Perderia muito tempo listando tudo o que eu estava sentido já que perto de um saco de lixo, meu corpo poderia muito bem ter o mesmo fim, então prefiro pular para a parte em que ao menos consigo abrir os olhos e distinguir, apesar da visão embaçada, que eu não estava no inferno. Não estava nem morto.

Já havia passado por vários hospitais com cheiros peculiares, mas nenhum centro médico de Star City cheirava aos metais quase perfeitos de Cyborg, muito menos possuíam a variada quantidade de equipamentos de última geração. Como me acharam? Ou melhor, por que haviam me achado? Por que não me deixaram entregue às baratas ou a qualquer coisa que o destino quisesse me pôr em questão?

Era difícil de admitir, ainda mais quando meu corpo estava imóvel e desobediente, mas a vergonha apossou-se de mim. Puta merda, como eu odiava sentir aquilo! Me sentia minúsculo dentro de mim, realmente dolorido por saber que querendo ou não, eu havia magoado mais uma vez pessoas que importavam para mim. Não fazia a menor ideia do que eles, do que meu antigo time estava procedendo com toda a situação, e a partir do momento que algum deles entrasse pela porta, meu único desejo seria de sumir.

As coisas nunca acontecem como eu quero. Nesse caso, você já deve imaginar que sim, um dos incríveis membros dos Jovens Titãs entrou em meu quarto.

E era ninguém mais ninguém menos que Donna Troy.

A última vez que vi algo em relação a Donna foi há alguns meses atrás enquanto eu dormia em cima de um jornal, jornal este que exibia uma matéria eletrizante sobre os feitos da mais nova instituída Mulher Maravilha. Lembro de sorrir tão irônico como sempre ao ver aquilo: finalmente conseguiu o que queria, assumiu o posto que sempre mereceu. Apesar dos vários términos conturbados e dos vários socos e xingamentos deferidos à minha pessoa, Donna era uma pessoa querida. Nossa história era muito maior do que simplesmente dois Titãs com seus problemas juvenis. Ela foi a primeira, e por algum tempo, a única a acreditar em minha melhora. Não era espanto estar sendo ela a primeira – e talvez única, novamente – a me visitar.

Por mais que seu desejo sempre fora o de usar o manto de Diana, Donna havia feito algumas modificações no tradicional uniforme. Com sua descendência amazônica, nenhuma ruga sequer conseguia penetrar em seu rosto, deixando com que a única mudança física possível de ser percebida aos olhos fosse o tamanho de seu cabelo, o qual estava mais longo. Fora isso, era como vê-la entrando na Torre Titã pela primeira vez ao lado de Dick, um sorriso gigante no rosto e mil e um sonhos transpirando por sua pele.

Infelizmente, um sorriso gigante não era o que me esperava em sua expressão. Ao invés disso, a dureza de seu andar e movimentos junto com um rosto totalmente fechado e que em raras vezes me olhava foram as únicas coisas que eu enxerguei.

Mais uma vez: não saberia descrever o que senti, principalmente quando Donna veio caminhando até mim. Só sei dizer que um punhado de sensações e de agonias se instaurou no momento, e por mais que fosse árduo de admitir até para mim mesmo, eu só queria me esconder.

Encolhi-me na cama, fechando os olhos o mais rápido possível, por mais que ela tivesse me visto acordada. Pude escutar seu típico suspiro de irritação, ao passo que sua aproximação tornava-se cada vez mais conjunta. Escutei seus dedos tocarem levemente a tela que monitorava meu quadro, os ajustes no controle dos meus remédios e do soro, e logo após – pelo menos é o que eu acho – que teve certeza de que tudo estava ok, simplesmente deu as costas e seguiu. Abri um dos olhos só para me certificar de que ela iria embora. Além do mais, havia deixado a janela do quarto aberta. Se estávamos na Torre Titã, uma possível fuga pelo alto me traria, quem sabe até, a morte. Teria de bolar outra saída...

- Você tem visita, Harper. – Saiu logo após falar isso.

Jamais conseguiria enganar aquela desgraçada. Me conhecia bem até demais.

