Deus

Sei o que deve estar pensando: “o que diabos esse amigo do diabo está fazendo vindo falar comigo?” Acredite, conversar com seres invisíveis e onipotentes não é minha praia, eu era o cara que matava figuras desse tipo. Porém, acontecimentos desesperados/horríveis pedem medidas de igual porte, e cá estou eu. Caralho, eu tenho uma filha! Ficar 100% surpreso é pedir demais, principalmente quando Jade quicava em cima de mim sem camisinha até o sol raiar. Desculpe, deuses como você são puritanos demais para esse tipo de coisa, sim? Enfim, apesar de tudo, sempre fui “””abençoado””” com uma sorte filha da puta, mas as coisas não duram muito, principalmente coisas boas quando o lance é comigo. O pior de tudo é ser convocado depois de quase morrer (valeu ai pelo livramento!) para salvar a tal garotinha (qualquer que seja o sobrenome de Jade aqui)-Harper sem ao menos conhecê-la, lembrando que livrar a mãe da minha filha e quase minha assassina, está tudo incluído no pacote.

Ainda não tive coragem/vergonha na cara de encarar pessoas como Dick Grayson[1] e o resto do grupo de titãs fantasiados, e pelo o que parecia, nem eles estavam a fim de esbarrar comigo. Donna era a única que dava o braço a torcer – e olhe que ela nunca foi disso – e me visitava de vez em quando, sempre em silêncio. Também insistia para que eu desse caminhadas ao redor daquele prédio ridículo em forma de T que um dia fora minha casa. À noite, quando somente as câmeras me vigiavam, eu comia tudo o que podia e treinava como um condenado. Ainda ficava enjoado e raivoso só de pensar na merda da cocaína, as dores de cabeça não queriam me deixar, mas pelo menos meu corpo não era mais só ossos e pele, e meus reflexos haviam voltado a ser 50% do que eram nos dias de glória. Talvez isso fosse o necessário para acabar com os idiotas do “clã das sombras” ou qualquer que seja o nome dos parceiros esquisitos de Jade.

Durante a minha semana de recuperação, um robô patético, algo parecido com a figura do C3-PO – Grayson nerd – me atualizava a respeito das coisas. Ao que parecia, Jade e a menina, a Lian, estão em segurança – por enquanto – nas antigas instalações do Capuz Vermelho em Gotham City. Também não entendo porque Jason se predispõe a me ajudar. Tenho quase certeza de que ele quer algo em troca. É pecado pensar assim?

No fim das contas, vou sair daqui, fazer o que tenho que fazer, e assim que a garota e Lince estiverem a salvo e eu venha a conseguir quitar todas as minhas dívidas, irei para o mais longe possível dessas cidades, dessas pessoas. Se for para acabar com minha vida, que seja para evitar o máximo de dor. Ficar sozinho...

Lian até que não é um nome tão ruim, sim? Melhor que Jesus, creio eu.

É isso. Falou.

O tal robozinho chegou no meu quarto de hospital com umas roupas da minha época de adolescente jogador de beisebol bem na hora certa. Troquei-me rapidamente e respirei fundo algumas vezes enquanto me olhava de soslaio pelo reflexo do vaso – que sempre era reposto com flores todas as noites enquanto eu dormia.

— Não vai conseguir ficar mais bonito que isso, Harper. – A voz estava bem mais grossa que o de costume, mas nada como uma invenção Wayne para tal feito. Dick estava ao lado da porta, vestindo seu mais novo uniforme de Batman.

As notícias corriam rápido até para os drogados: O garoto prodígio era um Batman como nem mesmo Bruce Wayne foi. Sua fama estava ficando cada vez maior, e pelo visto, os anos após a separação dos titãs lhe fizeram muito bem.

Esse Batman, porém, sorria.

— Acha mesmo que estou preocupado com isso? – Respondi enquanto estalava meus dedos e o encarava. – Aposto que já sabe de toda a história.

— Quais equipamentos você acha que Jason usa? A batcaverna é o berço de informações de qualquer membro da família Batman. – Deu de ombros. – Só não posso dizer que sei o que você acabou decidindo.

