Como Ser um Príncipe - Interativa

Você é o rei e eu sou sua rainha


Há quatro anos

Eventos marcantes:

Lady Sienna e Príncipe Caleb, do Reino de Gales, anunciam noivado.

Querida Kiara,

Como vai? Faz tempo que não nos falamos.

A Rainha agradeceu o funcionário e ele se afastou com uma reverência. Tomou a direção oposta e vagou pelos corredores imersas em pensamentos limbosos que não construíam um raciocínio linear. Sempre ficava assim quando recebia a carta de uma de suas irmãs.

Rasgou o envelope com delicadeza – havia acabado de fazer as unhas. E puxou o papel de dentro, lendo seu conteúdo enquanto andava.

Essa semana Claire ficou se gabando para os amigos que sua tia é a rainha. Os meninos a estavam atormentando e ela lhes disse que você iria prendê-los nas "masmorras" - Ela, na verdade, disse de uma maneira diferente, mas nesse momento não me recordo do neologismo. Deveria ter anotado, você sabe como sou esquecida.

Enfim, a história rendeu e ela acabou sendomandadapara a diretoria. Nada que uma conversa mais séria não resolva.Ela está ficando grande... Já está com cinco.

Kiara deu um ligeiro sorriso, imaginando como a pequena menina de cachinhos ruivos estaria.

Mas ao mesmo tempo que uma sensação de prazer lhe encheu o peito, outra lhe arrancou um suspiro quando notou que o sentimento não fora de nostalgia; pois, afinal, ela nunca conhecera a sobrinha.

Sentou-se num banco baixo debaixo de uma janela grande, sentindo suas pernas frágeis e toda a sua atenção tomada pela caligrafia descontraída da mais nova de suas irmãs e por sua história recheada de aventuras que estavam demasiadamente distantes da vida de Kiara.

Nós sentimos sua falta: Eu, Robert e Claire. E todas as meninas, claro.

Lana está se preparando para inserirofilho na faculdade. Ela vem me confidenciar constantemente que gostaria que ele tivesse entrado antes, logo quando completara dezoito anos. Mas a vida é assim mesmo e Nova Irlanda mais ainda: Só o Destino sabe o momento certo para cada coisa.

E você sabe como Lana pode ser dramática! No fundo ela está muito feliz por Henrik, mas é orgulhosa demais para admitir.

—Vossa Majestade?

A ruiva ergueu o olhar da carta e viu uma criada curvada em sua direção. Ela se ergueu e assim pode-se ver a estampa de simbólica da enfermaria do Palácio, costurado do lado direito do peito.

Kiara tentou esconder um arrepio que percorreu rapidamente seu corpo.

—Já está na hora de mais exames? - Questionou com a garganta seca.

A enfermeira assentiu, em respeitoso silêncio.

Então a rainha se levantou, hesitante, mas evitando a procrastinação - sempre fora uma mulher corajosa e não seria agora que perderia sua força. Acompanhou a funcionária pelos corredores do Palácio até a enfermaria, levando a carta em suas mãos.

Por respeito, não havia mais ninguém no imenso local. Ele fora esvaziado exatamente às três horas da tarde – o horário da consulta; e os poucos pacientes que haviam, os quais, em geral, eram funcionários da cozinha com queimaduras da cozinha e outros que, como todo ser humano, eventualmente não se sentiam bem, foram realocados para uma ala mais reclusa dentro do complexo hospitalar, visando a total privacidade da monarca.

Kiara sentiu o cheiro típico dos medicamentos e teve a imediata ânsia. Depois de tanto tempo visitando aquele local, os sentimentos a atingiam antes dos resultados ficarem prontos.

Sentou-se em uma grande poltrona, a qual já estava acostuma, e acomodou o braço esquerdo no apoio, virando o rosto para evitar olhar a agulha que adentrava sua pele.

Desdobrou a carta o melhor que pode com a mão livre e voltou a ler.

Ela me lembravocê, comesse orgulho todo. Sempre que você me fala que o motivo por não me escrever é porque eu não entenderia os problemas os quais está passando, penso que está apenas evitando falar sobre seus sentimentos.

