Chrono Crusade - After Heaven

Capítulo 3 - Beijar ou não beijar?


O quarto dela continuava igual.

A cama, os móveis, a vista pela janela…no entanto, a fotografia a preto e branco que agora estava nas mãos de Rosette era nova apesar de ela conhecer as pessoas nela.

Com um sorriso nostálgico, ela olhou para a última prova de felicidade que tinha daquela noite no festival.

- Ah ah! – Rosette passou um dedo pela moldura – Olhe para o Chrno! Não parecia nada contente. – ela levantou a cabeça e olhou para Ragminton – O que é que se passou, padre? Tenho tantas perguntas…porque é que eu estou aqui? Porque é que aquela rapariga me tratou por Santa? Porque é que o meu quarto está igual ao que era antes?

- Lembras-te das marcas que tiveste? Na altura pensavam que eras a reencarnação de Madalena. – explicou Ragminton – Bem isso não é verdade mas também não é mentira de todo já que tu foste escolhida para carregar os seus “poderes”. No entanto, também não eras a reencarnação porque não tinhas a alma de Madalena dentro de ti. – continuou ele – Como isto nunca foi realmente esclarecido, toda a gente ficou com a impressão de que tu eras a Santa. Preservar o teu quarto foi ideia da Azmaria e todos fizeram o mesmo depois de ela morrer.

- E porque é que você está vivo, padre? Também não devia estar morto? – perguntou Rosette vendo Ragminton abanar a cabeça – Porque é que ninguém sabe do Chrno? Ele foi mais importante do que eu e está aqui na fotografia. Ninguém perguntou quem ele é?

- Depois de tu morreres e depois de a Azmaria morrer, a Ordem de Madalena decidiu cobrir o nosso relacionamento anterior com demónios, e assim a tua cooperação com o Chrno foi abafada. – disse Ragminton vendo a cara nada agradada de Rosette – Com o tempo, a Ordem de Madalena tornou-se no Convento de Madalena e a existência de exorcistas é agora um segredo que nem as freiras sabem. Aliás, já não existem muitos exorcistas hoje em dia, só seladores.

- Seladores? – perguntou Rosette.

- Sim. – respondeu Ragminton – A Ordem descobriu que se podiam selar até os demónios mais fortes mesmo antes de eles saírem do Pandemonium com algumas rezas.

- Não existem…exorcistas? – Rosette hesitou. Ser exorcista tinha sido uma grande parte da sua vida, uma parte importante.

- Existem mas são elementos mais velhos da Ordem. – corrigiu Ragminton e, ao ver que ela estava deprimida, abriu uma gaveta e tirou de lá o relógio que antes contara os anos que ela viveria – Isto é teu, Rosette. A Azmaria guardou-o.

Ela levantou-se, pegou no relógio e pendurou-o ao pescoço, sentindo uma sensação de alívio ao fazê-lo.

- Podes vir comigo, agora? – perguntou Ragminton levantando-se também – Tenho uma coisa para te mostrar.

Depois de uma pequena viajem de carro, Rosette e Ragminton chegaram ao local onde ela, Joshua e Chrno tinham brincado tantas vezes quando eram pequenos. Depois de andarem mais um bocado, Rosette viu uma campa de pedra sob a sombra de uma grande e vistosa árvore com maravilhosas folhas verdes.

Na pedra, estava escrito o seu nome e, em letras minúsculas, o nome de Chrno. Rosette foi até lá e passou a mão pela campa bem tratada e para as mínimas e injustas palavras em honra de Chrno.

- Se eu estou aqui, quem é que está lá em baixo? – perguntou Rosette, ajoelhando-se em frente à campo – É correto estar aqui? E o Chrno?

- Já pensaste na hipótese de ter sido um demónio a trazer-te de volta? – disse Ragminton também pensando nisso – Por outro lado, se fosse o trabalho de um demónio só a tua alma tinha voltado. – com cuidado, Ragminton agachou-se ao lado de Rosette e pegou-lhe no braço. As semelhanças eram mais do que óbvias – No entanto, parece que o teu corpo também voltou o que só pode acontecer quando nasces.

