Finn buscou o olhar de Liam, mas ele não tinha nenhuma expressão no rosto. Seus próprios olhos ainda brilhavam pelas lágrimas que não caíram. A única coisa que lhe roubou a atenção, foi Kiara.

Quando a Rainha Kiara entrou no salão, após ter ouvido tudo e decidida a intervir no conflito, Liam prendeu sua atenção em sua figura. Não sabia ao certo o que, nem como, ela estava ali.

A mulher ruiva olhou para Sienna chorando no sofá e apiedou-se de sua situação. Ela pressionou os lábios e encontrou a coragem que precisava para reviver alguns momentos dolorosos, mas também algumas verdades essenciais.

—Você quer saber como a linhagem real chegou até você, Liam? - Ela perguntou com uma calma que destoou do momento incomum. - Como a Dinastia Éire chegou ao seu definitivo fim?

Finn olhou novamente para Liam, incerto se ele deveria fazer algo para melhorar a situação. Depois olhou para Álan e viu em seu irmão o mesmo semblante de incerteza que ele possuía.

Kiara caminhou pela sala e sentou-se no banco do piano, serena.

—Bom, - Ela falou após um suspiro. - Acredito que vocês já estão preparados para mais algumas verdades e histórias que aconteceram dentro desse Palácio.

E com a coragem de só quem consegue reviver suas mais tristes lembranças, a Rainha Kiara contou sua história.