Mas, Kiara, minha irmã, você não deveria manter suas angustias apenas para você e enterrar tudo no fundo do peito como se os problemas não existemenão a afetassem. Sabemos que esse orgulho machuca.

Ela sentiu a pica da agulha e engoliu com força a sensação de mal-estar.

Por favor, não fique com raiva de mim e não me evite novamente. Faz anos que não nos vemos e extinguir todas as comunicações entre nós me magoa demais.

Você ainda faz parte da família e estamos ao seu lado para tudo, você sabe disso.

Kiara quase conseguia ouvir a voz da irmã ao ler suas palavras. Reconhecia o carinho que ela lhe transmitia, mas ela sabia que a carta não mudaria sua maneira de lidar com as coisas: O seu enorme orgulho construía uma fortaleza impenetrável ao redor do assunto, a ponto de que nem ela mesma conseguia admitir a enorme dor e sofrimento. Admitir que sua vida de rainha não era perfeita como se vendia na mídia.

Eu não gostaria de lhe dizer isso, pois entendo a frágil situação em que se encontra. Mas sou uma apreciadora da verdade e desejo dizê-la acimade tudo e, se não de minha boca, de minhas próprias palavras, antes que você descubra por outros e essa distância não possa mais ser "remendada" com algumas pontes.

A verdade é esta: Estou grávida; dessa vez de um menino.

A Rainha soltou o fôlego junto de um som alto e a enfermeira que cuidava em retirar o seu sangue, se assustou. Outros profissionais se aproximaram, em urgência.

—Majestade? O que foi?

—Como está se sentindo?

Ela olhou para os rostos assustados e tentou ordenar que seu coração voltasse ao ritmo aceitável, mas uma rainha não podia mandar em tudo, muito menos quando dizia a respeito dela mesmo. Então ergueu o queixo e respondeu os funcionários com firmeza:

—Não é necessário tamanho alarde. Voltem a seus afazeres imediatamente.

A voz autoritária não deixou dúvidas e hesitações, os homens e mulheres correram para retomar o que faziam antes. A enfermeira engoliu em seco e se concentrou em pressionar o algodão sobre o braço da monarca.

Kiara olhou a carta em sua mão e toda aquela ânsia se aprofundou. Amassou o papel, não querendo continuar a leitura ou sequer olhar para ele.

Fitou o relógio na parede a sua frente e sentiu o coração pulsar a cada movimento do ponteiro dos segundos. Agora só restava esperar, mais uma vez, pelos já esperados resultados.

Uma parte dela, a que se sentia exausta dia após dia, queria desistir de tudo aquilo. Dizer não aos mensais exames, ignorar a pressão que colocavam sobre ela... Porém, outra parte, aquela que dizia mais sobre Kiara do que qualquer outra, ainda desejava tentar e tentar. Incansavelmente. Até ter não poder mais.

E então a enfermeira voltou. Kiara não reconheceu a sua expressão e isso a deixou subitamente mais incomodada. Não era um semblante deboas notícias, isso ela poderia afirmar.Remexeu-se no assento, incerta até mesmo se queria uma resposta.

Outros médicos se aproximaram quase sem que a ruiva os notasse.

—Receio que não temos boas notícias, Majestade. - Um deles, o mais alto, careca, falou, segurando uma prancheta com documento.

Ela fitou o objeto por um momento e depois ergueu os olhos para o profissional.

—Apenas diga.

Tentando esconder o nervosismo, o médico bateu os olhos no prognóstico e falou:

—Seus resultados mostraram uma desregular dosagem hormonal. Outros exames deverão ser feitos para confirmar o resultado, mas Vossa Majestade merece um adiantamento do que pode se esperar.

A enfermeira, que sempre estava ao lado de Kiara, revirou os olhos, incomodada com a demora, a qual, ela sabia, só intensificava a ansiedade da rainha. Ela cortou os eufemismos e foi direto ao assunto:

—Majestade, seus exames indicam os primeiros sinais da menopausa.

Nada.

A rainha continuou olhando-a como se não tivesse entendido, ou mesmo ouvido sua informação. Mas por dentro, ela sentiu o coração perder o compasso, tomado por uma onda de sentimentos que ela não conseguiu definir naquele instante.

