— Você está tentando me fazer tirar sua vida miserável. – Cuspindo por entre seus dentes animalescos, Crocodilo[i] esboçou o que mais pareceu ser desdém à pena. – Faça isso sozinho, verme. Não me encarregarei disso.

O chão rachava aos poucos com seus passos. O corpulento, aquela mistura bizarra de réptil com humano me deu as costas e nem sequer olhou para trás. Claro, se eu fosse ele, faria o mesmo.

Não era em todo verdade esse papo de fazer com que outros concluíssem um serviço que eu não tinha coragem de executá-lo. A droga realmente havia acabado e Crocodilo era um dos pouquíssimos fornecedores de pedra pura corajosos o suficiente para rastejar pelos esgotos de Star City fora do radar do senhor filha da puta de colã, conhecido popularmente como Arqueiro Verde. Foda-se ele.

Por mais uma vez, em obviedade dos fatos, eu não tinha grana nem para um gole de água sequer. Como bom malandro treinado por índios, eu tinha meus esquemas: sobras das lixeiras de uns restaurantes aqui, os amigos menos viciados que ainda tinham teto ali e pronto, eu ainda conseguia manter meu corpo de pé, mesmo que com vários quilos a menos e uma aparência e cheiro horrendos. Mas a questão aqui não é minha decadência como ser humano, pelo menos não nessa parte da história.

Crocodilo e eu temos uma história de longas datas. Foi ele o primeiro vilão que combati sob o meu primeiro manto de super herói: Ricardito. Só depois de trocar de codinome e analisar o passado é que a gente percebe o quanto deixar adultos ricos depressivos escolherem “super nomes” é uma coisa bem ruim. Nos encontramos em mais alguns embates até que finalmente o maldito foi parar em alguma instalação das indústrias Queen. Sem maiores novidades: conseguiu fugir e entrou para um ramo mais pretencioso e menos arriscado. Seus tempos de vilania ficaram focados nos já entregues ao inferno. Como dinheiro é muito mais importante do que qualquer rivalidade estúpida de heróis, ainda mais quando se pode tirar proveito disso para “exaltar os que foram derrotados”, não houve nenhum problema de comunicação entre mim e Crocodilo quando o assunto era droga. Eu roubava o suficiente para conseguir o que podia, – não o que queria, porque sempre era muito mais do que realmente podia – pagava-o em dia e as coisas tornavam-se lindas, cada um em seu mundinho.

Qualquer bastardinho já ouviu falar dos efeitos: náuseas frequentes, dores de cabeça que mais parecem tiros no cérebro, você percebe que nem tem mais a mesma fome, vai perdendo boa parte das capacidades motoras dentre um monte de etcs. Claro que você vai me perguntar como que eu, filho adotivo de um dos maiores magnatas dos Estados Unidos, sendo parceiro no combate ao crime e até mesmo membro de uma equipe de Titãs incríveis dispostos a enfrentar maus como esse entrou no clichê “mundo das drogas” e tal. Enquanto estava deitado em meu próprio vômito – claro que o meu caro amiguinho não iria embora sem me dar uma boa surra e me jogar ao léu – comecei a pensar naquilo, e bem, não vou perder meu tempo com respostas idiotas. Um psicólogo poderia muito bem apontar meus traumas de infância, já que não conheci minha mãe e perdi meu pai cedo. Ollie não era um bom pai, mas reconheço o que ele tentou ser para mim. Meus amigos foram extremamente vitais para meu crescimento, para as descobertas que me envolviam neste mundo, e se em algum momento eu enxergo meus dedos tão esqueléticos e sinto vergonha, é por eles. Já haviam me pegado bebendo uísque escondido em meu quarto e cheirando pó, conversa foi algo que não me faltou. A batalha deles foi intensa, mas sabe como é, cada um tem seus demônios, como se já não bastassem os que vivem lá fora matando criancinhas e destruindo cidades. Aos poucos, as armaduras foram sendo deixadas de lado, cada um foi andando cada vez mais a frente e eu não consegui acompanhar. Jason, Kor’i, Dick, Donna[ii]... Eu não esperava caridade do padrasto que preferiu me expulsar de casa quando descobriu do meu vício ao invés de me ajudar, Dinah[iii] foi a única que me olhou com um pingo de esperança, esperança essa que me curou durante uns meses avulsos. Tive vergonha de voltar atrás e procurá-la novamente, assim como com os Titãs. Causei tanto sofrimento às únicas pessoas as quais eu não queria machucar...