- Mas isso não exclui a hipótese do demónio, pois não? – lembrou Rosette – Podem ter-me trazido há dezassete anos atrás.

- Isso também é verdade. – concordou Ragminton – Mas…e se te deram um segunda oportunidade?

- Uma segunda oportunidade?

- Sim. Morreste jovem e passaste a tua vida a lutar contra demónios. – explicou Ragminton – Talvez alguém lá em cima tenha resolvido dar-te uma segunda oportunidade…uma vida normal.

- E então o Chrno? – perguntou Rosette inocentemente.

- Rosette… - Ragminton suspirou porque sabia que aquilo seria difícil de dizer – Quando eu disse “uma vida normal” isso não incluía demónios.

- O quê!? – exclamou Rosette – E a Azmaria? A Satella…como é que eu posso ser única a ser recompensada? – perguntou ela, levantando-se do chão.

- Devias estar grata. – disse Ragminton levantando-se também – Agora tens a oportunidade de fazer coisas que não pudeste fazer antes.

- O quê? – perguntou Rosette chateada – Não posso ser exorcista, não posso fazer parte da Ordem, nunca mais vou poder ver os meus amigos ou as minhas amigas da Ordem, o meu irmão não sabe que é meu irmão!!! O que é que há de bom em ter uma segunda oportunidade!?

O silêncio instalou-se entre os dois, deixando apenas o vento a assobiar entre as árvores.

- Ouve, Rosette. – disse Ragminton tristemente – Se quiseres, eu posso deixar-te entrar para o Convento mas não vais ser uma exorcista. – tal como ele esperava, ela abanou a cabeça – A única coisa que podes fazer agora é aproveitar o que tens. Aposto que até tens um namorado.

- Um namorado que eu não conheço nem quero. – corrigiu Rosette levando uma mão ao relógio sem vida – O meu tempo não é este, padre.

- Então, o que é que estás a dizer, Rosette? – perguntou Ragminton – Se voltasses a ser uma exorcista, se eu te dissesse que a Azmaria e a Satella também voltaram como tu…aí ficarias contente? – ele viu a expressão que confirmou as suas suspeitas – Isso é mentira, não é? Porque tu podias ter isso tudo de volta mas não ficarias feliz sem o Chrno.

- Ele é…

- …um demónio. – completou Ragminton – Mesmo que ele tenha voltado como tu, deve estar no Pandemonium.

Foi aí que Rosette se apercebeu.

- Os selos. – murmurou ela.

- É isso mesmo. – confirmou Ragminton – Nem um demónio como o Chrno pode quebrar os selos e, mesmo que esteja a tentar, só está a sofrer. Os selos libertam choques sempre que sentem pressão e ele pode até morrer se continuar a tentar.

Apesar das más notícias dadas pelo padre, Rosette exibia um grande e brilhante sorriso, deixando Ragminton confuso.

- É isso mesmo, padre! – exclamou Rosette, contente – É por causa dos selos que ele não consegue passar! Se os selos desaparecerem…

- Se os selos desaparecerem o mundo todo vai ser atacado por demónios! – lembrou Ragminton – E se o Aion também voltou e a única coisa que o está a deter é o selo?

- É só mais uma razão para ir buscar o Chrno. Nem quero imaginar o que o Aion pode fazer ao Chrno. – disse Rosette – Vai correr tudo bem. Só preciso de algumas armas e…

- Não! – interrompeu Ragmintou. Tirou duas notas do bolso e entregou-as a Rosette – Vai comprar algumas roupas a teu gosto e vai para a tua nova casa. Descansa e pensa bem no que me disseste porque a Rosette que eu conhecia não ia pôr milhões de pessoas em risco só para trazer o Chrno de volta.