Os médicos continuaram falando, de como, em nome da saúde da rainha e em detrimento às burocracias da monarquia - como sempre, de que o mais adequado a se fazer seria parar de "tentar".

Desistir.

Mas ela não ouvia mais nada, nem mesmo ouviu sua própria voz quando agradeceu o auxílio dos profissionais e retirou-se em completo silêncio, sentindo suas pernas pesadas e o coração afundado dentro do peito.

Não era esse o sentimento que esperava ter quando ela pudesse, enfim, colocar um ponto final naquela história.

♕ ♕ ♕

—Pelo lado positivo, Lady Sienna e todo o reino já estão prontos para que ela assuma o trono da Nova Irlanda. Todos já esperavam por isso, mas, devo dizer que a notícia não ajuda a imagem de Vossas Majestades.

O Conselheiro Sean colocou ambas as mãos sobre a mesa da sala de reunião e entrelaçou os dedos enrugados e extremamente finos. Depois que fez seu comentário, notou a ausência de uma resposta e ergueu o olhar para os outros presentes.

O Rei Donavan sentava-se em um dos extremos da mesa e a Rainha na cadeira mais próxima a sua, mas bastou um segundo para o conselheiro perceber que a distância entre os dois era muito maior do que se percebia. Ele se arrependeu de sua escolha de palavras.

—Sinto muito pela formalidade. - Ele se desculpou. - É um momento delicado para ambos, sei disso. Mas a questão foi trazida a mim e a minha função é lidar com ela de maneira burocrática.

—O senhor não está errado. - Donavan respondeu, encontrando a própria voz no fundo da garganta. Tirou a mão que apoiava o seu queixo e fez um aceno displicente, como quem não dá a mínima para a insensibilidade do homem.

Sean assentiu silenciosamente. Ele olhou para Kiara, mas não obteve nenhuma resposta dela, nem mesmo um olhar.

E o silêncio durou mais alguns segundos perturbadores. Ele olhou para ambos os monarcas, afundados, cada um, em seus próprios e distantes mares de angústia.

Sabia que deveria ser racional e detalhar aspectos burocráticos decorrentes da notícia, mas ele, mesmo tendo um QI extremamente elevado que dificultava a sua inteligência emocional e assim suas interações sociais, soube que de nada adiantaria repassar as regras e frisar os próximos passos a serem tomados enquanto os monarcas estavam desconcentrados como nunca antes.

O momento pedia por um pouco mais de empatia e sensibilidade.

O mais velho dos conselheiros então virou um dos papéis de documentos do lado contrário, com o lado branco para cima, deslizou-o mais para o centro da mesa e com uma caneta começou a desenhar.

Escreveu "Rei Hans Hibernia" com a caligrafia de um médico, traçou uma reta no meio da folha, perpendicular à escrita, separando o rei do próximo nome que escreveu: "Princesa Sinead Hibernia".

De "Hans" puxou duas setas, uma para "Donavan" e outra para o "Príncipe Keegan".

Os inusitados rabiscos do conselheiro tomaram a atenção dos monarcas: Kiara olhou as anotações de canto de olho, encolhida em seu canto, e Donavan esfregou a mão pelo rosto, tentando retomar a atenção fugidia.

Sean fez um X ao lado de Sinead e anotou: Duque Norbert Éire. Uma setinha abaixo do nome deles apontando para o filho, que possuía o mesmo nome do pai com o número dois em romano para indicar "segundo".

Puxou outra seta e escreveu "Conde Douglas", puxou outra e escreveu "Sir Liam Éire". Depois olhou para os monarcas, para ter certeza de que, dessa vez eles estavam acompanhando. Vendo os dois pares de olhos pregados nele, ele prosseguiu:

—Confesso que não sou um bom em assuntos sentimentais como esse e reforço mais uma vez que minhas palavras não possuem nenhuma intenção de ofender-vos...

— Apenas fale, conselheiro. - O rei exigiu, cansado.

Sean pegou a caneta e a colocou sobre o nome de Hans.

—Como sabem, fui conselheiro de seu pai, meu rei, e esta é a segunda geração que tenho o prazer de servir. E é por isso que não preciso ser nenhum geneticista para tirar conclusões.