Sozinho. Foi quando me vi totalmente no fundo do poço. Talvez tenha sido isso. Nunca aprendi a ser/ficar sozinho em nenhum momento da minha vida. O ombro amigo, o socorro, tudo estava sempre lá de prontidão para me agarrar nos braços e dizer algo como “tudo vai ficar bem” ou “você vai conseguir”. Nem mesmo a mente brilhante de um garotinho que preferia ler livros de química quântica ao invés de colorir gravuras estúpidas me salvou da depressão, da busca pelo o que fosse fazer a dor passar mais rápido. Tinha de passar...

O escamoso do caralho não queria mais me vender a droga. Eu ia adiantar o dinheiro assim que desse, era uma promessa. Mesmo assim, preferiu dizer algo como “você não consegue mais andar, não diz coisa com coisa” como se eu não ouvisse meus próprios pensamentos. Eu estava bem, estava de olhos abertos... Não estava? Ele não vendia sem dinheiro na mão, ele me deixaria sem nada. Só restava um saquinho de pó no bolso, três horas e tudo aquilo sumiria. Acho que gritei com ele, que quis batê-lo, que por algum motivo que agora me fez sentir muito idiota, chorei, fiz birra e apanhei.

“Limpei” o vômito da rua com a mão. O lugar onde eu estava me era desconhecido, frio como o diabo. Derramei o branquinho no chão e atolei meu nariz daquilo, daquela mistura podre de morte com restos de mim mesmo, e puta que pariu, como era bom! Eu quis lamber, quis sugar até o último resquício da morte da minha solidão, até que uma dor no peito me pegou lá no fundo.

Eu já havia passado por duas overdoses. Na primeira, Dinah estava lá para me ajudar e me encaminhar ao hospital mais próximo, foi mais um início de overdose que não deu em nada muito grave. A segunda vez foi na Torre Titã, no fatídico dia em que me expulsaram da equipe, porém, o bom coração da equipe teve dó de mim e me cuidou antes que algo de mais trágico me acometesse.

Meu corpo tremia inteiro como se eu estivesse sendo eletrocutado. “Você devia saber tudo sobre ser patético, não sabe?” a voz que era minha, só que a do Roy Harper de 18 anos gritou em minha mente. Pude vê-lo com seu arco indígena e as vestes farrapas ao redor do corpo. Apontava a flecha na minha direção enquanto cuspia no chão. “Você sabe e sempre soube que era o elo fraco, sim?” Oliver Queen tirava a máscara e estatelava sua mão em minha face sem dó.

— Não... – A voz já perdera suas forças assim como todo o resto do corpo.

A solidão era mortal sim. Eu quis tirar proveito da situação sim, não engano nem uma mosca. Estar fadado a viver na prisão de um mundo sem mais ninguém com certeza era o que levava os homens à ruína, foi o que me fez cair em pedaços. Sabia lá no fundo que apanharia até morrer de Crocodilo por não obedecer as leis do negócio. Sabia que o que me restava, somando as minhas condições, seria o suficiente para me fazer ter uma overdose. Mais uma, a última. Eu só precisava de coragem, virtude essa que nunca tive.

Fechei os olhos vagarosamente, agarrei-me aos meus próprios joelhos e esperei por uma morte firme, mas rápida e suportavelmente dolorosa. Arco Valente[iv] costumava dizer que o corpo é só uma casca que abriga o que há de mais maravilhoso nos seres, a alma.

Minha casca poderia servir de comida aos abutres ou de choro aos que ainda guardavam minha memória com certo carinho. Minha alma, no entanto, com certeza já estava destinada a viver no inferno.

Até que abri os olhos novamente, e bom, pelo o que me diziam, o inferno que eu estava a ver até que era agradável.

[i] Crocodilo (Waylon Jones) é um personagem fictício do Universo DC, inimigo de vários heróis.

[ii] Jason Todd, segundo Robin e Capuz Vermelho; Kor’i/Koriand’, a Estelar; Dick Grayson, o primeiro Robin e atual Batman; Donna Troy, a primeira Moça Maravilha

[iii] A Canário Negro, ajudante e par romântico do Arqueiro Verde

[iv] Chefe navajo salvo pelo pai de Roy Harper de um incêndio florestal. Foi mentor do super herói durante sua formação até ser adotado por Oliver Queen