Rosette não conseguiu dizer mais nada porque, em parte, aquilo era verdade. Mas também não queria deixar o Chrno lá em baixo.

- Se as marcas aparecerem vem logo falar comigo. – avisou Ragminton – E não digas a ninguém o teu verdadeiro nome.

Rosette ainda ficou ali, mesmo depois do padre voltar para o carro. Teve que inspirar e expirar três vezes antes de conseguir voltar para o carro também…

…e deixar para trás a sua campa.

Depois de ter passado por uma loja de roupa, Ragminton deixou Rosette em frente à sua nova e fria casa. Despediram-se mais uma vez e Rosette ficou a ver Ragminton a afastar-se antes de se voltar para o portão de metal preto

O sol já descia no horizonte lembrando-lhe de coisas que ela preferia não se lembrar; já havia várias luzes acesas na casa.

Rosette pegou na saca com as roupas da Claire e entrou na propriedade que lhe era estranha.

Quando entrou, Joshua foi imediatamente ter com ela mas parou a meio do hall da entrada ao ver a roupa no corpo de Rosette.

- O teu armário pegou fogo? – perguntou Joshua.

Rosette encolheu os ombros. Não achava que a saia preta e comprida que tinha escolhido e a camisola de gola alta branca fossem estranhas. Aliás, eram mais confortáveis do que a roupa da Claire.

- E o que é isso? – perguntou Joshua referindo-se ao relógio que ela trazia ao pescoço – Afinal, onde é que foste?

- Eu fui… - Rosette pensou um bocado e resolveu que não podia contar-lhe da sua visita ao Convento de Madalena – Eu fui comprar roupa nova já que o Inverno está a chegar. Mas só tive dinheiro para comprar esta.

Joshua decidiu não comentar a sua roupa nova já que as raparigas pareciam mudar de gostos de um minuto para o outro.

- Se queres roupa nova, podes pedir mais dinheiro ao pai. – sugeriu Joshua – Dinheiro não é problema para ele.

Rosette abanou ligeiramente a cabeça porque o seu irmão nunca diria isso…o que provava que aquele já não era o seu Joshua.

- Sim. – murmurou Rosette mesmo assim – Acho que vou fazer isso.

Não gostava da roupa de Claire e, mesmo que pedisse dinheiro ao seu suposto pai, depois podia arranjar um emprego para lhe pagar de volta.

- O Ty ainda não passou por cá. – avisou Joshua antes de Rosette subir as escadas – Talvez ele fique para jantar quando chegar.

- Boa ideia. – mentiu Rosette.

Não tinha bem a certeza de que tipo de rapaz seria esse tal Tyler mas, se fosse parecido com a Claire, achava que era melhor não o conhecer.

Subiu para o seu quarto e suspirou ao ver todas aquelas coisas que não eram verdadeiramente dela. Começou por pousar a saca e tirar de lá a fotografia que tinha roubado do seu quarto no Convento. Pousou a moldura em cima da mesinha-de-cabeceira ao lado da sua cama dupla e foi até ao armário.

Sem hesitar, abriu o armário, começou a arranca-la dos cabides e a atirá-la para cima da cama, uma peça após a outra, sem lhe dar um segundo olhar.

Depois de o armário estar vazio, pegou nalgumas sacas pretas que tinha encontrado na gaveta do armário e começou a ensacar a roupa depois de a dobrar cuidadosamente.

Tencionava ir oferecer aquela roupa a alguma instituição na manhã seguinte e arranjar algumas novas para si.

Estava tão envolvida no que estava a fazer que quase saltou quando bateram à sua porta. Ao ver Fiore a abrir a porta, lembrou-se que também tinha que arranjar uma arma ou duas. Perguntou-se se era demasiado nova para o fazer, agora que não era uma exorcista.

- Está a arranjar o seu armário, menina? – perguntou Fiore educadamente – Quer que eu deite alguma coisa fora?

- Não. – respondeu Rosette – Obrigada por perguntares mas não preciso de nada.