Kiara deu uma rápida espiada no marido sem ninguém notar o gesto. Ela já sabia o que estava por vir.

—Em situações mais... arcaicas... - Ele continuou com extremo cuidado em sua escolha de palavras. - O rei trocaria de rainha para conseguir um herdeiro.

A atual rainha nada disse quando os dois homens a observaram, receosos. Ela continuou fitando Sean com um olhar ameaçadoramente frio que fez o conselheiro engolir em seco e prosseguir rapidamente.

—Entretanto, - Ele bateu a caneta sobre o nome de Hans no papel e continuou a explicação. - o rei anterior fez isso três vezes. - Donavan também não disse nada, mas odiava esse assunto. Quando criança, sempre odiou a fama do pai com suas "várias" esposas. - Apenas no terceiro casamento, ele decidiu recorrer a um tratamento intensivo, aos precisamente, cinquenta anos de idade. E, num período de dois anos, nasceram seus dois filhos. - Deslizou a caneta para o nome do Rei Donavan e do Príncipe Keegan.

"Como já é sabido, os Hibernia sempre tiveram uma predisposição a desenvolverem doenças pulmonares e o tratamento comprometeu a saúde do monarca. Foi neste período que a Princesa Sinead tornou-se regente da Nova Irlanda. Devido a isso, nunca foi aconselhado que o Rei Donavanrecorresse a tais tratamentos de fertilidade."

—Mesmo que claramente a ausência de um herdeiro, a esta altura, é culpa minha. - O rei interrompeu o seu mais fiel conselheiro para comentar sua reflexão do assunto. Depois ele olhou para Kiara, reconhecendo que a culpa nunca fora dela, pois, no fundo, ele sabia disso. Ambos sabiam disso.

O conselheiro observou os dois por um momento em que hesitou, deliberando se deveria prosseguir ou não. Ainda assim, era racional demais para conseguir parar no meio de uma explicação.

—Mas eu tenho monitorado a Princesa Sinead e a sua linhagem, que carrega o nome dos Éire, até então. - Ele deslizou a caneta para o outro canto da folha que dividira, a que estava cheia de nomes. - Durante mais de sete décadas, os Hibernia passaram apenas por duas gerações enquanto os Éire... - Ele encostou a caneta em cada nome do papel. - passaram por quatro.

A rainha então desviou o olhar, bastante incomodada. Todos ao seu redor conseguiam construir suas grandes famílias com facilidade, apontando com grande ênfase para a única coisa que o Rei e a Rainha da Nova Irlanda não conseguiam fazer.

—Observei outras descendências ligadas à linhagem real durante esses anos. Inclusive aquela que coloca o Rei da Rússia como um possível sucessor do trono. - Ele comentou, empurrando os óculos para o topo do nariz. - As mulheres, como a Princesa Sinead, não apresentam quaisquer problemas de fertilidade; tal condição é exclusiva, e em diferentes níveis de comprometimento, dos familiares homens. É por isso que a família dela passou pelo dobro de gerações no mesmo período. As linhagens de mulheres são todas fortes e não correm o risco, hm... de extinção.

Extinção? - Donavan repetiu automaticamente, sentindo um gosto ruim na boca ao dizer a palavra.

—Bem, como eu disse no início, a linhagem aponta Lady Sienna como a sucessora legal do trono. E com ela a linhagem Hibernia será mantida na monarquia. Mas... - Ele olhou para seus soberanos, tentando descobrir se eles já tinham conhecimento do que ele viria a falar. Depois de todas as explicações que já havia dado sobre a árvore genealógica da família Hibernia, Sean sabia que, minimamente, os astutos monarcas notariam a incongruência da existência da herdeira do Príncipe Keegan enquanto todos os demais homens tiveram problemas de infertilidade. Mas o velho conselheiro, com seus muitos anos de experiência, decidiu evitar o assunto e reorganizou a ideia: - Será o sobrenome de seu noivo, Príncipe Caleb, que marcará as próximas gerações.

Os três desviaram o olhar diante a menção do nome da lady, ligeiramente incomodados. Como rei e rainha, eles obviamente não deixaram esse detalhe lhes passar despercebido durante todos esses anos.