— Se veio me dar um sermão do tipo “você é com certeza o cara mais burro do planeta por ter engravidado uma assassina” ou “vai precisar de um emprego de verdade para sustentar o bebê”, isso porque não consegui imaginar nada em relação ao pó. Ainda. – Nessa parte eu realmente não consegui olhar em seus olhos. Minhas habilidades de fingir dureza estavam ficando cada vez piores.

— Você é cabeça dura demais para me escutar caso eu dissesse tudo isso. – Ele parecia três vezes mais musculoso do que antes. Seus passos chegavam a pisar no chão com uma potência considerável. Até que para um fedelho órfão criado em berço de ouro, Dick estava muito bem. – E não se preocupe, ainda vamos conversar muito sobre esse último tópico. A partir de agora, você com certeza não vai sair do nosso radar, Harper. – A piscadela, naquela máscara, era engraçada ao passo que quase assustadora.

— Eu vou atrás dela, da garota, tá legal? Vou matar cada um do clã dos assassinos, encontrar algum lugar em Star City bom o suficiente para elas e fim, fiz o meu trabalho. – Peguei o boné de beisebol, aquilo que durante tanto tempo foi a minha marca. Por mais que ambos estivessem com poses sérias na conversa, não conseguimos deixar de soltar um sorriso nostálgico. – E sem rastreadores dessa vez, pelo amor de Deus.

— Uhum. – O som irônico de seus lábios me fez revirar os olhos. – Agora que já sei o que você pretende fazer, quero que me siga, por favor. – E saiu do quarto. Não entendi muito bem qual era a dele, mas nada eu podia perder, sim? Resolvi acompanhá-lo.

Haviam feito uma reforma das boas na torre. Vivi durante tanto tempo naquele lugar, e agora era tudo tão desconhecido! A ala médica estava maior e mais equipada. As paredes tomaram cor de alumínio escovado e se estendiam por N corredores em N direções. Mais robozinhos patetas caminhavam de um lado para o outro em suas tarefas. Pegamos, no final daquele corredor em específico, um elevador que nos levou até um dos últimos andares.

O andar de treinamento e armas.

Não passamos pela área de treinamento, mas pelos barulhos – e tremores – de explosão, estava mais do que evidente que haviam pessoas ali, mais de uma. Os jornais anunciavam sempre quando um novo membro era recrutado, e pelas minhas contas, uns 7 outros jovens, primeiramente treinados por Estelar e agora pelo Cyborg, tinham se juntado à equipe.

Nosso caminho continuou igual a todo o resto que eu já tinha visto, mais e mais paredes metálicas, até que de repente, uma das paredes se abriu ao meio, revelando um laboratório incrível jamais imaginado nem nos meus sonhos de nerd guru da tecnologia. Armas e mais armas, conhecidas e desconhecidas, desde o laço da verdade da Mulher Maravilha até canhões de prótons lase. Meus olhos se perdiam em cada protótipo, principalmente quando um deles era ideia minha.

— Victor[2] não consegue largar os Titãs. Se quiséssemos ele na Liga, teria de ser do jeito dele, trazendo tudo para cá. Esse laboratório é tanto dos Titãs quanto da Liga da Justiça. Legal, né? – O mais novo Batman do pedaço começou a falar enquanto eu me aproximava do arco.

O maior problema de qualquer arqueiro sempre será sua munição. Uma hora, infelizmente, ela acabará. Mudei meu nome para Arsenal quando, além do arco, eu investi em aprender a manusear outras armas, desde pistolas até facas de curto alcance justamente por esse inconveniente. Apesar disso, nunca desisti das minhas origens. Comecei a aprimorar o meu segundo arco, que tinha desarme único e cabia no meu bolso caso precisasse. A ideia era construir um mecanismo ao longo da extensão dobrável do arco que permitisse a fabricação de flechas dentro do próprio arco. Seria realmente um arsenal ilimitado.

Lá estava ele. Do jeitinho que eu queria.

E pelos gráficos que apareciam na tela ao lado, ele funcionava muito bem. Apesar de todos os recursos que as indústrias Queen me ofereciam, eu nunca tive a mente de Cyborg.