Fiore fez uma pequena vénia. – O jantar está pronto e os seus pais já chegaram, menina. O Tyler também já telefonou a avisar que estava quase a chegar.

- Obrigada. – agradeceu Rosette antes de Fiore sair.

Não tinha outra opção a não ser simpática para Fiore e para Tyler porque estava presa naquele tempo e ainda não tinha um plano definido para resgatar Chrno do Pandemonium.

Inspirou e expirou três vezes antes de sair com uma mão em cima do relógio. Quando chegou à sala de jantar, viu Joshua para além de um homem e uma mulher na casa dos quarenta com um ar rigoroso.

Quando a mulher com o cabelo pintado de loiro esbranquiçado olhou para ela, em vez de preocupação, mostrou repugnância e depois suspirou e olhou para o homem.

- Querido, já viste a tua filha? – perguntou a mulher – É óbvio que não lhe estás a dar dinheiro suficiente para a roupa!

- Para de resmungar. – pediu o homem, enquanto lia o jornal, sem sequer olhar para Rosette – Amanhã transfiro-lhe algum dinheiro para a conta dela.

- Pai, mãe! – exclamou Joshua que parecia um bocado ofendido – A Claire saiu hoje do hospital!

- E então? – perguntou a mulher – Se ela saiu é porque está boa, certo?

Joshua ia continuar a reclamar mas Rosette pôs-lhe uma mão no ombro antes de ele o fazer e abanou a cabeça quando ele olhou para ela.

- Preferia ser órfã. – murmurou Rosette antes de se sentar.

A sala de jantar era demasiado grande para quatro pessoas na opinião dela e as cadeiras estavam demasiado afastadas umas das outras. Enquanto se começavam a servir, só se ouviam os talheres a baterem gentilmente na louça.

As primeiras palavras que trocaram foram com Fiore quando ela entrou na sala para distribuir as bebidas e servi-las ao homem e à mulher.

- O menino Tyler já chegou. – anunciou Fiore antes de sair da sala.

Tyler entrou momentos depois fazendo Rosette erguer uma sobrancelha.

Via-se bem que o rapaz não controlava muito bem o peso. Tinha um boné gasto, as calças rasgadas nos joelhos, uma t-shirt velha que dizia “Bad Boy” no peito, um piercing presa à narina esquerda e um brinco na orelha direita.

- Nem mais. – murmurou Rosette porque Tyler era exatamente o tipo de rapaz com quem uma rapariga como Claire andaria. Arrependeu-se logo a seguir porque não era correto julgar alguém pela sua aparência.

Por outro lado, não sabia como se havia de comportar em frente do rapaz.

- Claire, estás bem? – perguntou Tyler aproximando-se de Rosette – Lamento imenso por ter discutido contigo antes de ires para o hospital.

Quando Tyler se vergou para beijar Rosette ela esqueceu-se que estava numa cadeira e, ao tentar afastar-se dele, caiu para trás, fazendo com que até o pai olhasse para ela.

- O que é que estás a fazer, Claire? – perguntou a mãe – Nunca tiveste vergonha de o beijares à nossa frente.

Rosette levantou-se imediatamente, encostou-se à parede e pôs uma mão em frente aos lábios, enquanto a outra agarrava o relógio que Chrno lhe tinha dado.

- Eu…

- Estás bem, Claire? – perguntou Tyler aproximando-se dela – O que é que se passa com a tua roupa?

- Para de fazer fitas, Claire! – exclamou a mãe – Deixa o rapaz beijar-te e vamos continuar a jantar, por favor!

A tremer, tirou a mão dos lábios e decidiu que tinha que interpretar o papel da Claire mesmo que isso significasse beijar aquele rapaz. No entanto, quando ele estava prestes a beijá-la, Rosette pôs as duas mãos nos ombros dele, usando-os como apoio para saltar por cima dele.

- Eu…eu não posso beijá-lo! – gritou Rosette.

E saiu da sala a correr deixando os restantes de boca aberta.