Cidade Perdida

Conveniências suspeitas


Len POV

O senhor da 7º casa nos olhava com um sorriso no rosto, apesar de parecer cansado. O Suspeito (como decidi chamá-lo) e eu estávamos um pouco surpresos pela abordagem, que por outro lado, facilitou em muitos pontos para nós dois. Mesmo assim, não conseguia pensar que me encontrava numa situação normal.

— Eu ouvi a conversa de vocês e não resisti – ele justificou, um pouco sem jeito. – Passei uns anos da minha juventude procurando sobre esses mistérios depois que aquele dragão nos fez uma visita.

— Ah, de forma alguma. – O Suspeito tratou de simpatizar a situação. – Inclusive, era com o senhor mesmo que queríamos conversar. Eu... nós adoraríamos saber mais sobre a sua busca. Se não for incômodo.

Por mais que ele fosse bom nisso, tentar parecer simpático só ajudou a piorar sua imagem. Decidi seguir o ato, já que não tinha outra escolha. Torci apenas para que o senhor não fosse alguém conveniente demais, a ponto de ser suspeito também. Fiquei em alerta.

— Você é o filho mais velho dos padeiros, não é? – me perguntou. – É bom ter amizade com boas pessoas dessa cidade. – Por fim, virou-se para voltar para a casa.

Olhei para Suspeito com uma vitória estampada na cara. Olhou para mim de volta irritado como se a palavra do senhor não bastasse para que confiasse em mim… ainda que eu mesmo não confiasse em ninguém.

— Eu te disse – sussurrei, da maneira mais discreta que pude.

Enfim, fomos convidados a entrar e achar um canto para sentar na casinha simples em meio às outras em volta, com pouca luz e num estado de abandono, ou negligência. Parecia que cada móvel e objetos empoeirados ali tinham sido esquecidos por tanto tempo quanto o morador do local. Por fim, sentei num banquinho torto ao lado da cadeira do Suspeito, em frente à única poltrona da casa.

— Então você deve ser de longe, não é? Eu tentei buscar minhas aventuras por aí um dia, mas acabei ficando aqui mesmo depois que a maga e o dragão nos deram um espetáculo em casa.

— Consigo imaginar o por quê – Ele continuava seu interesse.

Sem mais delongas, o senhor começou a falar com toda a emoção de ter quem o escutasse. Nunca tinha sequer ouvido falar nele e nem em seus familiares, imagino que tenha vivido isolado aqui por um bom tempo. Imaginei que um dia eu provavelmente terminaria dessa forma...

— Os magos e magas protetores de cada cidade deveriam ajudar com a prosperidade da família real e seu povo e protegê-los, de longe. Os cargos podem ser passados aos filhos ou aprendizes desses magos. Mas as regras são claras: só permitem a união do casal se tiverem o mesmo tipo de magia. Reza a lenda que os pais da nossa famosa Maga Dourada quebraram essa lei, e aquele dragão... – fez uma pausa, levando a mão até a cabeça. – Como era o nome mesmo?

— Adamas – respondemos, em um coro baixo.

— Isso! Adamas não gostava nada disso. Uma fera cheia de ódio. Deve ser por isso que... Lia, Lucy, ou seja lá como era o nome dela, nasceu com o dever de ser levada pelo dragão por punição. Ela viveu escondida tanto quanto pôde, mas não conseguiu fugir de seu destino para sempre.

— Ouvi dizer que Adamas se escondeu nas florestas daqui por um tempo, bem antes do ataque à cidade – me pronunciei pela primeira vez –, isso é verdade?

— É verdade, dragões gostam de ouro e riquezas e nossa região é perfeita, e além disso, poderia vigiar sua maga de perto. Tinha muitos motivos para se esconder nas grandes rochas do rio, estava seguro ali. Colocava tanto medo nos moradores apenas por saberem que estava lá que ninguém nunca descobriu onde era... Até a ganância do rei Egarian descobrir um modo.

— Já ouvi rumores de que Adamas matou outra maga protetora que o desagradou anteriormente, isso servia para pressionar Lily e sua família pelo erro – o Suspeito acrescentou. Inclusive, baixou a guarda: pronunciou o nome da maga com clara convicção, o qual ninguém sabia ao certo.

— Ah, claro, já ouvi algo assim – o senhor confirmou, interessado, mas não pareceu ter gostado de ser interrompido com algo que ele mesmo poderia ter dito. O olhar do forasteiro entre nós se estreitou, chamando minha atenção. – E nas minhas pesquisas, descobri relatos de que Adamas um dia já foi extremamente poderoso, mas perdeu parte dos poderes, de alguma forma, o que poderia justificar sua fúria. Histórias e lendas ganham furos com o tempo, assim como traças esburacando livros.

— Entendo... Falando em livros – O Suspeito começou, de repente, sua voz pareceu perder o interesse. – O senhor teria um bom lugar para recomendar a minha pesquisa em livros?

— A biblioteca daqui, é claro. Lá com certeza terá algo sobre a nossa história. – Por fim, o senhor olhou fixamente para mim. – Mas antes de irem, Len, você pode perguntar para sua mãe o que ela fez com o fragmento de diamante mágico achado quando criança, no dia em que Adamas e a Maga tiveram sua confusão aqui.

