Gotham não mudou nada desde minha última visita. Por mais que eu vivesse nos esgotos e becos da parte mais sombria e obstinada possível, como se a cidade inteira já não fosse assim por natureza, era evidente tanto a esperança pela presença do Batman como também o medo pelo caos corriqueiro. O cheiro de rato morto ainda circundava as ruas.

O taxista fumava um cigarro descontraído enquanto dirigia com uma excelência duvidosa. Eu, por outro lado, ainda estava a mirar fixamente a mala que se encontrava ao meu lado no banco de carona. A mala que me foi entregue por Dick Grayson, que além de conter um uniforme, armas e um comunicador, dispunha de dinheiro. 10 mil dólares pelo o que minha mente pôde contar.

O garoto prodígio sendo tão burro, como podia? Quem diabos daria mais de 10 mil dólares a um viciado que estava a somente duas semanas e pouco longe da droga?

Eu sabia, no entanto, que ele estava me vigiando. Com certeza eu tinha engolido algum chip rastreador enquanto comia ou bebia sob os cuidados médicos da Torre Titã. Além disso, o comunicador por si só era um minissatélite. Se por acaso eu ousasse caminhar por lugares não muito agradáveis, a certeza de que ele apareceria do nada para me internar em uma clínica era certa.

Porém, meu cérebro estava pouco se fodendo para as consequências. O processo é químico e bem básico até: o nível do vício cega qualquer resquício de bom senso. Eu teria de contar com remédios, reabilitação e uma incrível força de vontade para não descer daquele carro no cruzamento mais próximo e procurar pela primeira boca de fumo. Ou Dick confiava muito em mim ou realmente era um idiota, e analisando todos os anos em que o tive como parceiro, amigo e inimigo, o cara realmente tinha lapsos de falta de raciocínio.

— É aqui, guri. – Eu já estava com as mãos nas alças da mala quando a voz grossa do motorista interrompeu meus pensamentos. Tive de piscar duas vezes para me situar e finalmente recordar.

O comunicador me passou as coordenadas em números, então eu não fazia a menor ideia de para onde estavam me mandando, mas foi só sair do carro, sentir o cheiro do mar e o barulho das empilhadeiras que a nostalgia me pegou desprevenido.

No porto de Gotham, corredor AC25, perto de onde as indústrias Wayne abasteciam seus compartimentos para entregas internacionais. Havia um galpão vermelho abandonado mais ao sul. Ao subsolo dele, em uma antiga instalação do Batman, fizemos o nosso ninho.

Os Fora da Lei, conhecidos no mundo todo – prefiro acreditar que ficamos conhecidos no mundo todo por pura modéstia mesmo – por prestar serviços, independentemente de quais fossem e para quem fosse. Figuras como Superman e o próprio Batman tentaram nos parar, mas com a petulância de Jason, força de Kori e minha intrigante inteligência, continuamos até as coisas começarem a dar errado dentro do grupo: eu segui meu caminho solo – só para não dizer que voltei a me drogar -, Jason sumiu do mapa e Kori voltou para os Jovens Titãs, em seguida, para Tamaran.

Sendo um lugar óbvio e ao mesmo tempo totalmente fora da curva, fazia sentido esconder uma assassina e sua filha ali, ainda mais quando estavam sob a proteção – isso era suposição – de um maluco que usava capuz vermelho. Tentei usar o comunicador para falar com alguém, mas fiquei sem resposta. Decidi fazer como nos velhos tempos: rodear o local, tomando cuidado para não atrair olhares desnecessários, e bater no decodificador de leitura digital instalado invisível e exatamente três passos à esquerda da saída de emergência no galpão. A porta secreta abria por 10 segundos ininterruptos: ou entrava rápido ou era esmagado. Por sorte, apenas alguns fios de cabelo ficavam para trás.

As luzes, porém, não se acenderam automaticamente como antes, muito menos a leitura da face foi feita. Ao invés disso, eu senti algo muito parecido com uma arma apontada para a minha testa.