Usei de forças que até duvidava que tinha para me manter sentado na cama. Não era médico, mas já havia avaliado meus quadros muitas vezes depois de seguidas visitas ao hospital. Ao que dizia a tela, eu ainda estava estável, e pela quantidade de remédio injetada em minhas veias, demoraria bastante para meu corpo voltar a ficar forte. Eles não podiam arriscar alta dosagem de droga. Aquilo me deixou ainda mais puto comigo mesmo.

Foi ai que eu, porventura, decidi olhar para meus braços, minhas pernas cobertas pelo cobertor, pelo reflexo do meu rosto na tela de avaliação médica... Eu estava horrível, nos meus piores dias. Nunca havia estado tão magro e branco, além dos vários hematomas que coloriam meus membros, ou melhor, meus ossos revestidos por pele. Jamais achei que chegaria aquele ponto, jamais achei que passaria as mãos por minha cabeça e chegaria a não sentir quase nada de cabelo. Realmente estava no fundo do poço, e apesar de tudo isso, apesar da eminente vergonha, do repentino arrependimento e de todo o resto, eu daria qualquer coisa para cheirar outra carreira de pó, mesmo misturada a vômito e asfalto quente de Star City.

De súbito, a porta abriu-se por inteiro, e a figura que surgiu quase me fez cair da cama literalmente.

Seus cabelos ainda eram tão negros e grandes quanto me lembrava. O uniforme da Liga das Sombras não mudava há anos, pelo visto. Desta vez, não estava ao porte de suas garras nem de sua pintura no rosto e nos braços. O rosto, apesar de perfeito, gélido e duro, encontrava-se abatido. Sua energia e expressão, porém, exalavam confiança, ironia, e claro, ódio.

Jade[1]— se é que aquele era mesmo seu nome, ela nunca deixou de ser um mistério – talvez fora meu lance mais complicado. Rolou toda uma história de eu me tornar um infiltrado na Liga das Sombras, e bem, sempre tive um fraco por morenas. De codinome Lince, ela sempre fora totalmente intensa, e para ser sincero, foi a melhor mulher com quem estive na cama, tirando uma certa alienígena dos cabelos de fogo. Por mais bizarro e incrível que fosse, sua presença não me intimidava tanto assim, cheguei a querer sorrir durante uns minutos.

- Nunca pensei que você fosse descer tanto assim o nível. – Desdenhou enquanto andava pelo quarto e observava cada detalhe.

— Como conseguiu entrar...? – A pergunta não me traria somente respostas dela, mas de onde exatamente eu me localizava. Apesar de um pouco drogado e tonto, minha mente e meus instintos ainda tentavam trabalhar afincados.

— Se não fosse por mim, o precioso rebelde dos Titãs estaria morto agora. Eles devem a mim. Sem falar nas câmeras que estão nos vigiando agora. – Acenou para uma das microcâmeras escondidas do quarto: a da vez era uma que se encontrava nos lírios deixados na cabeceira perto da janela.

— Ninguém sabia onde eu estava. Duvido até que você realmente soubesse.

— Realmente não sabia, mas seu amiguinho mascarado tinha sua localização exata, e avisou não só a mim como ao querido irmão prodígio dele. – Observava as unhas com um falso interesse, achando que enganava o tom preocupado no qual sua voz se encontrava.

Capuz Vermelho...[2]

Ele foi meu último contato do mundo dos heróis – ou anti herói, como prefiro categorizá-lo – antes de voltar para onde nunca acreditei verdadeiramente que sairia. Jason livrava meu pescoço desde antes dos Titãs, quando ele ainda era um Robin fora dos padrões do Wayne. Era aquela se não a amizade de mais vínculo e afeto para mim, o que machucou ainda mais meu coração saber que o filho da puta me viu nesse estado lamentável. Jason tinha rastreadores e contato por toda parte, ele nunca me deixou de fato, mesmo que o fim dos Fora da Lei[3] e da dupla Capuz Vermelho e Arsenal. Lá estava o cretino de máscara... Lado a lado até mesmo com Lince. Abaixei a cabeça, sem saber o que dizer.

— Não ache que me importo com o que faz com seu nariz ou coisa do tipo. Estou pouco me fodendo para os seus problemas, Harper. – Seu tom mudou de repente. O semblante aflito tornou-se mais acentuado, coisa nunca antes vista por mim em Jade. Seus ombros penderam para trás saindo de sua posição de ataque. Os olhos dela encararam os meus. – Mas eu não estaria aqui ou muito menos teria sido ouvida pelo esquadrão de idiotas e seu amigo Capuz se a situação não fosse... Crítica. Eu não podia deixá-lo morrer.

