Len POV

A biblioteca era relativamente perto do castelo, um caminho interessante de andar, com lojinhas decoradas, barracas fartas e casas e mansões bonitas. A área também possuía algumas escolas avançadas nos conhecimentos atuais... e a Materia Auream, a maior universidade do país e de toda a região, conhecida por seus médicos e fisiólogos, esses últimos pesquisam ambos humanos e criaturas mágicas. Piko ignorava tudo isso e andava furioso até seu destino, provavelmente por saber que eu ainda o seguia.

Adentrei o local logo após e me acertei com a bibliotecária antes de procurar pelo forasteiro que a deixou preocupada. Enfim, eu sabia exatamente onde ele estava, já passei muito tempo naquelas estantes quando era criança. Infelizmente, não há nada de novo ou revelador aqui e creio que ele não admitiria, mas nessa altura já sabe disso. Para azar o dele, fontes melhores estão nas estantes dos estudiosos da Materia Auream, mas eu não vou ser o responsável por mais uma confusão.

— É sempre tão difícil se livrar de você? – Piko me questionou aos sussurros quando o encontrei em uma das mesas mais afastadas.

— Geralmente, não. Nem me aproximo. Então considere-se sortudo – devolvi, tentando igualar nosso nível. – Sabia que esse livro chamaria sua atenção.

Um livro preto e de detalhes dourados e discretos, talvez para lembrar a capa da maga, mesmo que ninguém saiba exatamente como é... Se não me enganei, era do mesmo tom escuro por inteira, mas é difícil de lembrar e descrever. Foi fácil de entender porque tantos são fascinados por ela e definitivamente não foi feita por mãos humanas.

O título do livro era algo comum e chamativo: A Origem do Nosso Dourado. Um livro mais velho do que a nossa Maga Dourada mais famosa, inclusive. Tem uma parte complicada nessa busca: todos os livros parecidos ou com histórias sobre magia e derivados estão classificados como lendas, contos, fantasias e afins. Nem tudo é confiável, esse em especial tratava apenas sobre especulações e pesquisas do autor em relação à maga, seus ancestrais e alguns "eventos mágicos". Piko perdeu alguns minutos interessado em um capítulo sobre um tal de Luar Dourado, o evento mágico que deu origem à riqueza da nossa capital após a falência da antiga, e então desprezou o livro para o lado com uma careta e abriu outro.

Minha curiosidade, misturada com uma certa nostalgia, falou mais alto e eu o deixei em paz por um tempo, me perdi entre aquelas prateleiras, se é que é possível perder o rumo em um lugar tão familiar. Andei sem pressa e prestando atenção em todos os detalhes e títulos reconhecidos, o cheiro de madeira e coisa velha sendo estranhamente confortável em meio ao silêncio. Nenhum som de fora invadia a biblioteca e o lugar tinha um ar mágico, mesmo apenas na minha imaginação. Por mais que eu evitasse algumas seções de memórias não tão boas, a biblioteca era o único estabelecimento em toda essa parte da cidade que não me perturbava.

Um título prateado difícil de ler num fundo claro me chamou a atenção: Cidade Perdida. Para minha surpresa, nunca ouvi falar e sequer o vi aqui antes, mal pertencia perto dos outros que o cercavam. Inicialmente sem interesse, puxei o livro que parecia ser novo, mas esquecido ali desde então. Abri as páginas um modo aleatório, sem sair do começo, esperando me lembrar caso já tivesse lido.

"Há quem diga que a floresta situada ao Extremo Leste das regiões não é nada demais e são poucos os conhecimentos restantes. Além das intermináveis águas que agora separam os países, ao final de toda a densa e intocada floresta, atrás de enormes montanhas.

Antes da classe de magos protetores entrarem em extinção, uma próspera cidade nas Terras Diamante era secretamente governada por sua maga protetora de identidade desconhecida até hoje. Espalhou-se logo por toda parte que possuía uma magia poderosa e misteriosa, como nenhuma outra. A jovem maga assumiu o lugar da antiga rainha, falecida sem deixar herdeiros e com suas terras à deriva de perder a guerra e sua história para a ascensão do País do Ouro. Por vários anos a maga sustentou todos os seus deveres em ordem e escondidos do Guardião Azul, que jamais aceitaria uma protetora popularmente reconhecida.