—É uma questão de nomes e sobrenomes. - Donavan resmungou, voltando a esfregar a mão por todo o rosto. - Isso é uma lei tão antiga e tão idiota. Há tanta pressão para se ter um filho menino e ele se tornar o responsável a passar o nome da família adiante e... Ah, se eles fossem passados entre as mulheres...

Bastaria apenas uma garota para salvar Nova Irlanda.— A Rainha Kiara finalmente falou, interrompendo o marido com a voz rouca e lágrimas que começavam a pesar nos olhos.

Era imensamente irônico quando um grande problema precisava de uma simples solução... e ainda mais quando essa solução estava presa no passado. Se os monarcas anteriores tivessem percebido essa silenciosa síndrome, se a lei para o sobrenome do homem prevalecer sobre o da mulher tivesse sido abolida há mais tempo, se apenas uma garota tivesse nascido na mais alta linhagem real...

O presente então era estagnado. Talvez, amaldiçoado por tolos erros do passado. Num reino em que a cultura da sorte, do azar e do destino perpetuou por centenas de anos... A família real estar amaldiçoada era definitivamente irônico.

A rainha se levantou, sem dizer mais nada, e deixou o cômodo.

♕ ♕ ♕

Sentados o Rei Donavan e o Príncipe Keegan cada um em sua poltrona em uma das muitas salas de estar do Palácio, eles bebiam seus copos de uísque em um silêncio que durou horas.

—Eu sinto muito, Don. - Keegan comentou quando viu o irmão enchendo o copo com a forte bebida outra vez e se incomodou com aquilo. - Principalmente pelos seus sentimentos e os de Kiara; pois sei que o reino vai ficar bem e sobreviver a isso...

Donavan tossiu ao sentir a garganta queimar com o álcool. Sua voz saiu rouca, queimada, quando tentou falar:

—Sabe, nós nunca conversamos sobre sua filha, Keegan.

O príncipe sentiu o sangue gelar e o rosto perder a cor.

Ele nunca conversou com o irmão sobre a "falseada" paternidade de Sienna. E como nada nunca fora verbalizado, ambos tinham uma ligeira noção dos conhecimentos do outro quanto ao assunto, e Keegan escolhera acreditar que Donavan ignorava essa mentira, como se não tivesse conhecimento dela. Pois gostava de Sienna como se fosse sua verdadeira sobrinha.

Agora, finalmente tocando no assunto, o mais novo hesitou em prosseguir com a conversa, incerto como o irmão procederia a partir de então.

Donavan tirou os olhos do copo para olhar Keegan e com a mesma expressão severa e abatida, perguntou:

—Acha que ela está pronta para o trono?

O príncipe não conseguiu se impedir de relaxar. A paternidade ainda era um assunto que nenhum dos dois queria precisar discutir.

Ele limpou a garganta:

—Eu tenho plena confiança que sim, Don. Você conhece Sienna, ela é uma boa moça. Tem pulso forte... Aceitou se casar com o príncipe de Gales.

O rei assentiu. Ele bebeu mais um gole do uísque e fungou.

—Eu sei. - Confessou com um suspiro pesado. - Ela é uma jovem perfeita ao trono. Eu nunca teria imaginado que traria sorte à monarquia Éileen se casar grávida e ter a filha de outro homem.

Keegan engoliu com força. Deveria ter desconfiado que o assunto não estaria trancado à sete chaves pra sempre.

—Donavan... - Ele tentou abordá-lo, mas foi interrompido.

Kiarapoderia ter casado grávida. - Donavan soltou de repente, sem qualquer esforço para manter um mínimo de discrição.

Durante longos minutos, nenhum dos dois disse nada. O príncipe não soube o que responder e o rei pegou-se pensando em algo que o deixava ainda mais triste: Kiara sempre teve muito respeito pelas regras da monarquia de Nova Irlanda e extrema fidelidade ao marido, e agora ela também sofreria por algo que nunca fora sua culpa. Ela foi a mulher perfeita para o cenário errado.

Ele bebeu o conteúdo do copo até o fim para impedir que seus sentimentos alcançassem a perigosa superfície, pois ele nunca se sentira tão mal em sua vida quanto se sentiu naquele momento, primeiro, por não poder experimentar a paternidade e, segundo, por desapontar a mulher que mais amava no mundo.