— Quantas vezes? – Jason era fácil de se identificar, desde a voz até as maneiras peculiares de verificar quem estava a bater na porta.

— Eu mesmo, Jason. Podemos pular a parte em que você duvida e... – Eu me sentia muito cansado. A pior parte de ficar sem a porra da droga só estava começando e eu já não me sentia nem um pouco bem. Sua fala seguinte me interrompeu bruscamente.

— Quantas vezes você fodeu com a tamaraneana?

Outro sintoma de ser um drogado que podia ser meu troféu ou minha ruína: o pensamento é curto e a ira é tamanha. Eu não pensei no tiro que poderia levar, muito menos nos danos que eu poderia causar a Jason ou a mim mesmo.

Em reflexos que me fizeram duvidar de mim mesmo, usei o cotovelo para socar seu antebraço. O vacilo dele foi minha deixa para assistir no escuro a arma cair e o manter somente aos meus punhos. De alguns dos vários socos que foram ao vento, um deles atingiu em cheio o queixo do sujeito.

Ele me conhecia melhor do que qualquer um. O maldito me ajudou a escapar de uma prisão (épocas longínquas, problemas com muita gente), além de ter sido o primeiro morto vivo com quem simpatizei. Nos conhecemos brevemente nos Titãs, e quando fiz um curto trabalho de espião duplo (engravidando Lince e cortando algumas cabeças), ele não só fazia parte da equipe da Liga das Sombras como foi quem me desmascarou. Por algum motivo muito louco, nos demos bem. Por outro motivo mais louco ainda, nos tornamos melhores amigos.

Ou melhor, melhores amigos que viraram as costas um para o outro após a saída de Estelar e o fim dos Fora da Lei.

Enquanto meus dedos tremulavam de dor e as luzes acendiam quase que de imediato, meu defeituoso cérebro esclareceu a situação. Por mais que minhas digitais constassem no computador central, o sistema era um sistema e Jason não confiava 100% neles. Era preciso uma farpa, uma prova singular dentro de um corpo desconhecidamente conhecido. Ele só queria ter certeza de que era eu.

Talvez também tenha querido zoar com minha cara, mas isso seria palco para um desaforo futuro.

A máscara do filho da puta era resistente: sequer um arranhão. Seu perfeito rosto que nada se relacionava à sua dura vida nas ruas também estava intacto, e um sorriso debochado nasceu em dos lábios ao me encarar caído no chão.

— Há quanto tempo, Roy.

De repente, sua mão estava estendida para mim, em um gesto até que bonito, mas ainda humilhante. Recusei com a cabeça e me levantei com um pouco de dificuldade. Limpei minha roupa, fingi estar acostumado à dor e lhe dei um sorriso sem dentes.

— Vejo que continua o mesmo. No mesmo lugar. – Rodeei o espaço com os olhos, e não foi preciso muito esforço para então identificar Jade.

Jade e a bebê.

Havíamos, nos tempos de glória, construído um beliche para mim e Jason, já que Kori tinha uma paixão quase que avassaladora por dormir em sofás. Como uma mãe pássaro protege os filhotes, Jade tinha o corpo como escudo em volta da criança, em uma posição mais típica de aranha. Seu rosto estava coberto pela famosa máscara em forma de gato chinês, e seus sais[1] pareciam afiados e dispostos a fazer estragos.

Mesmo que um longo espaço e a máscara separassem nossos olhares, eu pude sentir o peso de seu julgamento nada bom sobre mim, e com certeza ela sentiu toda minha insegurança, medo e instinto de mudança. O silêncio foi atrapalhado pela criança, que pôs-se a chorar copiosamente.

— Mas o que é desta vez?! – Esbravejou Jade, largando suas armas e colocando a criança no braço.

— Você já a alimentou hoje? – Jason suspirou fundo, olhando de sua máscara para mim e seguindo até o frigobar.

Parecia até que eu não estava ali.

Na minha mente, somente o choro da criança e a excessiva vontade de arrebentar tudo e sair dali me ocupavam. Era o choro da minha filha.