Com relatos de beleza anormal até para o nosso mundo, a jovem ganhou fama entre os homens da região. Apenas um deles conseguiu ganhar afeição da maga, um reles mortal. Enfurecido, o mortal passou dias procurando pelo Ser Supremo e ao encontrá-lo, levou-o até a cidade da maga. Seu objetivo era apenas fazer com que ela perdesse seus poderes e igualasse seus níveis para que pudessem ficar juntos.

No entanto, o Guardião Azul foi injusto em seu dever. Injustiça que matou o homem e condenou a cidade: todos os seus habitantes tornaram-se pó e tudo inteiramente isolado por montanhas, águas... Enquanto a jovem maga, tamanha foi sua punição que não se tem conhecimento da causa de sua morte e os segredos de sua magia se foram com ela. Há quem diga que recebeu punições de Acima, de quem quer que nos proteja.

Um enfurecido e poderoso dragão nasceu para completar a punição: são os primeiros registros de Adamas. A fera faz parte da maldição do Ser Supremo, para expulsar os curiosos para bem longe da região e servir de lembrete às novas leis, se quebradas."

Fechei o livro atordoado e arrepiado, a horrível sensação de calor e frio ao mesmo tempo no meu corpo, a qual eu nunca vou me acostumar. Nenhum sinal de autor, datas, índices ou outras informações. Folheei as primeiras páginas, todas em branco. Inclusive, percebi que o título na verdade estava em alguma escrita diferente e eu não conseguia ler nada... nem mesmo o que eu jurava ter acabado de ler. Devo ter imaginado coisas, ainda tonto por causa de ontem, estremeci com a lembrança.

Mais atordoado ainda, quase tonto, fui até Piko.

— Você vai querer ver isso – retornei com a nova descoberta em mãos.

Ele pegou o livro das minhas mãos com surpresa, mas ignorou todo o resto. Após mais alguns minutos entediantes o assistindo lendo, ou melhor, verificando páginas em branco, finalmente voltou a vida:

— Eu te subestimei, garoto. – Sorriu, um tanto falso. Passou um olhar cauteloso e desconfiado por toda a volta, coçou o queixo, pareceu perdido por um instante. – Se contar para alguém o que achou aqui, você morre.

Ignorei, começando a pegar o jeito de lidar com ele.

— O livro não tem autor, não tem datas, nomes e nem nada além das histórias – continuei, pulando a parte da minha confusão com as escritas. – E tenho a impressão de que esse livro não é daqui. Pode ser coisa da minha cabeça, mas nunca li nada assim.

— Não foi sequer escrito por um humano, caso não tenha percebido. Curioso como isso veio parar numa biblioteca mundana – Piko concordou, dessa vez sorriu de verdade e passou um tempinho me encarando com uma expressão que não decifrei. Continuou sem me contar nada, mesmo tendo confessado de propósito que pûde ler o livro minutos antes, mas engoli o orgulho e não confessei não ter reparado na criatura não-humana por trás da escrita. – É um mistério.

— Se não foi escrito e nem pode ser lido por um humano, por que está aqui? – Me importei, sem notar o sentido de nada. Piko deu de ombros. – E esse Guardião Azul, Ser Supremo ou seja lá quem, por que alguém como ele tem tanto poder?

— Ordens da Rainha, nada da sua conta – explicou, pareceu... receoso ou com um certo rancor, seu rosto retorceu. – Um belo dum desgraçado.

— Foi ele quem sumiu com as suas memórias?

— Não me lembro como ou quem causou isso, o que pode indicar um serviço bem feito, infelizmente. – Piko pareceu envergonhado pela primeira vez. – Contudo, Kaito sendo o culpado ou não, fez muito mais para ser odiado. Disso eu não poderia estar alheio nem se quisesse, nem se perdesse a noção da minha própria existência.

— Tanta destruição não é motivo suficiente para que ele não tenha tanto poder? Aliás, você tem um hábito de citar nomes mesmo quando não quer.

Piko revirou os olhos, começando a se cansar de mim de novo.

— Não era para ser assim, mas não é algo que temos escolha. O poder subiu e tomou a cabeça dele, obrigava que todos seguissem as regras e quase não seguia nenhuma. Matava qualquer um que não agradasse, extinguiu um grupo inteiro de elfos de uma região importante, atacou vilas de fadas e queimou bruxas feito humanos metidos que acreditam em um único deus. – Acho que essa foi a primeira vez que me contou tanta coisa. O rancor parecia ter tomado cada centímetro dele. – Quando eu estava pesquisando mais perto das regiões antigas no Extremo Sul, ouvia constantemente que sempre houve uma rivalidade entre ele e Adamas, que se virou contra o criador e cansou de ser um cão de guarda imenso e com asas. Um tempo atrás, houve um boato de que a fera absorvia os poderes de quem comia para ficar cada vez mais forte, e Kaito não correria esse risco. No final, a punição foi afugentar os curiosos das montanhas, rebaixado feito um dragão de jardim qualquer.