— Ele deu muito duro nisso. Diz que é sua obra prima. – A voz de Dick entonava orgulho.

Fiquei quieto por alguns segundos, ainda admirando a peça. Ousei tocá-la, ousei abrir o arco.

— Isso não vai me fazer voltar para a equipe. Não pense que eu não sei o que está tentando fazer.

Coloquei o arco de volta no lugar e fui andando até a saída, mas a mão de Dick me impediu.

— Fazer de mim um herói não vai me tirar do vício. Não me tirou antes e não me tirará agora. – Falei um pouco mais abrupto do que antes. Aquele cara sempre foi cabeça dura.

— Você estava melhor quando tinha uma família. Volte para ela!

— Família? – Soltei-me de suas mãos. – Faz dois anos que não temos mais nossa família, Grayson. Você foi embora, a equipe entrou em colapso. Esqueceu quem partiu? – Eu não esperava que Dick fosse se livrar da máscara que cobria seus olhos, muito menos que não aguentaria me encarar. Ele estava me escondendo alguma coisa, eu sentia isso muito bem. – Acha que esses garotos serão minha família? São um bando de adolescentes idiotas procurando um lugar que os aceitem, um lugar onde não serão chamados de aberração e servirão para algo. Nunca vão ser minha família, assim como não conseguiram ser para Estelar e todos os outros que também foram embora[3].

Nós não queríamos brigar, e a distância e o silêncio, ambos se instalaram entre nós para impedir isso. No mais, ele finalmente teve coragem de olhar em meus olhos e falou: - Seja sensato, Roy. Nem Jason com todo o seu equipamento e treinamento está conseguindo dar conta da Liga dos Assassinos. Eles não são a gangue do Barrigão[4] ou algo assim. Precisará da arma e de um uniforme que impeça você de se machucar mais feio do que já vai acontecer. – Deu de ombros, abrindo um mini sorriso. A piada até que foi boa, mas não dei a ele o gostinho do meu sorriso.

Apontou com a cabeça para uma mala que estava ao lado do arco, provavelmente com meu antigo uniforme de Arsenal. Estalando a língua e odiando ter de aceitar o fato de que Dick estava certo, apenas assenti com movimentos. Peguei tudo o que eu precisava, mirei-o mais alguns segundos antes de seguir pelo corredor à fora. Não fazia a menor ideia de como sairia dali.

— Volte quando tudo acabar. Por favor. Precisamos conversar. – Foi a última coisa que ouvi dele.

Eu o compensaria um dia. Compensaria a todos, Victor, Donna, Garfield... Até mesmo ao Jason, todos eles.

As instalações da Torre continuavam as mesmas apesar do tempo. Precisávamos pegar um barco para irmos da ilha isolada até a cidade de São Francisco. Em um beco qualquer, resolvi abrir a mala: além do uniforme, havia dinheiro, alguns outros apetrechos antigos do Arsenal e um comunicador Titã... O velho comunicador Titã. Suspirei com raiva, Dick provavelmente estava de sacanagem comigo. Apesar de que, em minha dedutível teoria, poderia ser daquele jeito que eu iria encontrar Jason, já que meu velho amigo tinha mil e uma instalações em Gotham e eu não fazia a menor ideia de onde procurar.

Religuei o comunicador.

Olá. Bem vindo de volta. Deseja reativar o codinome?” a frase gravada de Victor foi com certeza o momento mais nostálgico e reconfortante desde os últimos acontecimentos. Não tinha percebido, mas o meu corpo inteiro tremia e meus olhos não saíam de cima do uniforme.

— Sim. – Informei.

Reconhecimento de voz concluído. Codinome: Arsenal reativado”.

[1] Primeiro Robin, antigo Asa Noturna e agora Batman. Para saber como essa transição ocorreu, leia Codinome: Estelar! Disponível no Nyah Fanfiction.

[2] Victor Stone, nome real de Cyborg

[3] Leia Codinome: Estelar para entender melhor.

[4] Vilão de aparência parecida com a do Jabba de Star Wars. É um mafioso que assola Gotham City. Leia Capuz Vermelho & Arsenal para conhece-lo melhor.