Mesmo ao longe, notei o ruivo do seu pouquíssimo cabelo. Os ruídos eram infantis, mas lembravam bastante a voz de Jade. Por um instante, eu realmente quis encará-la de perto, e meus pés quase que se mexeram em um passo, mas um estranho barulho pôs todos em alerta.

— Eu disse, morto vivo. Eles não brincam em serviço. – Jade sibilou. Lian, nossa filha, sugava-lhe o peito nu, alimentando-se o máximo que podia.

Outro som opaco, mas de grande estrago ao teto.

— Se eu fosse você, Roy, pegaria o arco. – Jason insinuou enquanto recolocava sua máscara e destravava suas armas, apontando-as para cima.

Meus reflexos de recém reabilitado não me permitiram acompanhar toda luta. Eu somente atirei flechas para o teto, o qual arrebentou-se por causa de uma bomba. Cara de Tigre foi o primeiro que reconheci, até porque, não era tão difícil assim disfarçar-se por entre a fumaça quando se tem mais de um metro e noventa, além de dã, a cabeça de um animal.

Suas garras empurraram meu peito com toda a força, me fazendo titubear e bater com a cabeça no chão. O som dos tiros era perturbador, mas pelo menos, era o sinal de que Jason estava a tomar conta das coisas. Nunca pensei que ele seria tão imparcial ao matar ex colegas de profissão.

Também reconheci Mortífera ao fundo. Como não olhar para aquela bunda maravilhosa dentro do maiô asa delta púrpura? A visão seguinte, da mesma invadindo a beliche em que se encontravam Lian e Jade, porém, me fez querer avançar ao primeiro sinal.

O arco estava longe, outros integrantes da Liga da Sombras surgiam do inferno. Com certeza éramos loucos de achar que cuidaríamos daquilo sozinhos... O comunicador!

Por sorte, eu alcançava o bolso em meio à tontura. Apertei todos os botões possíveis do mesmo, e se as coisas ainda funcionassem como nos velhos tempos, um alarme ensurdecedor soaria na Torre Titã. Regra número 1: nunca deixamos um membro da equipe em perigo.

A partir daquilo, com praticamente ninguém se importando com o fato de eu estar caindo no chão, rastejei pelas sombras até o arco. O mesmo, munido com todas as especialidades de flecha já desenvolvidos por mim e Oliver, não poderia ser mais útil: luminosidade cegante. Mirei no teto, de onde os malditos saíram e disparei, emitindo uma luz forte o suficiente para fazer todos chiarem de dor. Paralisados.

Eu, no entanto, vencia a luz. Arco Valente não me treinara em vão. Seus ensinamentos gritavam até na parte mais obscura e fodida pela droga na minha cabeça. Talvez esse fosse o motivo da minha não morte durante todo esse tempo vivendo como um usuário medíocre: os navajo corriam em minhas veias espirituais, e foi respirando fundo e ignorando toda a dor que meus reflexos fluíram.

Use o som como guia. Arco Valente expandia-se dentro de mim, e eu me arrepiei ao realmente senti-lo muito próximo.

Pelo choro de Lian, eu a encontrei do outro lado da cama, entre a batalha de Jade e Mortífera. Com a bebê em meus braços, saltei até o cômodo próximo mais escondido e lá a enfiei, contando com o tempo: quatro minutos até o fim do enterro.

— Odeio truques vagabundos. Matem o filha da puta antes de qualquer coisa, ele não é tão lixo assim! – Diácono, que ao que parecia estava, enfim, liderando a Liga, gritou entre tiros e reclamações de todos.

Não fazia a menor ideia do que estava acontecendo, mas que pelo menos Jade e Jason estivessem vivos.

Produzi flechas explosivas, atirando-as ao alto e à frente. Era possível ver saltos de corpos por todos os lugares, e todo aquele brilho começara a me nausear de um jeito que precisei engolir a seco para não vomitar o nada.

Por sorte, minha audição captou o som da nave Titã, e alguns segundos após isso, meus amigos, estes tão heroicos como sempre, deixaram o lugar visível e fatal.

[1] Arma de origem oriental semelhante a um garfo.