Ela percebeu que eu continuava sem palavras, totalmente confuso e sem a menor ideia do que estava acontecendo. Após um suspiro ainda mais desastroso, com o olhar fixo na paisagem da janela, começou a falar:

- Eu não fui procurar Capuz Vermelho para saber onde você estava. Na verdade... Eu fui atrás de... Ajuda. – Foi a palavra mais difícil que Jade já teve de pronunciar e admitir na vida. – A Liga das Sombras... Está a minha procura. Querem me matar.

— Sua equipe quer te matar? – Uma das minhas sobrancelhas levantaram.

- Quebrei uma das principais regras, se você não lembra. Não aceitam relacionamentos de Sombras com... Isso. – Apontou com o queixo para mim. – Ainda mais quando esses relacionamentos geram...

Sua mão foi em direção à barriga. A porra do meu mundo realmente estava prestes a cair.

— Eu fiquei grávida, Roy. E a filha é sua.

Puta. Que. Pariu.

Minhas costas caíram em direção ao colchão e lá ficaram. A boca estava aberta, mas nenhuma palavra saía dela. Por mais idiota que fosse, minha mente insistiu na idiotice.

- Como... Quando...?

— Quer mesmo que eu te lembre de todas as vezes que fodemos, ein? – Estalou a língua, chegando mais perto da minha cama. – Eu infelizmente não achei cara melhor, não... Transei com mais ninguém. Quando descobri que estava grávida, entrei em pânico, mas não ia abandonar a criança. Tem coisas em mim que prefiro manter, apesar dos caminhos que escolhi. Procurei por você para lhe dar a notícia, por mais idiota que isso fosse, mas você tinha sumido e nem mesmo Jason sabia de seu paradeiro. Não havia nenhum rastreador em você. Naquela época. – Uma risada irônica apagada surgiu em seus lábios venenosos. – Obviamente que não consegui esconder. Quando a Liga ficou sabendo, foram antes de tudo, cautelosos nas diversas maneiras de me matar. Ao perceberem que eu estava escapando de tudo, partiram pra a coisa bruta. Capuz me ajudou bastante, aliás. Os esconderijos, o parto... Tudo ficou sob as costas dele. Inclusive, ele está com ela agora. – Por um momento, seu corpo mostrou-se tão frágil. Um sorriso verdadeiro brotou em seu rosto, e algo nele ligara-se como uma lâmpada. – O nome dela é Lian. Ela tem 2 anos.

Acho que em toda a minha vida nunca vai existir um dia em que me senti tão insignificante e impotente como aquele.

- Não ligo se quiserem me matar, porém o alvo deles mudou de foco. Eles querem a Lian. Prefiro que acabem com cinco de mim a encostarem um dedo na minha filha. – Lince tocou no colchão, apertando-o com todas as forças que possuía. – Então se eu fosse você, tratava de parar enchendo o cu de pó, voltar a usar seu arco dos milagres e me ajudar a derrotar a Liga. Se você não quiser ser pai, também não me importo. Posso muito bem cuidar dela sozinha, mas por tudo, você me deve isso, Harper. Você me deve isso.

Tudo o que consegui fazer foi confirmar com a cabeça e rezar para quem quer que estivesse ouvindo para que minha mente voltasse ao normal para então processar tudo aquilo cuidadosamente.

Ahn, eu também pedi por um uísque e permissão para gritar todos os palavrões conhecidos pelo homem.

[1] É uma vilã assassina e mercenária, uma das integrantes da Liga das Sombras. Encontrei dois nomes a respeito de seu alter-ego: Jade e Safira. Optei pelo primeiro, já que lembro de ter visto não só o Roy, como outros personagens a chamando assim ao decorrer de várias HQ’s lidas. Caso esteja errado, retratarei em capítulos posteriores.

[2] Identidade de Jason Todd, o segundo Robin, morto pelo Coringa e revivido no Poço de Lázaro.

[3] Grupo composto por Jason Todd, o Capuz Vermelho; Kory, a Estelar e Roy Harper, o Arsenal, um tempo após a queda dos Jovens Titãs.