O Suspeito por algum motivo conseguiu ficar mais chocado do que eu, enquanto o senhor nos encarava como se tivesse liberado a informação mais incrível do mundo. Eu ainda mal havia processado o detalhe de que ele sabia meu nome sem ser mencionado, enquanto eu não sabia sequer da existência dele.

Comecei a suspeitar que talvez ele não existisse aqui até pouco tempo atrás.

— Como?! Lily era tão forte assim? Ela conseguiu acertar o dragão a ponto de tirar parte da magia... da vida dele? – Suspeito exclamou.

— Possivelmente – confirmou, não gostando de ser questionado. – Nossa maga certamente era mais forte do que parecia. E se eu fosse o filho dos padeiros, me perguntaria de onde vieram meus olhos azuis.

Mal tivemos tempo para ficar em dúvida outra vez. Foi a última coisa dita antes da informação de onde ficava a biblioteca e da despedida. Saímos da casa transtornados, minha companhia esqueceu toda a simpatia inicial e notei que ele estava, na verdade, muito incrédulo.

— Se me lembro bem do casal e do jovem que vi na padaria hoje de manhã, Len, você realmente deveria prestar mais atenção.

— Eu sei que mais ninguém lá tem olhos azuis – expliquei. – Mas meus avós tinham, meus pais também têm olhos claros. É fácil de explicar.

— Para humanos, deve ser. Mas não é só isso que importa. – Ele estava impaciente. Começou a se afastar apressado da casa do senhor. – Se sua mãe guardou por tanto tempo, numa forma preguiçosa de dizer, um pedaço de magia, isso pode explicar porque você é tão estranho, e também porque ainda se lembra mesmo depois de Rin tentar apagar sua memória. Magia pode ser... digamos, contagiosa, em casos como o seu.

— Você disse o nome delas – entreguei, o orgulho por ter notado esse detalhe falando mais alto. – Falou sobre Lily duas vezes e sobre Rin agora. – Eu o vi ficar vermelho e quase vi um veia pulsando em sua testa embaixo da tirinha do tapa-olho. Achei que eu poderia ter morrido nesse momento. – Eu sou um bom observador, sabe.

Ele bufou, parou de andar por um instante.

— Escuta, agora que você já descobriu o que queria e até mais do que isso, eu posso cuidar do resto.

— Vamos fazer um trato – interrompi. – Eu te arrumo esse fragmento de magia e em troca, eu passo mais um tempo descobrindo essa história com você.

— Pode ficar, é seu mesmo – negou.

— E, se magia é contagiosa, então você deve ter "pegado" alguma também – continuei. – Vou te fazer uma pergunta: quem, e o que é você?

Nesse momento eu realmente achei que seria morto, mas ele finalmente desistiu.

— Sou Piko, ex aprendiz de um Feiticeiro de Luz, em específico o que era pai de Lily e Rin. MAS! – Já começou me parando. – Antes de me encher de perguntas e de se meter mais um pouco na minha vida: eu perdi minhas memórias e nenhum dos seres mágicos me reconhece. É por isso que procuro tantas informações de uma forma tão precária. E por último, não me importo tanto, mas eu ficaria longe daquele velho. Ele definitivamente não viu nada com os próprios olhos.

"Em específico o que era pai de Lily e Rin", nas palavras dele. Tudo indica que essas duas são irmãs, o que faz sentido, além de já responder algumas questões. Creio que agora que sei quem ele é, as informações que o senhor deu a nós provavelmente foram inúteis para Piko, o que explica a impaciência dele... Para mim, sendo reais ou não, foram úteis, mas seguiria o conselho de manter distância.

Piko voltou a andar, voltei a segui-lo enquanto resmungava mais coisas, mais ofensas talvez. Como eu não entendia nada, não me atingiam.

— Se já está aqui, por que não fala diretamente com a Maga Dourada?

— Como eu disse: nenhum dos seres mágicos me reconhecem. Mesmo sendo filha de meu mestre, não vai lembrar de nada e me expulsar pela história absurda... E não vou saber lidar com ela depois de tudo o que eu sei e ela não – justificou, por meio segundo, pareceu constrangido. – Eu procuro por informações sobre as duas em busca de me aproximar de algo sobre mim e meu mestre com paradeiro desconhecido. Isso é bem mais complicado de encontrar do que uma jovem maga inexperiente deixando rastros em festivais.

— Você só não quer, não é?

Piko bufou de novo.

— Pode ser isso, também. Muitos anos se passaram e as coisas mudaram. Não quero me meter no que já não é meu problema.

Foi a primeira coisa que ele disse que eu não pude achar nada nas entrelinhas.

— Posso me juntar a sua pesquisa mesmo assim? Tenho motivos pessoais agora.

— Não.

— Posso procurar a maga então?

Piko parou de repente e riu. Riu por tanto tempo que achei ser outra criatura, uma de alma feliz. Demorou um pouco para se recompor, voltar a seriedade e me responder:

— Se achar que pode voltar vivo, fique à vontade. Eu duvido. Elas nem são o seu maior problema.

E então, saiu andando na direção da biblioteca, sozinho. Eu precisava ter duas conversas: uma com minha mãe e outra com a própria Maga Dourada. A próxima coisa que fiz foi, obviamente, voltar a seguir Piko.