—Don, - Keegan se esticou e tocou o braço do irmão que estava apoiado no braço da poltrona. - acho que você deveria estar com ela.

♕ ♕ ♕

Grudada à porta do quarto dos monarcas, a Princesa Éileen tentava conversar com a rainha escondida do outro lado. Viera procurá-la com um discurso pronto – na verdade, um pedido de desculpa -, mas a situação a deixou nervosa e toda a preparação esvaiu-se imediatamente.

Tinha completo conhecimento de que Kiara sabia sobre a verdade da paternidade de sua filha, Lady Sienna. E, em sua própria maneira nobre, correu até os aposentos da rainha para desculpar-se pessoalmente pelos segredos e decorrentes mentiras que ela manteve durante anos. Em seu íntimo, ela realmente esperava que isso nunca fosse se tornar um verdadeiro problema.

Mas o momento provara que ela estava errada.

Kiara recusava-se a falar com ela ou receber qualquer outra visita.

—Foi antes de casar-me com Keegan. Sabe disso. Não cometi adultério, nem traí a monarquia... - Ela se justificou, sentindo o coração palpitar com força dentro do peito. - Foi... um deslize estúpido de minha vida e todos cometemos algum, principalmente quando somos novos...

Imagens ainda vívidas de um fim de tarde em seu quarto de solteira, com roupas espalhadas por todo lado e lençóis de algodão que se enroscavam em seu corpo nu e no do homem que dividira a cama com ela pela última vez. Um antigo ex-namorado. Acontecera pouco depois de saber que o Príncipe Keegan pediria sua mão em casamento e pouco antes dele de fato pedi-la. O deslize perfeito.

Depois de descobrir a gravidez, ela escondeu a verdade de todos. E ao arrepender-se de um de seus poucos momentos de irresponsabilidade, construiu uma postura forte, que mantinha a discrição e cumpria o papel de "princesa" com maestria, de modo que ninguém pudesse julgá-la por não ser algo menos que perfeita para o título.

Porém, em muitas vezes, o racionalismo passara a falar mais alto que a emotividade e afastava-se dos perigosos momentos sentimentais.

Mas ali ela deixou os ombros caírem, cansados. Reconhecia o que era uma amizade e que Kiara, sua amiga, não merecia ouvir suas desculpas.

—Sou sua amiga... - Éileen recomeçou, incerta quanto ao campo que pisava. Sentiu os dedos tremerem. - Nunca faria algo para feri-la. Eu só tentei proteger a minha filha...

Sua voz desapareceu e ela se esforçou para não deixá-la morrer.

—E eu ainda tento. Não quero que as pessoas descubram sobre isso. Ela seria punida... de diversas formas. Keegan também não deseja que isso venha à tona... - Com um suspiro suas palavras desapareceram. - Por favor, não deixe-a pagar pelos meus erros. Não conte.

A porta se abriu de repente numa ira de fúria da mulher que derrubara sua fortaleza impenetrável. Os cabelos ruivos estavam armados, cheios de nós, grudados ao redor do rosto onde as lágrimas pegajosas marcavam toda a pele. Os olhos claros dolorosamente vermelhos e a pele, pálida e pouco saudável.

—Como se atreve a pensar algo assim tão baixo de mim, Éileen? - Ela esbravejou, agarrando-se as portas duplas do quarto, fitando a princesa com severa intensidade. - "Contar às pessoas a verdade" está longe de ser minhaprioridade. Essa é uma das poucas coisas que não cabe a mim resolver. — Ela olhou para a mulher a sua frente com certo nojo e logo depoisvoltouaenrijecer a postura. — Mas há outras coisas que sou exclusivamente capaz de fazer... Pois eu sou a rainha, Éileen, e apenas eu entendo o peso dessa coroa que carrego sobre a cabeça. Agora eu quero que saia.

Éileen empalideceu e recuou alguns passos. Nunca vira Kiara tomada por tanta fúria.

—Kiara...

Saia!— Gritou.