— Então esse Guardião Azul não deveria ser tão importante e poderoso quanto foi feito para ser – afirmei, como se minha opinião repetitiva importasse... Se Piko não era humano, então o que era?

Ele revirou os olhos de novo.

— E deve ser por isso que ele está mais cauteloso que o normal, guardando ódio em silêncio. Finalmente percebeu que não ignoramos suas ações.

Depois de falar tanto sobre o Ser Supremo, achei que Piko não daria mais nenhum sinal de voltar a vida. E, para minha surpresa, voltou logo:

— Bom, depois de tudo isso, é melhor eu ir. Você já perdeu bastante tempo aqui e eu também… A menos que tenha alguma outra fonte de pesquisa para me mostrar, já que você parece conhecer bem essa parte da cidade.

— Não, não conheço nenhuma – menti, inocente.

— Então até existe uma chance mínima de você continuar procurando comigo. Afinal, eu realmente suspeito que alguma coisa esteja fora do lugar com você, ou com as coisas e pessoas a sua volta.

— Não, já tenho meus planos – continuei me livrando dele.

— Certo. Não esperei que viesse mesmo. – Foi discreto, mas demonstrou que mentiu ao desviar o olhar. – Mas se quer um conselho: é melhor tomar cuidado, mesmo, se não quiser ser morto. E não estou falando da maga que quer procurar feito uma criança atrás de fadas... Preste atenção nesse detalhe.

Se isso foi uma despedida ou não, não importou. Apenas achei um pouco suspeito a repentina mudança de ideia sobre mim. Enfim, saiu da biblioteca largando todos os livros abertos pela metade. Não quis segui-lo de novo, algo na forma fria e séria como falou me deixou nervoso e não vou mais me envolver nisso.

E eu já tinha tudo que precisava.

~ ~ ~

O maior problema foi ter de lidar com a minha ausência em casa depois de dizer que só demoraria mais um pouco ao sair. Eu avisei que fui ajudar um estrangeiro a achar uma referência e a biblioteca para uma pesquisa sobre a famosa Maga Dourada. Não menti, porém, não quis contar a verdade que eu mesmo mal entendi. Não demorou mais de meia hora e o pudim já estava assando, segundo o cheiro que senti de longe. Passei o resto do dia ajudando com a padaria e Oliver e os assuntos dele, e assim os demais planos foram adiantados e eu tinha de torcer para o pudim durar até o dia seguinte, um dia livre.

Em minhas reflexões, concluí que Piko era confuso demais para ser útil caso eu quisesse entender alguma coisa mais a fundo. Tudo sobre Adamas era vago e raso, ao mesmo tempo envolvido demais para ser ignorado, continuei sem respostas do que de fato o trouxe até aqui… Antes era só curiosidade e agora eu tenho quase um dever próprio de esclarecer essa história com as fontes certas.

No dia seguinte, retornei à biblioteca em busca do livro que não pertencia, por não aguentar ficar em casa parado pensando sem agir. Comemorei em silêncio por conseguir ler de novo, comecei do início e fiquei um pouco decepcionado com a conclusão: apenas um livro histórico. A Cidade Perdida das Terras Diamante, de nome real não mencionado, entrou em ruínas depois de várias décadas em guerra por território com o atual País Dourado... Nada disso era impossível de encontrar nos livros de história humanos, apesar da confirmação da origem não-humana do imenso lago Latis. O texto de ontem era a única coisa fora do padrão, mas nada disso tirou a divertida sensação de ler algo escrito por uma criatura.

A guerra enfim acabou quando ambos os monarcas morreram em campo de batalha, mas a rainha faliu todos os seus recursos e perderia de qualquer forma. Foi logo após esse final trágico que a misteriosa maga protetora injustiçada entrou em ação e o País Dourado passou a tomar seu lugar de vitória com a filha do rei morto.

Não sei o que houve em mim, mas depois de me distrair com isso, não consegui voltar a ler o livro outra vez. Todas as páginas retornaram ao branco.