A princesa virou-se na direção contrária, fugindo dali rapidamente no mesmo instante em que Donavan virou o mesmo corredor. Ele olhou a situação sem entender, assim como a outra meia dúzia de funcionários próximos. Seu olhar foi de Éileen à Kiara e quando seus olhares se encontraram, ela movimentou-se rapidamente para fechar a porta.

Donavan, entretanto, correu e se precipitou – chamando ainda mais a atenção das testemunhas. Colocou seu pé entre o vão da porta e a empurrou para entrar no quarto. Ele era mais forte que a esposa e ela não conseguiu impedi-lo.

Com ambos dentro do aposento e com a porta enfim fechada, os funcionários foram impedidos de presenciar mais do caos que tomava a Família Real e eles foram envoltos num clima nebuloso de privacidade.

Ela se afastou dele, como se fosse algo que lhe causasse alergia, e cambaleou em outro canto do quarto, amassando um papel em suas mãos, enquanto lutava contra o choro.

Ele ergueu as mãos, tentando desajeitadamente fazê-la se acalmar, mas seu gesto pareceu um modo de repreendê-la pelo comportamento. Kiara se encolheu, abraçando o próprio corpo, cobrindo a boca com a mão que continuava amassando o papel e fechando os olhos com força.

Donavan deu um passo para trás, assustado como nunca esteve antes. Com medo de piorar ainda mais a situação. De quebrar aquela mulher forte que, naquele momento, estava extremamente frágil.

—Desculpa. - Foi o que achou apropriado dizer. Deixou os braços caírem ao lado do corpo. - Desculpa por fazê-la passar por tudo isso. Você não merece nada disso. É tudo culpa minha...

Kiara ergueu o rosto, seus olhos grandes pelas lágrimas aparecendo por de trás do próprio corpo, como uma coruja que observa ao redor de maneira ressabiada... Mas também com a típica intensidade de um hábil caçador.

Num movimento rápido, ela saiu de sua posição encolhida e jogou o papel que amassara na direção do marido. Ele se esforçou para pegá-lo antes de cair no chão.

—Natasha me escreveu. - Disse sem esconder a irritação na voz. - Ela está grávida. De novo.

Donavan olhou para ela e depois voltou seus olhos para o papel e leu a caligrafia da irmã caçula de sua esposa em pouco tempo.

Mas confesso que estou com medo. Já tenho idade demais para estar grávida novamente, médicos dizem que é o percentual de doenças desenvolvidos na gestação aumenta nessa faixa etária da mãe. Mas também confesso que não dou a mínima para os percentuais. Nunca gostei de números. E eles podem desenvolver incontáveis probabilidades para quantificar a incidência da doença, mas não há nada que meça ou indique qual será o indivíduo que tirou acartaerrada do jogo.

O azarado pode ser qualquer um.

E aí, quando o Universo é o único que pode decidir as coisas por aqui, não importa se as chances de "manter-se saudável" são maiores ou menores que a de "ficar doente". Não é uma fórmula que decidirá isso.

E é por isso que prefiro me alegrar ao invés de me preocupar com minha condição.

E aqui está um pensamento que não consegui me impedir de lhe dizer, mesmo que uma parte de mim ainda me reprima por soar tão "indelicada". Sei que está tentando ter um filho. Seu primeiro filho. E imagino que, sendo a minha situação de irmã mais nova tão cheia de complicações, a sua então, de mais velha das quatro irmãs, significaria uma gestação ainda mais arriscada; e o mais aconselhável a se fazer seria se conformar.

Donavan amassou a carta e a jogou para o lado, sentindo um gosto ruim na boca. O Universo era de fato um sistema irônico e ele, um rei incapacitado pelos ilimitados poderes da Sorte, do Azar e de todas as peças que compunham o Destino e que estavam cravados fundos no solo de Nova Irlanda, odiou por sentir-se tão limitado. E odiou ainda mais sentir-se tão culpado.

Olhou para Kiara e a viu balançar a cabeça para os lados, apertando os lábios para impedir lágrimas que já escorriam pelo rosto. Conformar-se não era uma coisa que ela conseguia fazer naquele momento. Que nenhum dos dois conseguiam.

As pessoas não costumavam abrir mão dos sonhos com facilidade.

—Tem razão. - Ela sussurrou, com a voz frágil. - É totalmentesua culpa. Você sabia disso. - Então ela soluçou, incapaz de segurar seus impiedosos sentimentos dentro de si. Doía demais. E eu sabia disso.

Mas eu não tenho a intenção de tocar num assunto tão delicado com um conselho tão cruel e racional, e sinto imensamente se a ofendi, minha irmã.

O que de fato quero dizer é eu não ligo para as probabilidades e estatísticas e acho que você também não deveria ligar. Ignore tudo! Não há coisa mais importante no mundo do que ser feliz, mesmo para uma rainha.

O rei tentou se aproximar de sua rainha mais uma vez, mas parou a alguns metros dela. Abaixou o rosto, sentindo-se derrotado.

Se ela não tivesse ficado ao seu lado em todos os momentos, se não fosse a pessoa fiel e dedicada como era, talvez teria ido embora antes.

Mas a verdade era mais profunda que meros comportamentos humanos e características da personalidade, pois só havia uma única coisa que mantivera Kiara ali, ao lado de seu rei, todos os anos, nos melhores e nos piores momentos: O amor.

Ela estava apaixonada por ele e sempre esteve. Tão tomada por esse poderoso sentimento que só agora ela percebia o quanto havia sacrificado.

Desejo a você, querida irmã, apenas uma única coisa: Que encontre sua felicidade e oseuamor nomundocuste o que custar e sejam elescomo forem.

As lágrimas desceram com intensidade pelo seu rosto, enquanto ela se encolhia novamente em seu canto, buscando conforto numa suposta privacidade.

Donavan a olhou sentindo-se uma criatura horrível, que havia ferido a pessoa que ele nunca sequer pensara em machucar um dia. Num fio de voz, ele sussurrou:

—Você deveria ter ido embora enquanto havia tempo.

Kiara soluçou, cobrindo a boca com uma mão e levando a outra para o coração, que sofria imensamente. Chorava pelo tempo ter lhe pregado uma peça e agora ter-lhe tirado a chance, por ter "deixado a desejar" a toda Nova Irlanda, pela ironia da genética Hibernia em comparação com a de sua família, todas as suas três irmãs mais novas que não casaram com um rei, mas tinham seus próprios filhos... Entretanto chorava principalmente por ver sonhos muito antigos serem desfeitos com tamanha crueldade e veracidade.

Chorava porque simplesmente doía.

O rei então quebrou a distância e caminhou até sua rainha, incapaz de continuar vendo-a em condição tão lamentável sem nada que pudesse fazer a respeito. Rei, um título tão contraditoriamente poderoso... e limitador.

—Kiara, meu amor... - Ele tentou chamá-la, incerto sobre o que deveria fazer diante uma situação que nem mesmo o rei encontrara uma forma de intervir. Ergueu ambas as mãos para tocá-la, reconfortá-la da maneira que sua intuição melhor o guiava; mas Kiara empurrou suas mãos para longe, soluçando em prantos. - Kiara, eu...

Ele se aproximou de novo, numa outra tentativa.

—É bastante egoísta... - Ele se esforçou um pouco mais e tomou os pulsos dela em suas mãos, impedindo-a de o empurrar novamente. Donavan se inclinou em sua direção, diminuindo a distância entre os dois e encostou sua testa na dela, não cessando suas lágrimas, mas a fazendo parar de lutar contra ele. Ele soltou seus pulsos, vendo que ela sequer conseguia se mexer, e passou os braços ao redor de seu corpo, a abraçando com um sentimento ambíguo de compaixão e empatia. Abaixou o tom de voz: - É bastante egoísta o que eu tenho a lhe dizer.

Ela soluçou com força mais uma vez e depois seus dedos trêmulos agarram a camisa do marido, apoiando-se nele e impedindo que ele não quebrasse aquele contato que antes ela rejeitara.

Donavan segurou seu rosto entre as mãos, os dedos enroscando-se nos cabelos ruivos da nuca da esposa e a fez olhar em seus olhos quando sussurrou a única coisa que ele tinha absoluta certeza no mundo:

—Mas eu fico contente por você ter ficado.

♕ ♕ ♕

Irei apoiá-la sempre.

Com amor, Nat